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Francy Baniwa: patinhas de cutia, teias entre mundos, escola viva

A riqueza da roça, a transmissão das tradições e os desafios de viver entre aldeia e universidade segundo uma das mulheres à frente da Cátedra Olavo Setubal

Publicado em 17/10/2024

Atualizado às 18:02 de 17/10/2024

Quando o sol saiu na Aldeia Guarani Mbya Kalipety, em um dia frio e chuvoso de maio em São Paulo, a antropóloga, cineasta, fotógrafa e escritora Francy Baniwa abriu seus braços, recebendo-o, e sorriu de olhos fechados. A pesquisadora, uma das titulares da Cátedra Olavo Setubal em 2024, havia saído há pouco da casa de reza à entrada da Kalipety, onde, desde manhã cedo, à luz de lâmpadas fracas e fogueira, sob fumaça e penumbra, acontecia uma roda de conversa do projeto Caminho da cutia: território e saberes das mulheres indígenas, liderado por Francy e pelas demais catedráticas, Arissana Pataxó e Sandra Benites. Após outras atividades, mais tarde naquele dia, ela falaria ao site do Itaú Cultural (IC) sobre como o projeto se desenvolveu e sobre a intenção de preservar os saberes da roça, principalmente entre os mais jovens.

Sentada numa das cadeiras colocadas nas laterais de uma construção quase toda de madeira ao lado da casa de reza, onde naquele dia havia sido servido um almoço coletivo, Francy conta: “A gente se reuniu e, de imediato, pensou nesse saber feminino, não só de roça, esse conhecimento que está muito vivo nas comunidades, mas muito invisibilizado dentro das universidades, dentro das instituições". Parte da invisibilidade, sugere ela, surge porque esses conteúdos, em geral, chegam a esses espaços pela voz de terceiros, como os pesquisadores. Em razão disso, diz ela, "a gente viu a necessidade de trazer essas pessoas para serem protagonistas dos seus conhecimentos".

Nas universidades, nas instituições, esses saberes invisíveis, então, poderão vaguear, deixando rastros como um bichinho de floresta. "[A cutia,] à medida que vai fazendo o percurso de ir comer e voltar, acaba marcando um caminho. Quando você anda no mato, sabe que é caminho de cutia", ilustra. Esse tracejado na mata, visto, claro, por um olhar sábio, inspira o projeto sendo desenvolvido: "A gente queria passar pela universidade e deixar essa marca com os saberes das mulheres indígenas. Essas falas, esses cantos, a ciência que elas trazem dos territórios a partir das narrativas".

Atividade linda e difícil, a roça

Francy enfatiza o que existe de particular na experiência feminina no trabalho da terra: "Ser dona de roça, ser mulher indígena, requer um milhão de funções. Você já acorda fazendo funções de cozinheira, de faxineira, de empregada doméstica, já faz tudo isso antes de ir para a roça. Limpa a casa, pega a água, limpa o peixe, faz a comida, trabalha o dia inteiro. No final do dia, você está cansada, mas cansada de uma coisa muito boa, de chegar à beira do rio, naquela paisagem, e pensar: 'Como sou feliz, rica, por esse conhecimento entre mim, o território e todos os entes que estão presentes'".

O projeto de doutorado de Francy se debruça sobre essas vivências femininas. Com foco nas mulheres do Rio Negro, na Amazônia, a pesquisa foi intitulada "Donas de roça". A autora está fazendo entrevistas em sua comunidade: "Abordo todo o contexto feminino, os olhares delas sobre o corpo e sobre o território, sobre os lugares sagrados", explica. Nessas conversas, a agricultura tem um papel essencial, "porque a roça é tão importante", e a forma como "elas entendem esse cuidado" carrega todo um conhecimento.

"Falo, com toda a experiência que tenho, que a profissão mais difícil da vida é ser dona de roça”, defende. “É muito linda, mas é a mais difícil, porque se trabalha com o corpo, com a mente, o tempo todo, todos os dias. Só se descansa no domingo, porque é católico e não pode ir. Cresci com muito orgulho desse trabalho."

Atrás de árvores, vemos um rio de cor marrom.
Vista da Aldeia Guarani Mbya Kalipety (imagem: Duanne Ribeiro)

Como ficar bem sem o seu lugar?

Por esta conexão com a terra e suas práticas, afastar-se traz desassossego. Desde o mestrado – em que produziu a dissertação "Hiipana, eeno hiepolekoa: construindo um pensamento antropológico a partir da mitologia Baniwa e de suas transformações" –, a pesquisadora lida com tal transição entre dois mundos. "Foi muito difícil", confessa ela, "precisaria nascer de novo para estar bem naquele ambiente. Na comunidade, você é você, para a vida toda. E, na universidade, não. Nesse mundo, não. Não tem roça, não tem caça, não tem aquele riozão para você mergulhar toda manhã e no final do dia".

São vários choques culturais. Em vez de rio, "você tem um chuveiro – e ainda quente, né?"; e a comida é "arroz e feijão, muita verdura", em contraste com a aldeia, em que se come "muito peixe, muita caldeirada. É moqueado, é salgado, é beiju, farinha, muita pimenta, açaí com chibé, buriti, uma diversidade de frutas". Outra questão é a lógica da hora marcada, "porque, na comunidade, você acompanha os seus pais para a roça ou para a pescaria, pegar açaí no mato ou acampar – é a coisa mais linda. Não tem 'ó, Fran, 2 horas, reunião. Fran, 8 horas, uma reunião'. Tudo é horário". Esses fatores têm peso: "Tudo isso acaba afetando... Eu desisto ou não? Eu consigo ou não?".

Nessa circunstância, o apoio nas relações pessoais é decisivo: "Essa rede de pessoas da universidade lhe dá essa força, porque você não está sozinha, tem outros parentes que estão na mesma situação. E a gente precisa estar ali, para poder ter títulos, para poder ajudar seus parentes, para poder ter a mesma voz na hora de defender aquele território, de falar sobre direitos. Você se torna uma referência para o seu território". Para ela, isso é especialmente real quando se atua no movimento indígena, como é o seu caso. Na época de sua primeira pós-graduação, ela trabalhava na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn): "Já saí [do território] com uma grande responsabilidade, por ser a primeira mulher do Rio Negro que foi fazer mestrado", conta a entrevistada.

Como na rota da cutia, essa é uma prática de ida e de retorno: "Voltar para casa, estar na roça, tomar banho [de rio], faz muita diferença. Quando você volta, mesmo que seja por um mês, você começa a se fortalecer, [a repor as] energias. Aí, você sai de novo".

O diálogo entre dois mundos

E como é o impacto dessa chegada dos povos originários às universidades? Considera Francy, essa é uma aproximação muito recente, marcada por um interesse novo dessas instituições, que se abriram a "receber e ouvir". As universidades, diz a pesquisadora, "abriram a portinha, a janelinha; entramos, fomos ouvidos, estamos nesta construção de teias, de redes de conhecimento. Dois conhecimentos conectados, dois mundos conectados".

É um diálogo, aponta ela, que hoje se desenvolve sobre bases já bem sólidas: "Como a gente já foi muito pesquisado, já tem muita coisa sobre a gente, eu consigo dialogar com o pesquisador, não dizer 'você não sabe', mas 'ó, aqui, significa isto'. Dizer: 'A forma correta é esta', 'o nosso entendimento é este'". Por outro lado, a circulação do conhecimento científico "fortalece a gente, sabe? Mostrar para as comunidades que tem muitas pesquisas…" – partilha essa que, ressalta ela, estimula parcerias e novos autores.

Vista da casa de reza, que tem telhado de palha e exala fumaça branca.
Casa de reza da Aldeia Guarani Mbya Kalipety (imagem: Duanne Ribeiro)

O que somos é escola viva

O contexto mais amplo em que o Caminho da cutia se inclui acrescenta outra camada de importância ao projeto: as diferenças etárias põem a tarefa de retomar as tradições. Francy distingue a sua própria geração – em que "a gente trabalha na roça todo o tempo com os pais e os avós" – daquela dos seus mais velhos e da geração atual. Afirma ela, "dentro da geração da minha mãe, a roça é muito forte. Continua sendo forte, mas a diferença é a presença da escola". Com o ensino escolar, os jovens têm uma rotina que acaba excluindo essa experiência roceira.

"Já não tem mais o dia de você ir com seus pais para a roça", explica Francy, "porque, na escola, todo dia tem atividade de manhã e à tarde, até aos sábados. Então a gente vê que perdeu um pouco esse espaço da roça para a escola". Para ela, essa vivência não está esquecida, "mas parece que a escola está tirando uma parte da gente" – e não só a escola, pois "a cidade está chamando", e o jovem, muita vez, "não quer pegar sol, não quer carregar [coisas], quer assistir à televisão". Contudo, embora aponte aí um problema, a catedrática vê outras tendências: "Na minha tribo, a gente mantém muito isso de ir para a roça, mesmo que seja para ir e sentar, mas estar lá para ajudar".

Mas, levando em consideração os distanciamentos, surge "uma preocupação de que a juventude comece a enxergar a roça, o território, com outros olhares". Como maneira de construir essas novas perspectivas, Francy inaugurou, em 20 de março de 2024, com seu irmão, o professor Francisco Fontes Baniwa, e em parceria com o Selvagem – ciclo de estudos sobre a vida, da editora Dantes, a Escola Viva Baniwa, na Aldeia Assunção do Rio Içana, no Amazonas. Com encontros às segundas e terças de manhã e de tarde, a escola proporciona aprendizados de cerâmica, pesca, plantação, literatura infantil, culinária, música, cestaria e benzimento, entre outras possibilidades.

"Nosso ponto", revela, "é mostrar para a juventude que a riqueza está naquele lugar. Poder pescar, fazer roça, é a maior riqueza que temos". Essa iniciativa, atesta Francy, tem tido efeitos: "A gente está conseguindo abrir os olhos dos jovens para verem que aquele mundo deles é a coisa mais importante que existe. Que eles se orgulhem de ser artesãos, que eles se orgulhem de ser artesãos e estudantes. De ser donos de roça, mas também de ser médicos, antropólogos, biólogos... Ter esses dois mundos [de maneira] muito firme, porque a gente precisa desses dois mundos".

Perceber essa riqueza, defende ela, é valorizar aqueles em que consiste a sabedoria do território: "Eles são a nossa referência, pessoas que ainda estão vivas, que dá para conversar na língua, ouvir, aprender, escrever, aproveitar para fazer perguntas, aprender a cantar e dançar. A maior universidade é o território, são as comunidades, porque os professores são eles, que estão vivos e dispostos a compartilhar".

"Esse é o objetivo da escola viva", condensa a pesquisadora, "essa valorização do conhecimento que é vivo. A escola viva somos nós, sempre fomos nós, desde acordar até dormir. Esse contato com o rio é escola viva, esse contato com a roça é escola viva, fazer uma casa é uma escola viva. Tudo que a gente faz é uma escola viva".

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