Projeto de oficinas e de glossário com audiodescrição dá mais acessibilidade à tradicional manifestação cultural brasileira
Publicado em 05/12/2022
Atualizado às 14:00 de 05/12/2022
por Cristiane Batista
Ao som de clássicos como “Vassourinhas” e “Elefante de Olinda”, frevos orquestrados e de canção, um grupo animado aquece o corpo e reconhece o ambiente para iniciar os primeiros passos. “Vamos fingir que estamos em Olinda! Jogue o corpo, misture-se com as pessoas, pode se desequilibrar. Estamos em um lugar seguro!”, brada Danielle França, audiodescritora, especialista em acessibilidade cultural e idealizadora do Frevo às cegas, projeto composto de oficinas e de um glossário com audiodescrição para o ensino do frevo a pessoas com deficiência visual. A iniciativa ganhou o apoio do Rumos Itaú Cultural 2019-2020.
Danielle trabalha com acessibilidade desde 2012, mesmo ano em que o frevo passou a ser considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Em 2018, ela começou a gestar o projeto: “Sou superfoliã, tenho a palavra ‘Carnaval’ tatuada no braço esquerdo, mas não sabia dançar frevo. Percebi que algumas pessoas cegas não têm quase nenhuma experiência com o corpo e com a dança pelo medo de bater nos outros, uma coisa de achar que aquele não é o lugar delas. Então, pensei que isso precisava ser quebrado. Eu me matriculei na Escola Municipal de Frevo e passei a fazer vários cursos e oficinas para estudar a dança, entendê-la no meu corpo e então fazer a audiodescrição – que é um recurso inclusivo de acessibilidade comunicacional que traduz imagens em palavras, ampliando as possibilidades de acesso das pessoas com deficiência visual ao mundo das imagens”, explica.
Um dos desafios: como fazer a audiodescrição dos passos rápidos e acrobáticos do ritmo sem parecer aqueles aceleradores de áudio do WhatsApp? Em parceria com Jefferson Figueiredo, professor de frevo e passista, e com Milton Carvalho e Andreza Nóbrega, consultor e orientadora de audiodescrição, respectivamente, Danielle está desenvolvendo um glossário com 30 dos mais de 150 passos de frevo existentes, a partir de 12 horas de oficinas gratuitas com participantes entre 18 e 70 anos no Paço do Frevo – Centro de Referência em Salvaguarda do Frevo, localizado no Recife (PE).
O ponto de partida da equipe foi a contextualização da cultura do frevo, da origem do ritmo criado no final do século XIX no Carnaval pernambucano cuja dança frenética mistura marcha, maxixe e elementos da capoeira. Entender o porquê de cada passo, os costumes dentro da dança, a história das orquestras e dos dançarinos e como surgiram os passos, para então esboçar o que seria o glossário e experimentá-lo em conjunto com os participantes das oficinas, considerando suas características e subjetividades.
“Queremos ultrapassar o medo, desconstruir, soltar os corpos. O trabalho não é dirigido somente a pessoas com deficiência visual, mas a interessados em geral, a alunos de dança e também a professores, porque queremos colaborar com uma metodologia, atentando para a sensibilização e as necessidades desse público”, conta Danielle. Junto a seus parceiros, ela usa como ferramentas, além da audiodescrição, o toque corporal e bonecos feitos de arame moldável para uma melhor compreensão dos movimentos-base, que podem ser aéreos, baixos e térreos, e que depois podem ser multiplicados pelos dançarinos em muitos outros passos.
Ensaio e espetáculo
Sombrinha colorida na mão, certa dose de condicionamento físico, um toque de fervor e, aos poucos, passos como a tesoura, a locomotiva, o carpado e o saci vão sendo executados a partir de comandos: “Um pé chapado no chão e o outro enganchado por trás do joelho, formando um número quatro com as pernas. Equilibre-se em um pé e dê pequenos saltos”.
Angelle Freitas, que se autodefine como “pessoa cega, amputada, transplantada, biomédica, palestrante, colunista e ativista”, aprovou a iniciativa. “O que nos limita não é a nossa deficiência, é a falta de acessibilidade. Quando vi que existia esse projeto inovador, feito para a gente, fiquei superempolgada! Eles fizeram da melhor forma para que eu me sentisse totalmente incluída no processo, sem barreiras atitudinais e físicas. A gente interagiu e se socializou. E o frevo? Ah! É um ritmo que eu amo! Traz alegria, energia, positividade, só sentimentos bons. Se tiver novamente, eu vou, viu?”, diz.
Máurio José do Carmo, fã de frevo desde a década de 1960 e dos intérpretes Expedito Baracho e Claudionor Germano, conheceu o Frevo às cegas por meio de uma amiga: "Gostei muito, porque representa a cultura pernambucana e foi uma aprendizagem a mais que tive. Achei o curso difícil, porque tem muitos passos e também porque, confesso, prefiro forró. Dá para dançar junto, para se agarrar com uma coroa bonita e cheirosa", ri. Ele, que além de dançarino é historiador e telefonista, também se autointitula “o poeta da luz azul”. "Quando eu era pequeno, enxergava um pouco, bem de perto, e azul é a cor de que mais gosto. Eu me apresento com ela quando a ocasião exige. É a cor do céu", explica.
Próximos passos
Máurio já pode preparar a camisa preferida para a festa de lançamento do glossário, marcada para o segundo semestre de 2023, no Paço do Frevo. Nessa ocasião, ele, Angelle e os demais convidados poderão conferir o resultado do trabalho, que será disponibilizado em versão impressa em braille e também em áudio, no site pacodofrevo.org.br.
Para o fervo ficar mais quente, estão programadas ainda a apresentação de uma orquestra ao vivo e a exibição de um vídeo com todo o processo de realização do projeto, do início ao fechamento das oficinas, quando de surpresa todos chegaram fantasiados e maquiados em clima de baile de Carnaval. Parece que ele está chegando, não?