Projeto “Moa vive!”, contemplado pelo programa “Rumos Itaú Cultural”, resgata a obra de um dos grandes mestres da música brasileira
Publicado em 11/11/2022
Atualizado às 12:48 de 17/11/2022
“Moa tinha os pés fincados na ancestralidade e a cabeça apontada lá no futuro”, assim define Átila Santana, músico, produtor musical e idealizador do projeto Moa vive!, que lança nesta sexta-feira um álbum homônimo, resgatando composições do cantor, compositor, percussionista, educador, artesão e mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê. Conversamos com Átila sobre a origem do projeto, sua construção e a potência e legado da obra de Mestre Moa.
O encontro
Átila conheceu Moa através do poeta e compositor Guellwaar Adún – nascido Marcus Gonçalves da Silva –, que o convidou para realizar a produção musical da banda Junça da Pedra Preta do Paraguaçu: “Cara, a gente vai fazer essa banda para uma pessoa. E essa pessoa vai dizer o que a gente vai fazer na banda. Como ele nem sempre está aqui no Brasil, não vai fazer parte da banda toda vez, mas, quando ele estiver aqui, ele diz o que a gente faz”, teria dito Guellwaar. A pessoa, tão importante para a banda, era Mestre Moa do Katendê, parceiro de longa data do poeta.
A partir desse encontro, estreitou-se uma relação de amizade e aprendizado, que resultou, em 2011, num pedido de Moa: a gravação de algumas de suas composições e parcerias, para registrar sua obra e mostrar suas canções a outras pessoas. No estúdio de Átila, na época montado em seu quarto, gravaram Moa, seu filho Ranieri e José Humberto, o Zumbé, violinista soteropolitano e grande parceiro do compositor. “Nesse encontro de 2011, foram cerca de 30 canções, que agora estou descobrindo que foram mais. Ele tocou samba de roda, samba duro, arrasta-pé, reggae e mais um monte de coisas que estou escavando”, lembra Átila. Das gravações de 2011, duas foram mantidas de maneira original no álbum, com Moa, Ranieri e Zumbé tocando: Gina e Berimbau.
“Desse repertório, eu selecionei as faixas que fazem parte do Moa vive!, com o foco no ijexá. Lembro de uma entrevista na Folha de S.Paulo em que Moa falou: ‘É o ijexá que está aí no centro de tudo mudando as coisas e fazendo a coisa acontecer’, e eu sinto que há uma força de composição, que Moa e o Badauê criaram, que foi a principal energia responsável por, no fim da década de 1970, o ijexá tomar conta da música popular brasileira, com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Djavan, Jorge Ben Jor, Moraes Moreira, Pepeu Gomes, e por aí vai”, conta Átila. “Muita gente pegou essa linguagem que o Badauê trouxe, na reafricanização do Carnaval – até então os afoxés eram os tradicionais, os Filhos de Gandhi, por exemplo. Moa, Jorjão Bafafé e os companheiros do Badauê foram os responsáveis por popularizar isso, tirar a coisa direta dos cânticos de terreiro e trazer composições de música popular brasileira para a tradição, falando de candomblé, falando das origens, mas tudo no plano da música popular, utilizando instrumentos como a conga, o timbale e o bongô.”
Badauê
O Badauê, tão citado pelo produtor, foi um grupo de afoxé criado por jovens do bairro de Engenho Velho de Brotas, em Salvador, entre eles Moa do Katendê e Jorjão Bafafé, no final da década de 1970. O grupo chegou a ser criticado pelas adaptações que fazia do ijexá, e Jorjão Bafafé defendeu a criatividade deles: “Rapaz, minha vó, que era mãe de santo, na festa de caboclo dela, colocava um saxofone e um violão elétrico – mas o violão era elétrico mesmo, que se outra pessoa encostasse tomava choque. Se minha vó misturava, eu não vou misturar?”.
O resgate da obra de Moa e de outros compositores de Salvador se tornou um objetivo de Átila: “Noventa por cento das músicas mais famosas do Carnaval de Salvador são de compositores negros da periferia. As pessoas se referem à música de tal cantor, de tal cantora, e eu acho que esse projeto é parte de uma reparação também, para com Moa como indivíduo, como mestre, e para com uma multidão de artistas, compositores de Salvador, de onde provém a matéria-prima para tudo o que a gente faz”.
A trajetória de Moa do Katendê foi abruptamente interrompida em 2018, quando ele foi assassinado em um bar em Salvador, por causa de uma discussão política após a apuração do primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil. “Em 2018, eu havia marcado de fazer um vídeo com Moa. Fiz uma live com ele pelo Facebook em 2017, talvez 2016, no meu estúdio. Na live, eu pedia que ele contasse a sua história na música, e ele ia contando do início dele no terreiro de candomblé da mãe e da tia, e das rodas de capoeira, das escolas de samba de Salvador, foi uma hora de aula”, relembra Átila. “Em 2018, eu tinha um equipamento melhor de vídeo e pensei em fazer uma nova gravação, com uma iluminação boa, uma imagem melhor. Convidei Moa e ele me disse: ‘Átila, vamos! Segunda logo, porque terça estou indo para São Paulo!’. Passou domingo, aquele terror da eleição. Na segunda-feira, vim para o estúdio, focado, pensando: ‘Isso aconteceu, mas a gente vai continuar lutando’. Eu estava organizando as coisas e recebi uma mensagem de uma amiga com a manchete ‘Mestre de capoeira assassinado’. Não acreditei que fosse verdade, estava esperando ele lá. Liguei para o telefone dele, quem atendeu foi uma sobrinha, e ali eu entendi que era verdade. Uma parte vital da vida, da humanidade que a gente tem, tinha sido cortada ali.”
O nascimento do projeto
Eventualmente, após um delicado processo de cura, Átila retomou as gravações feitas em 2011, ouviu atentamente e as transformou no projeto Moa vive!, para realizar um dos grandes sonhos do mestre, o de ver suas canções interpretadas por outros artistas. “Os arranjos são todos baseados nesse encontro de 2011, com o violão de Zumbé, as composições de Moa e a percussão dos dois, então acho que consegui traduzir bem o que é o som de Moa para o disco, para as versões instrumentais”, conta o produtor.
A arte do álbum foi realizada pelo artista baiano Max Fonseca. Com uma produção que carrega a tradição do candomblé, Max utilizou recursos de inteligência artificial, combinando e criando diferentes elementos da tradição com diversas intervenções digitais, traduzindo em imagem toda a potência do futuro ancestral de Moa do Katendê.
O disco Moa vive!, disponível em todas as plataformas digitais, conta a história do Mestre Moa, de várias formas, em suas nove faixas, trazendo a conexão entre o ijexá e as diversas influências que deságuam na música brasileira. Suas raízes no continente africano e nos territórios da diáspora, ressignificadas pela criatividade de Moa, projetam um futuro possível, uma esperança para o mundo em que vivemos. Conversando com Átila Santana, fica evidente a relação de Moa do Katendê com o sankofa – ideograma africano, parte de um grande conjunto conhecido como adinkras, que representa um pássaro com a cabeça voltada para trás, resgatando o passado para construir o futuro –, trazendo para a rua, para aquele amontoado de pessoas tocando no afoxé, a energia que estava presente no terreiro de candomblé de sua mãe e sua tia, e que ele sabia que tinha de ser passada adiante. Uma relação de respeito à ancestralidade e à sabedoria da tradição oral.
Conheça um pouco mais de cada uma das faixas do álbum:
O disco abre com o single do álbum, interpretado por Geronimo Santana. Nas audições iniciais das faixas, das gravações originais de 2011, essa música foi uma das primeiras que chamaram a atenção de Átila. Fluida, melodiosa e emocionante, com muita influência do ijexá e da MPB, “Presente de Oxum” tem algo que é particular do ijexá de Moa e do Badauê. Muito presentes na música, e no disco como um todo, são as perguntas e respostas dos vocais, algo comum no reggae e no blues. Átila nos conta que Márcia Short, que é uma das cantoras do disco e morava no Engenho Velho, disse que o canto e o contracanto se davam porque o Badauê tinha um grupo muito grande de artistas, cada um com um microfone, e todos queriam cantar. Moa dizia: “Chega gente de toda parte” e outro já cantava “Chega gente de toda parte”, tudo com delay, repetido duas vezes.
Parceria de Moa com outro compositor e integrante do Badauê, Waldomiro, a música traça uma ligação direta entre o ijexá baiano e o afrobeat nigeriano de Fela Kuti, carregando junto modernidade e atualidade, com um ouvido atento para o mundo e um olhar no futuro, característico de Moa. Russo Passapusso, artista com uma ligação forte com o afrobeat e o afrofunk, foi a escolha do produtor para dar voz à música. Com um arranjo inspirado no original, que era feito com vozes na gravação de Moa, a melodia se manifesta especialmente nos instrumentos de sopro.
A canção de Moa ganha uma releitura na voz de Aloísio Menezes, cantor e compositor do Badauê e atualmente cantor do Cortejo Afro, de Salvador. A música tem influência do juju, gênero musical da Nigéria, que tem como um de seus principais expoentes o músico King Sunny Adé. Com um refrão que permanece na cabeça, a faixa conta com a participação do clarinetista Ivan Sacerdote, traçando linhas melódicas que vão do choro ao jazz.
Átila define esta faixa como uma “locomotiva de energia”, e não poderia ser diferente com a interpretação de Margareth Menezes e Mateus Aleluia Filho, que também toca trompete na música. A canção é uma parceria de Moa do Katendê com outro cantor e compositor do Badauê: Guio Alujá. Mistura de ijexá e reggae, a faixa se estrutura em canto e contracanto, com versos que se atravessam. “Essa música tem uma energia de atravessar o momento difícil que a gente está vivendo para chegar a um lugar melhor”, revela Átila.
A música é uma homenagem a uma tia de Moa, a ialorixá Omim. Com uma melodia alegre e festiva, a canção caminha por dois percursos musicais: o hilife, de Gana, e, do outro lado do afro-atlântico, a influência da música caribenha do grupo Les Aiglons, banda que exerceu forte influência na música de Salvador e, por consequência, no Brasil, com o que ficou conhecido como lambada. A faixa é interpretada pela cantora Sued Nunes.
Faixa interpretada pela cantora Márcia Short, que tinha tanta identificação com a música que não precisou da letra para cantar. “Eu ouço isso desde que tenho 16 anos”, Márcia disse a Átila. No meio da gravação, a cantora fez um improviso que não estava na gravação original. O produtor, encantado com o improviso criado, parabenizou a cantora, no que Márcia retrucou: “Menino, não fui eu que criei, não, Moa que cantava assim. Só não cantou na sua gravação”. A faixa tem a participação especial de Robertinho Barreto, do BaianaSystem, tocando guitarra baiana, trazendo a cadência do ijexá conhecido do Carnaval de Salvador.
Diferente das outras criações de Moa, a faixa não é um ijexá nem um ritmo tradicional do candomblé. Um ritmo particular de Zumbé e Moa. A canção é uma homenagem à baiana do acarajé do Dique Pequeno, lugar onde Moa nasceu e viveu, e uma homenagem ao acarajé em si, uma reverência à comida sagrada e à tradição de bater a massa com a mão. Composta só de voz e violão, a interpretação fica por conta de Roberto Mendes, cantor que tem uma ligação muito forte com a África iorubá e com a África muçulmana.
Gina é uma das duas músicas das gravações originais de 2011, feitas no estúdio de Átila com Moa do Katendê, seu filho Ranieri e Zumbé. A canção é uma homenagem a uma mulher por quem Moa se apaixonou.
A outra das duas músicas gravadas em 2011 é uma homenagem ao berimbau, instrumento de corda de origem angolana que Moa toca na gravação. A música tem uma sonoridade que se aproxima dos afrossambas de Moacir Santos e demonstra a versatilidade e a criatividade de Moa e Zumbé.