A autora Thelma Guedes, o jornalista Fernando Oliveira e a pesquisadora Ligia Lemos refletem acerca da TV no pós-pandemia, com atenção especial para as novelas
Publicado em 18/06/2020
Atualizado às 11:36 de 27/12/2021
por Heloísa Iaconis
Quem tem o privilégio de poder ficar em casa e acessar tecnologias diversas bem notou: o hoje é todo feito de telas. Através de uma tela o cotidiano se constrói: reuniões de trabalho, aulas, conversas com amigos, notícias e séries, as lives de Teresa Cristina. O outro, agora, está a um clique, dentro de um clique. Muito, muito antes, porém, lá nos anos 1950, uma tela, em particular, já sabia promover encontros, encurtar distâncias: a TV. Da fundação da Tupi por Assis Chateaubriand até a mescla com streamings, a televisão firmou-se como símbolo da cultura nacional. Prova recente disso ocorreu no início da covid-19 por aqui, uma vez que as mudanças realizadas pelas emissoras colaboraram para reforçar o entendimento geral acerca da situação. Gravações suspensas, programas de auditório sem plateia e repórteres com máscara em frente às câmeras são alguns dos impactos causados pelo coronavírus. Mas, passados cerca de três meses do começo de tudo, torna-se inevitável questionar: e o depois? Como a TV irá se adaptar ao pós-pandemia? A autora Thelma Guedes, o jornalista Fernando Oliveira (mais conhecido pelo apelido Fefito) e a pesquisadora Ligia Lemos conversaram com o site do Itaú Cultural (IC) a respeito desse porvir, com ênfase naquelas que são as líderes de audiência: as telenovelas.
Foi quando uma fonte lhe disse que a Globo levantava a hipótese de pausar o setor ficcional que Fefito percebeu que a nova realidade não seria coisa de passagem rápida. Pouco depois, a possibilidade virou certeza e, em 21 de março, Amor de Mãe, folhetim das 9, encerrou a sua primeira fase. A trama das 7, a estreia das 6 e a temporada de Malhação também paralisaram, sendo os horários preenchidos por reprises. A exemplo do jornalista, muita gente levou um chacoalhão com essa parada completa: até as novelas saíram do ar, até as novelas saíram do ar. Evento parecido se deu apenas com Roque Santeiro, obra de Dias Gomes censurada pela ditadura militar em 1975 e, por isso, substituída pela reapresentação de Selva de Pedra. Ainda assim, o caso antigo girou em torno de um só título, e não da grade inteira, o que potencializou o choque presente. “Houve um corte brusco de um hábito do povo, uma percepção social de perda de referência”, analisa Ligia. E tamanho poder referencial vem do fato de essas histórias narrarem o Brasil.
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O Brasil e, claro, os brasileiros. Pesquisadora vinculada ao Centro de Estudos de Telenovela, da Universidade de São Paulo (USP), e ao Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel), Ligia destaca a ligação profunda das novelas com a identidade brasileira. Na ideia de brasilidade estão Odorico Paraguaçu, Odete Roitman, Nazaré Tedesco e tantos personagens e universos acolhidos por uma sociedade afeita ao fabular. Thelma, que se dedica à criação para a TV há 23 anos, costuma fazer uma analogia entre os grupos primordiais e os espectadores modernos: na era primeva, pessoas se juntavam ao redor do fogo com o intuito de contar e escutar causos, o que propiciava um compartilhamento de sonhos e aflições. “Gosto de pensar na telenovela como uma dessas fogueiras, mas do tempo atual. Uma fogueira que, apesar de não ser mais a única, continua capaz de reunir grande parte da nossa comunidade. Pelo menos, acredito que é o melhor papel que as telenovelas têm a realizar”, diz a autora. Alterar esse fogaréu, portanto, ajudou a escancarar, para o país, a incerteza vigente.
E as dúvidas alcançam as produções televisivas de vários jeitos. Na época anterior à implementação do isolamento, Thelma Guedes preparava projetos que, com a eclosão do surto, logo foram reestruturados. “Algumas perguntas se colocam de forma aguda neste momento: quais temas abordar? Devemos tratar ou não da pandemia? O público não estará exausto de ver e ouvir falar disso? Não estará traumatizado?”, indaga Thelma, que escreveu, entre outras novelas, Joia Rara (vencedora do Emmy Internacional em 2014). Da correnteza de dilemas, contudo, surge uma evidência: os indivíduos não são os mesmos. Algo se quebrou, partiu-se em quase 50 mil frações. Por ora. Quantos da audiência terão perdido entes queridos? Quantos terão sido acamados? Quantos estarão desempregados? Visto que a ficção se põe a arquitetar um mundo, como concebê-lo quando o “mundo-mundo” está em frangalhos? E é justamente por estar esfarrapado que o mundo-mundo precisa do inventado. No que tange às narrativas interrompidas, Ligia Lemos frisa a importância do afeto nessa retomada: “Os enredos voltarão do ponto em que pararam? Ou haverá um salto de meses? Não se sabe. De qualquer maneira, deve-se considerar o afeto: o telespectador precisa se lembrar da ligação construída com as histórias, uma reativação de um engajamento emocional”.
Na esfera prática, também acontecerão modificações: protocolos para chegar e ir embora do estúdio, diminuição de viagens, cenários, figurinos e número de atores em cena, aumento da duração das sequências filmadas, desaceleração do ritmo da cadeia produtiva – o que não falta são opções. Beijos, abraços e jantares em família não serão mais imperiosos. Planos alternativos em caso de afastamento de alguém do elenco podem ser ainda mais necessários (em um contexto pandêmico, aumentam as chances de um artista adoecer). Desse montante de informações e cuidados, porém, Fefito ressalta uma lição atrelada a um aspecto econômico: “As emissoras descobriram que dá para fazer atrações com improviso e menos custos. Não falo da contratação ou da dispensa de funcionários, mas sobre compreender que produções nababescas, por vezes, dão resultado semelhante ao de uma videoconferência”, pondera. Esse achado, em certa medida, serve não só para a teledramaturgia, como também para demais setores, do entretenimento ao jornalismo, e corrobora com a tendência de fusão, cada vez maior, da TV com a internet e da internet com a TV.
O desafio que a televisão tem de enfrentar não se mostra menor do que o proposto para outras manifestações artísticas e meios de comunicação. O que não significa que criações e espaços televisivos não darão conta do recado. Pelo contrário: estar em constante mutação é uma característica que acompanha a TV desde muito, muito antes, lá nos anos 1950. E é desse modo, sempre pronta para o próximo passo, que ela conquistou uma criança que dançava Xuxa diante do televisor, uma roteirista que resolveu levar o seu objeto de trabalho para a academia, uma escritora que foi dos livros às telinhas. Fefito, Ligia e Thelma, respectivamente, e um país inteiro.