A escritora e jornalista elabora reportagens enquanto conhece locais importantes para a literatura brasileira
Publicado em 21/11/2019
Atualizado às 17:58 de 26/11/2019
Isabel Lucas, escritora, jornalista e uma das curadoras do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa, viajou pelos Estados Unidos durante um ano. A jornada resultou no livro Viagem ao Sonho Americano, publicado pela Companhia das Letras, em 2017, com 12 textos sobre a literatura norte-americana, desde Moby Dick (1851), de Herman Melville, até Pastoral Americana (1997), de Philip Roth.
Neste ano, a jornalista começou o projeto Viagem ao País do Futuro, uma série de 12 reportagens realizadas enquanto viaja pelo Brasil e mensalmente publicadas na Revista Ípsilon. Em 2020, esses relatos serão reunidos e publicados pela Cepe Editora. Em Portugal, também serão veiculados no Publico, e, no Brasil, no Suplemento Pernambuco.
Isabel Lucas começou esse projeto atual com uma visita aos sertões, aqueles escritos por Euclides da Cunha, no interior da Bahia, seguindo para Alagoas, a fim de mapear as referências de Graciliano Ramos e do seu romance Vidas Secas (1938). No decorrer do trajeto e da vivência com os moradores dos locais onde os enredos se passam, a escritora tece referências a retratos da cultura e dos espaços das narrativas enfocadas.
A expedição deve mapear ainda autores como Clarice Lispector, Milton Hatoum, Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Hilda Hilst, Gilberto Freyre, Erico Verissimo, Jorge Amado, Raduan Nassar, Rachel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade, traçando um panorama sobre ensaio, poesia, crônica e romance.
Em entrevista, Isabel Lucas aborda conceitos que desenvolveu nos textos Brasil, a Crônica dos Vencidos (sobre Os Sertões, obra de Euclides da Cunha publicada em 1902), Para uma História Universal dos Deslocados (a respeito de Vidas Secas, de Graciliano Ramos) e O Futuro do Brasil é um Quebra-Cabeças (Im)perfeito (em que discorre acerca de Dom Casmurro, título machadiano de 1899).
Nas introduções que acompanham suas publicações na Revista Ípsilon, você cita Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst. Quais cidades serão cenários dos textos que você escreverá sobre essas autoras? E, no contemporâneo, quais são as autoras que escrevem literatura em língua portuguesa que dialogam com essas artistas referenciais?
Tal como escolho os autores ou os títulos, tenho cenários de partida que depois podem me levar a outros. No caso dessas autoras, os cenários necessariamente passam por Rio de Janeiro, Recife, São Paulo e Campinas. Mas, durante o percurso, posso sempre fazer desvios. Esses imponderáveis, os acasos, são para mim muito estimulantes – por isso, dentro do planejamento necessário, faço o mínimo de planos. Se me perder, tudo bem, isso fará parte da experiência e irá se refletir no texto final. Os nomes referidos são de mulheres, mas não pensei nelas para diálogos no feminino; pensei pela qualidade de suas obras e pelas referências que representam. Por exemplo, sei que quando falar de Clarice irá entrar Sérgio Sant'Anna e, no trabalho sobre Lygia, estará Julián Fuks. Sei disso pelas leituras e pelos caminhos que já fiz num caso e no outro, porém, não há nada fechado para já. Entrarão ensaístas, cineastas, cronistas, ficcionistas e poetas num quadro de relações marcado pelas minhas leituras pessoais e por cruzamentos que farei com demais textos. Outro exemplo: há paisagens que me sugerem leituras, que me guiam para leituras, e em todos os textos que me falta escrever ainda nada está fechado.
Em Brasil, a Crônica dos Vencidos, sobre Os Sertões, de Euclides da Cunha, você aponta que a obra foi escrita como “ataque em defesa dos vencidos”. Ao mesmo tempo, indica que o povo não propaga essa ideia de representatividade que o livro poderia ter. Qual é a sua percepção sobre os retratos dessa história, que nasce na Guerra de Canudos, tendo como referência o livro e o contato com aqueles que mantêm a memória e os ideais de Antônio Conselheiro?
A minha percepção é que muito do que é o Brasil se explica pelo que se passou em Canudos. Muito poucas pessoas leram o livro de Euclides da Cunha, mas o que ele conta é um reflexo de uma mentalidade que me levou de imediato para os dias de hoje: a ideia de um salvador em quem o povo confia plenamente. É uma ideia messiânica e Antônio Conselheiro é, ao mesmo tempo, a materialização desse pensamento e a configuração de um mito. Falo de vencidos ou de crônica de vencidos porque aquele povo parece continuar à espera. De vez em quando, confia quase cegamente em alguém, como, por exemplo, em Lula da Silva. Durante os governos de Lula, as condições de vida daquelas pessoas foram alteradas: pela primeira vez, tiveram acesso ao que para muita gente é o básico – água, saneamento, educação, mobilidade. Com a saída de Lula do cenário, e a sua prisão, aquele grupo se sente, de novo, vencido. E todos falam dessas duas figuras, Antônio Conselheiro e Lula, como de dois salvadores derrotados por um país muito maior que não conhece esse outro país, o interior do Nordeste, os sertões. É um país que parece não conhecer nem entender o outro. À escala nacional, essa divisão também existe, com a polarização política, a deificação de governantes, a paixão com que se defende aquele em quem se vota. Um país e outro a pensarem em salvadores diferentes, mas esse país unido na tal ideia de salvação. Virá de Antônio Conselheiro? Terá nascido assim o mito de Antônio Conselheiro? Não sei. Ir para lá suscitou-me interrogações que têm a ver também com uma ideia sebastianista que veio de Portugal.
“Do confronto da obra com um dos locais que a terá inspirado sobressai uma espécie de mudez, o silêncio que está na constituição daquelas personagens”: essa colocação vem do texto Para uma História Universal dos Deslocados, sobre Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Esse silêncio, que tem reflexo em olhares curiosos como os de Maria, em Palmeira dos Índios, foi constante em seus trajetos? Como foi ser estrangeira no interior do Brasil e nas capitais Recife e Rio de Janeiro? O silêncio de Maria é o mesmo de Ana, no Rio de Janeiro?
Talvez seja eu que estou atenta aos silêncios, tentando ler sinais no que não é dito. Talvez haja nessa mudez uma sabedoria; talvez haja medo, talvez quem se cale não encontre na linguagem verbal ferramentas capazes, ou simplesmente não queira falar. Talvez eles estejam a observar o estrangeiro que sou eu. Curiosamente, não me senti mais estranha no interior do que numa grande cidade como São Paulo. Há uma familiaridade que não consigo explicar, talvez venha de uma ruralidade que reconheço. O mundo rural talvez não seja muito diferente em Portugal ou no sertão. Ele é feito de muitos silêncios também em Portugal. O silêncio de Maria é diferente do de Ana porque elas carregam referências e paisagens muito diferentes. Ana contou-me histórias; Maria olhou-me à espera das minhas histórias, por mais que eu perguntasse por ela. No Rio, posso ser só mais uma. No sertão, ou nos sertões, todos dão por mim, não tenho o anonimato que me protege dos olhares. Lá, sou alvo de curiosidade; uma "estrangeira" que eles acolhem quando percebem que falamos a mesma língua, que temos palavras comuns para experiências comuns. Quando fazem uma pausa silenciosa entre uma conversa é como se estivessem a viver um momento de cumplicidade. Falo do silêncio individual, porque na rua o Nordeste não dá sossego. Como é que esse silêncio convive com a música mais ruidosa? Talvez essa música, numa explicação demasiado fácil, seja para preencher esse silêncio.
Geovani Martins, personagem do texto O Futuro do Brasil é um Quebra-Cabeças (Im)perfeito, sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis, tem o ritmo das ruas nos seus escritos e você aponta Miró da Muribeca, de Para uma História Universal dos Deslocados, como poeta das ruas. Essa localização do escritor no território externo faz parte das suas investidas ou acontece ao acaso? Quando isso ocorre, como você constrói as relações com o autor cânone?
As ligações com o autor cânone, como refere, podem acontecer de muitas maneiras. Por vezes, são ligações óbvias, mas tendo a privilegiar o caso. E eu ando pela rua. Antes de tudo, saio com os livros. Eles podem levar-me a um mundo interior ou à deambulação pela rua. Com Raduan Nassar, senti-me a espreitar pelas janelas, a ver um mundo de sombras, de interditos. No Recife e no sertão, andei muito na rua porque os autores me levaram sobretudo a isso. No Rio, senti que me instigava a sair, pois, por mais que Dom Casmurro seja um romance doméstico, fala de um tempo e eu senti que deveria colocar esse tempo de Machado de Assis a dialogar com o tempo atual, com as vozes que atualmente povoam o Rio em torno de um sentimento que percebi como coletivo: a traição. A cidade traída pelo seu próprio país. Ouvir Miró, no Nordeste, e Geovani, no Rio, ajudou-me. Eles refletiam um território, davam-lhe sentido e foram grandes auxiliares na minha leitura desses lugares.
No tocante ao livro Os Sertões, você faz uma leitura sobre a paisagem, ressaltando o céu laranja e os mandacarus. Já sobre Vidas Secas, lemos: “quanto mais se viaja pelo sertão, ou pelos sertões, mais estas imagens se fixam, como todos os odores, luzes e sombras”. Você leu novamente alguma dessas obras depois das viagens? Essas imagens são memórias, da primeira leitura e das viagens, ou foram investigadas, mais uma vez, nos livros?
Vou sempre relendo. Revisito as obras ao longo do percurso e misturo as minhas primeiras imagens – construídas antes de pisar nos territórios – com aquelas com que me vou deparando e o que resulta disso é um confronto de experiências. Faço novos sublinhados, reparo em coisas a que antes não dera muita importância, estabeleço conexões novas. Isso faz parte da viagem, uma mistura de sensações que tento passar a quem me lê – que, por sua vez, terá outras referências e poderá fazer as suas próprias ligações ou leituras. São experiências singulares, irrepetíveis.
Em Para uma História Universal dos Deslocados, você afirma: “como os personagens de Vidas Secas, Miró não tem casa, vive à margem, é um eterno deslocado, um retirante na sua própria cidade”. Em que proporção a literatura aproxima esse fenômeno do sertão que obriga as pessoas à mobilidade e o sujeito dos grandes centros, que não se encaixa no fluxo das cidades?
Acho que depende de cada um dos sujeitos e do tipo de literatura ou de livro. Um dos efeitos da literatura é a capacidade de criar empatia. Se um livro for capaz disso, já fez alguma coisa na aproximação entre sujeitos diferentes. Na cidade ou no sertão, a essência dos indivíduos é a mesma, o que os distingue são, mais uma vez, as referências. Mas todos sabem o que é o medo, a dor, a alegria ou a tristeza, a falta, a perda, o amor e a certeza da morte.
Você menciona a extensão continental do Brasil, considerando que isso impacta diretamente nas relações entre Norte e Sul, Nordeste e Sudeste. Em relação à língua, quais "traduções" da literatura brasileira foram necessárias para compor seus textos e quais são imprescindíveis para os leitores de língua portuguesa ao redor do mundo?
Muito poucas. Em Portugal, nenhuma tradução. No Brasil, alguns ajustes de vocabulário por ignorância minha. Em Portugal, dizer “mulato” não tem problema, no Brasil, tem uma conotação diferente. É um exemplo que reflete como vou aprendendo a lidar com a linguagem. Em Portugal, conheço os preconceitos e as sensibilidades; no Brasil, vou aprendendo e tento encontrar a palavra certa que diga o máximo possível, num lugar e noutro, do que pretendo transmitir. É como se eu fosse uma espécie de filtro por onde passa a tradução: antes de poder contar, tenho de traduzir para mim mesma. E, depois, pedir ajuda quando sinto que, na geografia que não é a minha, estou a falhar. Não sei se um brasileiro do Sul não terá de passar por um processo parecido se quiser narrar o Norte, e vice-versa. É a língua a ajustar-se à experiência, e ir percebendo a vastidão e a elasticidade da língua é fantástico.