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Leno Veras: "A construção da memória é uma batalha central no século XXI"

O curador aborda as políticas e as tecnologias da lembrança e do esquecimento, a partir de pesquisas que desenvolveu no mestrado e no doutorado

Publicado em 23/11/2020

Atualizado às 17:20 de 16/08/2022

por Duanne Ribeiro

Nossas práticas, tecnologias, instituições dão forma ao tempo – demarcam o presente, projetam o futuro, constroem e reconstroem o passado. É na investigação de como se dá esse processo e na renovação dos meios de efetivá-lo que se encontra o trabalho do curador Leno Veras. Nesta entrevista, Leno comenta suas pesquisas, a relação entre memória e política e a importância de compreender o papel da internet e das mídias sociais nesse contexto. Além disso, fala de como sociedades se lembram e do que elas esquecem e seria preciso fazer vir à tona outra vez.

Veja também:
>> Transversalidade da memória propõe debate sobre arquivo, museu e sociedade

Doutorando em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com uma passagem pela Universidade de Londres, Leno é mestre em comunicação e sociedade pela Universidade de Brasília (UnB), tendo produzido aí a dissertação “Cápsulas do tempo – memória e amnésia: iconologia imagética em espaço mnemotécnico“. No mestrado e no doutorado, fala da curadoria de acervos – no primeiro caso, reorganizou arquivos pessoais; no segundo, analisa “máquinas do tempo” – entre elas, os museus, em que várias camadas temporais interagem.

Além desses estudos, Leno atua em exposições, projetos editoriais e ações educativas. É, por exemplo, consultor do projeto Transversalidade da Memória, plataforma do Itaú Cultural dedicada a estimular diálogos sobre práticas nesse campo do conhecimento. Outra parceria de destaque de Leno com o IC foi a curadoria de Modos de Ver o Brasil: Itaú Cultural 30 Anos (2017) – evento que, diz ele, experimentou “temporalidades em diálogo” e lhe sugeriu um método (assista à sua fala gravada à época da exposição). Ademais, ele é curador do Abre-te Código, programa que estimula projetos digitais com base no acervo de instituições culturais e é apoiado pelo IC. Leno é também coordenador de museologia do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), no Rio de Janeiro.

Leno, no workshop Entreolhares de 2019, em visita à exposição Voz Ativa - Biblioteca Social, da Casa do Povo (imagem: Fernando Genaro)

Em seu doutorado, você pesquisa sobre a noção de cápsula do tempo. Em sua dissertação de mestrado, ela também é importante. Gostaria que comentasse em que esse conceito o atrai e quais as aplicações e que desdobramentos ele tem tido em seu trabalho.

As cápsulas do tempo são uma prática que me inquieta desde sempre; e só de lançar mão de uma expressão temporal como essa já se evidencia a potência desse objeto de pesquisa – desde os sarcófagos egípcios aos pen drives, as formas desses sistemas de memória são imagens que me interessam.

No mestrado, desenvolvi um experimento de reorganização de meus arquivos digitais (bastante influenciado naquele momento por leituras de arqueologia dos meios). Naquele momento, eu estava estudando mais a relação entre imagens e espaços. Exemplos famosos como os discos de ouro da sonda Voyager, portadores de imagens, sons e textos que representam a experiência humana neste planeta, são curadorias da informação que têm ainda pouco reconhecimento como práxis.

Não era ainda propriamente sobre o tempo que eu estava falando, porque a ação de encapsular é encerrar um momento, podendo haver ou não um programa a ser cumprido na reabertura de uma cápsula. E este é um ato que, majoritariamente, representa um dado recorte no tempo. Uma ruptura na linearidade progressiva do tempo.

Foi aí que eu comecei a pensar nos viajantes temporais e nas máquinas do tempo, que são meu brinquedo novo (risos), pois estou pensando nisso agora para o doutorado: museus como dispositivos que maquinam regimes de historicidade e constroem diagramas de temporalidade.

E isto tudo é fundamental para meu trabalho com curadoria, assumir o anacronismo como uma possibilidade de articulação de tempos passados, presentes e futuros, por meio de suas imagens, memórias ou imaginações: narrar por meio de associações contra-cronológicas, nos livrando, nem que por um momento, da incansável flecha da história.

Na exposição Modos de Ver o Brasil, realizada na Oca, no Ibirapuera, nós exercitamos esse viés através de constelações de obras da coleção do Itaú Cultural – nunca cronologicamente, ou melhor, experimentando temporalidades em diálogo. Peguei gosto e tenho empreendido este método como base para minhas curadorias.

No mestrado, a proposta parece ser a de se contrapor a modos atuais de construir a memória. É a ideia de criar a memória para além das técnicas hegemônicas pelas quais a construímos. Essa descrição é válida. Como você apresentaria esse debate?

O debate sobre memória social é central para o momento que atravessamos: a problemática das origens coloniais de grande parte das instituições de memória, história e patrimônio, associado ao negacionismo histórico e revisionismo reacionário que impregna nosso cenário atual, surtiram efeitos devastadores.

É frente a esse contexto que se faz urgente conhecermos as estruturas que constituem a memória coletiva, suas arquiteturas e engenharias, pois são essas edificações discursivas que alicerçam discursos distorcidos e debates conservadores. Libertar-nos dessa prisão torna-se cada vez mais difícil.

Sendo assim, as técnicas hegemônicas de construção da memória na esfera pública são, de fato e efeito, uma batalha central da democracia no século XXI. Me interessa abordar este campo com um viés que investiga suas estéticas, mas também suas políticas, hoje mais que nunca tecnocráticas.

Aí é que a digitalização entra na equação como uma nova variável, e, consequentemente, as tecnologias de comunicação e informação se centralizam como metodologias de controle estruturantes do exercício do poder. Não é para menos que hoje nós assistimos estados em embates frontais com corporações.

Plataformas como o Facebook (com as “lembranças de hoje”) ou outros dispositivos (que nos monitoram e podem devolver “estatísticas” das nossas experiências) se colocam como forte vivência cotidiana da memória. Como você os enxerga?

As plataformas de interação via redes sociais são casos específicos de investigação, por sua dimensão e abrangência, por sua mecânica e potência; sabemos ser ferramentas essenciais aos mecanismos de controle social contemporâneo, ao mesmo tempo que também são espaços de resistência.

É um tema de pesquisa complexo, cuja profundidade ainda nem conseguimos vislumbrar com clareza, mas, da perspectiva que trabalho, há uma convergência bastante evidente, já que é identificar as linhas do tempo da interação entre nossos avatares digitais como prática de memória coletiva.

Os meios de comunicação como extensões do homem, nos dias de hoje, são facilmente aferíveis como ferramentas mnemotécnicas – basta observar em que arena os debates políticos têm se consolidado, sobretudo a partir da segunda década do século XXI. A numerização da vida é fenômeno complexo.

As mídias não são isentas, nunca foram e jamais serão. Desde os panfletos gutemberguianos que a circulação é um eixo cervical dos embates na esfera pública, atualmente acrescidos de intervenções algorítmicas, mecatrônica, telemáticas... fácil apenas é aferir que o controle se intensifica.

Importante, nesta perspectiva, é compreender que precisamos dominar essas linguagens para avançar na disputa política, e que já estamos bastante atrasados na capacitação da sociedade civil para uma autorrepresentação. Urge pensarmos nas economias políticas e nas políticas econômicas da comunicação.

Outro conceito importante em sua dissertação é o de esquecimento. Nossas sociedades não o suportariam – é preciso registrar tudo, lembrar de tudo. Você fala, então, de um “elogio do esquecimento”. Gostaria que comentasse.

O Esquecimento é a outra face da moeda da Memória. Não existe a escolha sem o descarte. E é, justamente, essa uma questão importante: é preciso dar a ver o que não foi historicizado, memorizado, patrimonializado. Tanto ou mais do que, como exemplo, o que foi musealizado por sociedades assentadas em epistemicídios.

O “elogio ao esquecimento”, nesse sentido, busca pôr foco nesta parte do fazer mnêmico, que é, propositalmente, apresentado como se seus procedimentos não fossem dirigidos. Quantos idiomas de povos originários já aniquilamos? Como resgatar sistemas culturais interditos por perseguições e proibições?

Da mesma forma, em um ecossistema midiático embasado na experiência contínua de estímulos imediatistas, estamos cada vez mais sendo desconectados de uma abordagem comparativa, que tem em vista distintos processos concomitantes, tais como os culturais, sociais, políticos e econômicos.

É preciso visibilizar estas dinâmicas para que possamos criar mecanismos de enfrentamento das práticas de apagamento, panorama cujos sintomas emergiram no debate público de maneira avassaladora nos recentes levantes contra monumentos racistas, machistas, misóginos, homofóbicos... creio ser o caminho.

Em um estágio do doutorado, você analisa os museus como “máquinas do tempo”. Gostaria que explicasse essa conceituação e avaliasse o quanto ela pode se aplicar a outros espaços culturais e educacionais – e talvez de outros tipos.

A maquinação temporal é meu objeto de pesquisa para a tese de doutorado e tem sido muitíssimo interessante investigar os museus sob essa ótica, pois uma abordagem historiográfica, sobretudo no campo cultural, evidencia os usos, principalmente os abusos, dos regimes de historicidade que implementamos.

Me interessa mais especificamente identificar como diferentes escalas temporais se manifestam em tipologias museológicas distintas, em como períodos, momentos, fatos históricos, são acionados ou não, corroborando com discursos que estruturam nossa experiência de tempo presente.

Identificar as ordens dos tempos, os estratos de tempo, as linhas do tempo, suas continuidades e descontinuidades – sobretudo após 1989, com a desconstrução de um ideário moderno, direcionado ao futuro – me parece fundamental para questionar o que chamamos, há trinta anos, de contemporâneo.

Compreender que os museus, como uma tipologia de instituições de memória que coaduna com determinados mecanismos historicizantes e dinâmicas temporalizantes, são co-responsáveis pela experiência do tempo presente como descontinuidade, tem sido importante para propor novas estratégias.

Você atua com memória não só nos campos da comunicação e da arte como agencia debates nesse sentido em diversas áreas. Pode falar um pouco das potencialidades e dificuldades da memória como conceito e área transversais? No seu trabalho – e de forma geral –, como você lidou com isso?

A transversalidade da memória é uma característica chave para uma compreensão do campo, interdisciplinar por excelência. E isto me interessa, justamente, por ser esta uma potencialidade que penso ser capaz de incitar os debates necessários: a diagonalidade pode contribuir, a um só tempo, com o combate à verticalidade e com a defesa da horizontalidade – tema premente às práticas curatoriais de hoje.

Quanto mais experimento ampliar a permeabilidade do debate com áreas do conhecimento e campos de atuação alijados pela estruturação racionalista dos saberes e fazeres, mais complexas se tornam as imagens resultantes como quadro geral. A memória como denominador comum, justo por ser diversa.

É um desafio. Teoricamente, parece mais fácil do que é na prática, justamente porque o tempo é um conceito complexo, cada vez mais tensionado pelas descobertas de frentes de pesquisa, tais como a da física quântica, que tem avançado no entendimento do tempo como relacional, pertinente às perspectivas.

Nos situamos, especificamente na experiência do ciberespaço, entre “não temos tempo a perder” e “temos todo o tempo do mundo”. Essas passagens temporais que interconectam essas constelações de memórias são ferramentas importantes para uma compreensão mais complexa das histórias.

Nos reposicionarmos frente a esses paradoxos me parece ser não somente importante, mas urgente, para que seja possível nos situarmos. Trata-se de uma experiência de mundo essencial para que nós, uma humanidade em desterramento, possamos retomar as perguntas de onde viemos e para onde vamos. Quem somos, o tempo dirá.

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