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Livro conta a saga de migrante que cruzou 4 mil quilômetros do Pará ao sul do país

Ana Sousa Werner, a dona Ana, foi dada como morta e regressou para o seu povoado 40 anos depois

Publicado em 30/11/2021

Atualizado às 11:34 de 11/02/2022

por Cristiane Batista

O real e o imaginário se misturam em Dona Ana, livro com fotos de Tiago Coelho e texto de Ana Sousa Werner, a dona Ana. Nascida no Pará, ela migrou para o sul do país aos 17 anos, foi dada como morta pela família e voltou à sua cidade natal 40 anos depois. O projeto, de 96 páginas, foi contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural e será lançado em janeiro de 2022.

“É uma história de esperança, busca pelo passado, resgate de origens, reencontros, amor, paixão e fé, e que também reflete sobre a complexidade das relações sociais que temos aqui dentro do Brasil”, conta Tiago, professor de fotografia e idealizador da publicação. Sua relação com dona Ana vem de longa data. Ela trabalhou como babá para sua família quando ele era criança. “A primeira lembrança que tenho dela é de seu sorriso. E, como boa contadora de histórias que é, sempre povoou meu imaginário com suas memórias – repletas de onças, cobras, macacos, tatus, rios e florestas –, que, para mim, pareciam saídas diretamente de uma fábula.”

Quando criança, dona Ana ouvia lendas do folclore brasileiro: histórias sobre a Mãe-d’água, metade mulher, metade peixe, que assoviava de dentro do rio; sobre o Curupira, guardião das florestas “que cantava nas matas como gente”; e também sobre lobisomens, “demônios que se apossavam do corpo das pessoas e as transformavam em animais como porcos, cachorros ou bois”. “Além da onça, que perseguia a mim e aos meus irmãos de verdade”, afirma ela.

Ana Sousa Werner nasceu em um povoado que hoje se chama Vila do Japim, no município de Viseu, a 320 quilômetros da capital paraense e na beira do Rio Piriá, conhecido pelas suas corredeiras e pelo bom banho de água doce. Filha de pais lavradores, cresceu junto aos dez irmãos debaixo de pés de bananeira, sob a supervisão da mãe e da avó. Aos 8 anos, já trabalhava na roça plantando algodão, milho, cana e macaxeira. Aos 17, resolveu ir embora para a cidade e avisou só a mãe, hoje falecida. De lá foi para Belém, depois para São Paulo e, já casada e com três filhos, para Santo Antônio da Patrulha, no Rio Grande do Sul.

Fotografia mostra um home, com camisa escura, grava e calça clara. Ele segura um livro. As paredes da casa apresentam quadros e espelhos. Há uma cadeira esverdeada ao fundo.
(imagem: Tiago Coelho)

Tiago tinha 6 anos quando Ana chegou à sua casa. Ela tinha 49 e havia perdido contato com as pessoas de seu estado. Resolveu aprender a ler e escrever por interesse pessoal e também para poder buscar por seu passado. Matriculou-se em um curso de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e se formou no primeiro grau, que hoje corresponde ao Ensino Fundamental. “Foi por necessidade. Não saber ler nem escrever é como se a pessoa fosse cega e não pudesse enxergar as coisas”, conta ela. 

Em 2010, dona Ana recebeu um dinheiro inesperado, um resgate do FGTS que tinha um valor muito maior do que ela imaginava. À época, fazia 40 anos que não tinha notícias da família, e decidiu que era hora de resgatar suas origens e voltar à terra natal na esperança de rever os irmãos. Pediu a Tiago que fizesse um retrato da família que constituíra no Sul, para o caso de encontrar a família do Norte. “Foi quando resolvi ir junto, para ajudá-la na busca e também para documentar o percurso, tendo a fotografia como nossa companheira. Porque me interessa muito a ideia de imaginação e relato. Escolhi a fotografia como ferramenta para estudar, conhecer e entrar em diferentes realidades, para construir contatos pessoais e conexões mais profundas com temáticas e personagens”, explica Tiago.

Partiram, então, para a viagem: avião, depois mais dois ônibus e muita estrada de terra. Dona Ana dava suas impressões sobre o caminho, contava sobre o entorno, as comidas, a fisionomia das pessoas. No segundo meio de transporte, quando comentavam sobre a busca, uma desconhecida os interpelou: “Você é a Ana, a falecida?”. “Foi quando descobri que todo mundo achava que eu tinha morrido, menos meu irmão Albino, que tinha feito uma promessa de orações e sessões de jejum para eu voltar. E voltei! No nosso reencontro, choramos que só faltava desmaiar. A máquina até trancou, parou de funcionar”, conta ela emocionada.

“Foi o ápice! Ninguém acreditava no que estava acontecendo. Todos abraçados, em silêncio. A câmera voltou e fiquei ali, registrando o momento, e depois os outros dias. É importante lembrar que por lá não havia luz elétrica em 2010. A tradição oral de passar os saberes é geral da família e do povoado. É interessante porque sempre passa a sensação da pessoa que conta a história, cujos significados são ricos justamente pelas interpretações dos casos e pela linguagem que cada um usa para reconstruir a relação de importância, mistério e felicidade, a maneira de perpetuar. Uma mesma história que me atravessou, da onça que perseguia a família, foi contada de maneiras diferentes pelos irmãos Adaltina, Albino e Ana. Como era a onça que perseguia as crianças? Ela perseguia mesmo ou só ouviam os ruídos dela? O pai matou a onça? Não? A onça era um bebê onça?”, indaga Tiago.

Quando o fotógrafo resolveu publicar a primeira versão do livro na forma de um pequeno zine, em 2013, dona Ana reclamou que havia muitas páginas em branco e que o resultado final, segundo ela, não chegava nem perto de contar sua história de forma satisfatória. Fez, então, pauta nos espaços que estavam em branco e resolveu redigir, ela mesma e de próprio punho, a sua história.

O texto percorre memórias de infância, a vida na roça, a mudança para a cidade, o estranhamento do frio quando chegou ao Sul e as mudanças internas pelas quais passou, incluindo o fato de que não gostava de lavar roupa e de cozinhar, mas agora faz essas atividades com gosto: “Meu prato mais famoso é a feijoada, e também faço uns bifinhos bem bons”, conta orgulhosa.

Tiago também mudou nos 12 anos em que o projeto precisou amadurecer para ficar pronto. “Como fotógrafo e como pessoa. Nunca tinha ido ao Norte do país, tinha apenas referências fotográficas. Foi uma oportunidade para questionar estereótipos e buscar uma construção artística que mesclasse os nossos imaginários, meu e dela, com a realidade. Vivenciei essa experiência e ela segue transformadora na minha vida e no meu trabalho. E essa história, por mais que parta de algo pessoal, reflete a situação de grande parte da população brasileira que migra para outros estados e atravessa o país levando na bagagem seus sonhos, suas expectativas e sua própria cultura”, reflete.

Tiago e dona Ana voltaram ao Pará juntos mais uma vez, para dar sequência ao trabalho. Ela organizou as fotos impressas em dois álbuns com imagens em formato 10 × 15 centímetros. Uma delas agora mora em um porta-retrato na casa de sua família na pequena Vila do Japim, que em breve deve receber o livro também, com textos traduzidos em inglês e espanhol. A previsão de lançamento é para o começo de 2022. “Primeiro em Porto Alegre, presencialmente, com direito a sessão de autógrafos. Depois queremos lançá-lo em outros lugares e fazer com que essa história também chegue ao Pará”, finaliza Tiago.

Fotografia mostra Ana olhando pela janela do ônibus. O registro foi feito através das cortinas azuis do veículo.
(imagem: Tiago Coelho)
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