Autora-destaque de abril do Cantinho da Leitura, ela recupera narrativas de sua infância por meio da arte literária
Publicado em 02/05/2019
Atualizado às 16:29 de 03/05/2019
por Heloísa Iaconis
No sítio Asahi, localizado a quase 7 quilômetros de Duartina, cidade no interior de São Paulo, a miúda Lúcia aguardava, mês a mês, uma encomenda do Japão: de lá vinham livros para crianças por meio de uma assinatura feita por seu pai. Esses títulos se juntavam aos demais que estavam pela casa, uns de sua mãe, outros de seus avós. Detalhe: todos em japonês. Antes de entrar na escola, a menina assimilou, por insistência, a língua oriental e, desse modo, passou a se virar sozinha com as narrativas que a cercavam. No colégio, alfabetizou-se em português e, desde então, a sua sensibilidade transita, naturalmente, entre os dois idiomas. Com o coração um tanto nipônico, um tanto brasileiro, a garotinha cresceu e se tornou a escritora e artista plástica Lúcia Hiratsuka, cuja obra ganhou realce, nos fins de semana de abril, no Itaú Cultural.
Contemplada com uma bolsa de estudos da Universidade de Educação de Fukuoka, em 1988 Lúcia empreende uma pesquisa acerca do livro ilustrado. Ainda na ilha de Kyushu, expõe desenhos que retratam paisagens e personagens folclóricos do Brasil. Ao retornar da viagem, começa a se empenhar em um processo contrário: resgata contos de sua infância, aqueles enredos que enchiam o seu lar, e os transporta para o público daqui. Por intermédio de textos vivos e traços delicados, a autora traz causos de Mukashi (ou seja, de tempos antigos), a trajetória de Muli, uma das criaturas que habitam o Vale dos Monstros, e a jornada de Orie pelo rio de águas e palavras, fora a vontade de aprender de Issum Boshi, o pequeno samurai. Num universo em que os pássaros querem colorir as suas penas e o chão tem peixes, a ilustradora ergue uma poesia que estimula o leitor a descobrir – emoções, belezas, ensinamentos.
O lirismo abundante das tramas de Lúcia destacou-se no Cantinho da Leitura, espaço que recebeu, no domingo 21 de abril, a presença da própria artista – que conferiu de perto criações suas postas entre as crianças e vibrou com a contação de histórias comandada por Mariana Per. Além de ter prestigiado a programação, a inventora de Momotaro, o tal menino que nasceu de um pêssego, fala sobre o seu percurso e o seu trabalho. Confira a entrevista a seguir.
Como surgiu e se desenvolveu a vontade de desenhar e escrever?
A sementinha estava lá. Quando notei que a minha ligação com o mundo poderia acontecer por meio dos livros, pensei que poderia trabalhar com desenhos, desenhos que contam histórias. Ficava imaginando: se um dia encontrar um professor de desenho no país… A minha mãe até pesquisou na região. Havia um tio que desenhava, mas eu morria de medo dele e não tive coragem de chegar perto. Pensei até em viajar para o Japão caso não achasse uma escola por aqui. Soube então que, na capital paulista, existia o que desejava. No colegial, fui para São Paulo com o intuito de fazer um curso de desenho. Os meus pais permitiram, já que os meus tios moravam na metrópole. O meu primeiro emprego foi na Rua 25 de Março, onde elaborava desenhos para quem ia comprar tecidos. Faltava, porém, uma trama ali. Na faculdade, iniciei uma busca pela narrativa, procura essa que me levou à literatura infantojuvenil.
Depois do Ensino Superior, veio a pergunta: qual trabalho será o meu? Em 1991, saí do banco, local em que trabalhei para pagar os estudos, e passei a me dedicar só às ilustrações. Os meus projetos emergiram nesse período e as lendas japonesas foram as primeiras. Sempre quis recontar algo que poucas pessoas poderiam transportar para o português. Foi um desafio grande pensar e construir esses “recontos”.
Em relação ao seu fluxo de criação, como ele ocorre?
No princípio, eu caçava os enredos. Nessa investigação, interessava-me pela forma, pelo como contar. Com os anos, as histórias passaram a me procurar. Nesse andamento, percebi que precisava ser tocada, em geral, por uma questão semelhante àquelas que apareceram, para mim, na época em que morava no sítio: qual é o meu papel?, por que sou deste lugar?, como ter um caminho profissional que se alie ao que gosto? Aí estavam e estão as prosas. À medida que adentrava na maneira de contar, incluí os desenhos, as palavras, o roteiro. E fui atrás de tudo que poderia estudar. Aos poucos, aprendi a reconhecer, na simplicidade, as histórias. Na hora de ilustrar, por vezes a cena se transforma e, no fim, não é mais a mesma. Concomitantemente, faço e descubro a ficção.
Qual é a sua opinião a respeito da literatura infantojuvenil brasileira hoje?
Há muita gente investindo nesse campo, o qual apresenta possibilidades várias. Vejo artistas novos produzindo, participando de feiras em que o livro é confeccionado artesanalmente. Editoras pequenas, por exemplo, entram no mercado e aumentam as oportunidades. O livro ilustrado também avançou: formatos novos, maior possibilidade de gráficas.
Existe algum assunto que não se deve dizer às crianças?
Em relação ao tema, não. Quanto à forma, sim. Os contos populares são um jeito de abordar tudo, mas com diferenças para o tratamento adulto. Ao criar, pergunto a mim mesma: com 7 ou 8 anos, eu iria gostar de ler isso? É um questionamento frequente. Deixo um monte de coisa na gaveta, refaço bastante. Muito do que deixo guardado acabo por, à frente, retomar – a produção e eu amadurecem. Por esse motivo, aliás, não anoto tanto: o grão de uma história permanece me provocando. Inspiro-me em lembranças minhas, relatos familiares, episódios vistos na rua. Inspiro-me no que me emociona. E, após o lampejo, vem a decisão: precisa sentar e colocar certa disciplina.
Como foi a sua visita ao Cantinho da Leitura?
Cantinhos assim sempre me surpreendem pela quantidade considerável de adultos. Tenho paixão pela leitura compartilhada com pais, responsáveis, professores. Não se trata apenas do ato de ler: enfatiza-se o afeto com o outro. No domingo em que fui ao Itaú Cultural, assisti à contação de Mariana Per, com quem me encontrei em outros eventos. Nós nos admiramos mutuamente, e esse sentimento reforçou a alegria da visita.