Cineasta e escritor Lucas Litrento comenta o desenvolvimento do roteiro do filme
Publicado em 19/12/2022
Atualizado às 16:29 de 16/12/2022
por André Felipe de Medeiros
O dia 9 de fevereiro de 1912 entrou para a história do Alagoas, e do país como um todo, por uma série de atos violentos contra terreiros e praticantes de religiões de raízes africanas em Maceió. Conhecida como Quebra de Xangô, ou Quebra de 1912, a data tem seu impacto refletido na cultura do estado até hoje. Como o escritor e cineasta Lucas Litrento explica, “a questão central no Alagoas, assim como em grande parte do Brasil, é o silêncio”.
Lucas desenvolve esses temas, tendo a Quebra como um de seus pontos centrais, em seu próximo filme, Mocambo, documentário guiado pela experimentação e pela música, principalmente o rap. A produção, que teve pesquisa e roteiro viabilizados pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020 e está hoje em fase de captação de recursos para sua realização, investiga o racismo enfrentado em Maceió nos dias de hoje, uma realidade que possui muitos paralelos com o que é vivido em todo o território nacional.
“Aqui em Alagoas, como em todo o país, há esse neocolonialismo muito forte, com muitos resquícios do século passado”, conta o artista. “O racismo nem é discutido em muitos lugares do estado, porque as pessoas têm dificuldade em se reconhecer como negras, tamanha a violência. Como é um estado pequeno, talvez seja um ensaio do Brasil em miniatura. Isso potencializa ainda mais os problemas, tanto que vários números colocavam Alagoas como um dos estados mais violentos para os jovens negros. E esse mesmo Brasil problemático é também o Brasil da resistência, é o Brasil do Quilombo dos Palmares.”
Do rap ao drible
Religião, esporte, música e dança são alguns dos elementos que constroem a argumentação de Mocambo. “Como o filme quer entender o universo diaspórico, as saídas e os silêncios de que a população negra alagoana trata e com os quais convive, eu quis abordar temas que são bem caros e que servem de mediação, e também de drible”, explica Litrento. “Eu falei de drible como uma metáfora aqui, mas até literalmente o esporte e a música entram como ferramentas, como gritos, como formas de saída que jovens da periferia encontram – por isso que há também menção a rappers no filme, como os que trabalham dentro do ônibus.”
O eixo narrativo do filme tem inspiração na faixa “Capítulo 4, versículo 3”, que Racionais MC’s gravou em seu clássico disco Sobrevivendo no inferno (1997). “É um grupo de artistas dos mais relevantes”, diz o cineasta, “um dos nomes mais fortes da poesia contemporânea. Vejo em Racionais uma fonte de inspiração para minha literatura e para meu cinema, e até uma forma de integrar essas artes – porque o rap é isso de samplear os sons e unir ritmos, mas também na [minha] questão de encará-los, de entendê-los, como literatura brasileira mesmo. Quando jogo nas mesas as minhas referências e construo o meu cânone, coloco Racionais. Acho que bagunça um pouco essa noção mais clássica de ‘cânone’ e faz com que eu veja construída a minha obra de uma maneira também mais atual, que me faz pensar nos modos de colocar política dentro dela. Para mim, Racionais permanece como o pensamento mais radical de colocar política dentro da arte, sabendo como dosar isso.”
Para saber como desenvolver todos esses tópicos no formato audiovisual, a pesquisa foi “tão rica”, nas palavras do artista, que transformou a ideia de Mocambo como um curta-metragem, como fora concebido inicialmente em 2019, em um projeto de longa. “Acho que os descaminhos pelos quais Mocambo passa só reforçam a ideia de circularidade, a ideia de errância, que é natural na afrodiáspora”, comenta Litrento. “Acho que será um longa-metragem com um ar bem diferente, um respiro experimental bem interessante, em um caminho que não é comum nos documentários, mas que abraça o descaminho pelo qual passou durante o processo de pesquisa e desenvolvimento do roteiro.”
Falar de racismo no Alagoas é também quebrar o silêncio cultural sobre esse tema, imposto por episódios como a Quebra de Xangô há tantos anos. “Eu entendo como circularidade – a gente fala porque é o que a gente está sempre vivendo, respondendo e sofrendo”, conta o autor. “É um pensamento circular mesmo, mas o objetivo maior é que certos problemas sejam sanados. Mas, para transformar isso, não basta apenas mudar a cabeça das pessoas, é preciso que o próprio sistema seja implodido. A gente precisa de uma educação que passe por todos os níveis de uma discussão macro, que envolve comportamento, economia, educação e arte. É uma coisa muito ampla.”