O lançamento comemora os 50 anos de produção literária do autor, responsável por personagens como Ed Mort e o analista de Bagé
Publicado em 17/02/2023
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
por André Bernardo
Na década de 1980, Luis Fernando Verissimo conciliava o trabalho no jornal Zero Hora com a agência MPM Propaganda, em Porto Alegre (RS). No primeiro, exercia uma função que nem existe mais no jornalismo: a de copidesque – o revisor que, na medida do possível, tentava melhorar o texto dos repórteres. No segundo, criava anúncios e campanhas como redator publicitário. Com seu bom humor habitual, explica que trabalhava em dois empregos para garantir o “uísque das crianças”: Fernanda, Mariana e Pedro.
Numa manhã qualquer de 1987, Verissimo foi chamado à sala de um dos sócios da MPM. Lá, recebeu uma proposta inusitada: escrever um romance. O objetivo do diretor era dar o livro de presente aos clientes da agência no Natal. Verissimo entregou a encomenda em tempo recorde: dois meses. Detalhe: até então, só tinha escrito crônicas e publicado 15 livros desse gênero, alguns deles já famosos, como Ed Mort e outras histórias (1979), O analista de Bagé (1981) e A velhinha de Taubaté (1983).
Publicado em 1987 pela L&PM e relançado em 2005 pela Objetiva, O jardim do diabo foi o primeiro dos seis romances que escreveu ao longo de seus 50 anos de carreira. O seu livro de estreia foi O popular: crônicas ou coisa parecida, lançado em 1973 pela José Olympio. “O romance de LFV que está mais vivo em minha memória, inclusive a afetiva, é O jardim do diabo”, afirma o escritor Sérgio Rodrigues, autor de O homem que matou o escritor (2000), O drible (2013) e A vida futura (2022), entre outras obras. “Talvez por ser o primeiro, pela carga de revelação que trazia. É possível também que o fato de ter saído a princípio numa edição não comercial tenha contribuído para uma certa aura. Eu me lembro de compartilhá-lo com amigos como um segredo precioso e divertidíssimo.”
Verissimo nunca pensou em ser escritor. Quando criança, sonhava em ser aviador; mais tarde, cogitou ser cineasta. Foi pensando nisso que, em 1962, ele se mudou para o Rio de Janeiro. O plano era ganhar dinheiro e seguir para Londres. Não deu certo. Em compensação, conheceu Lúcia Helena, com quem se casou e vive até hoje. “O casamento é como um número de trapézio”, compara em “Trapezista”, crônica de As mentiras que os homens contam (2000). “Um precisa confiar no outro até de olhos fechados.”
Em Porto Alegre, o casal fixou residência na casa do pai de Luis Fernando, o escritor Érico Verissimo (1905-1975), no bairro de Petrópolis. Foi o autor de O tempo e o vento, aliás, quem lhe apresentou Paulo Amorim, que o convidou, em 1967, para fazer uma experiência no Zero Hora. No jornal, fez de tudo, de horóscopo a editorial. Em 19 de abril de 1969, assinou sua primeira coluna. A crônica “Entrando em campo” era sobre o Inter, seu time do coração.
“A minha musa inspiradora é o meu prazo de entrega”
Verissimo produziu crônicas para alguns dos maiores jornais e revistas do país, como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Veja e Playboy. “A crônica é mesmo um texto de natureza breve, na extensão e na permanência. Mas aí estão contraexemplos notáveis, como Antônio Maria [1921-1964] e João do Rio [1881-1921]”, analisa o crítico literário Luís Augusto Fischer, doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor de literatura brasileira na mesma instituição. “Alguns elementos singularizam a crônica de Luis Fernando Verissimo. Ele é um redator profissional de humor, tendo escrito para Jô Soares [1938-2022] na televisão. Algo desse humor por certo tem permanência para além do presente.”
Por escrever muitas crônicas, sobrou pouco tempo para os romances. Quando surgia algum convite, virava-se nas horas vagas. Não por acaso, compara a crônica, texto curto de 30 linhas, a um veleiro, e o romance, texto longo de 150 páginas, a um transatlântico – enquanto um precisa de dois ou três tripulantes para zarpar, o outro não sai do cais sem dezenas deles.
Dos seis romances que publicou, cinco foram por encomenda. Além do já citado O jardim do diabo, criou O clube dos anjos (1998) para a coleção Plenos pecados; Borges e os orangotangos eternos (2000) para Literatura ou morte; O opositor (2004) para Cinco dedos de prosa; e A décima segunda noite (2006) para Devorando Shakespeare. A exceção é Os espiões (2009). “Esse aí eu mesmo resolvi me encomendar”, faz graça.
“A obra de Luis Fernando Verissimo provoca. Provoca o leitor com sua crítica. Mas também provoca risos”, observa a pesquisadora Diana Loureiro, doutora em letras pela UFRGS e autora do artigo “O jardim das intertextualidades de Luis Fernando Verissimo”, de 2009. “Também chama atenção por ser riquíssima em paródia, intertextualidade e metalinguagem. Seu primeiro romance trabalha com esses elementos característicos da literatura pós-moderna. É a literatura brincando com a literatura.” Um bom exemplo disso é a primeira frase de O jardim do diabo: “Me chame de Ismael e eu não atenderei”, uma paródia à primeira frase de Moby Dick, de Herman Melville (1819-1891): “Chamai-me Ismael”, na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.
Para comemorar os 50 anos de produção literária de Luis Fernando Verissimo, a Editora Alfaguara decidiu lançar o box Todos os romances, em tiragem limitada. Os livros também podem ser adquiridos separadamente. Os seis romances têm alguns pontos em comum: a narração em primeira pessoa, a homenagem ao gênero policial – Verissimo é admirador confesso, entre outros nomes, de Raymond Chandler (1888-1959) e Dashiell Hammett (1894-1961) – e a referência ao universo literário.
“No gênero crônica, Verissimo é o maior de todos. Na minha opinião, inigualável. No romance, ele figura, sim, entre os grandes da nossa literatura. Mas divide esse panteão com outros escritores, inclusive seu pai, Érico Verissimo, que era um romancista enorme”, destaca a editora Daniela Duarte, responsável pela obra de Luis Fernando Verissimo na Alfaguara desde 2019. “E os romances do Verissimo têm uma peculiaridade: ele abraçou o romance policial, mas sempre numa releitura bem-humorada. Além de ótimo entretenimento, seus romances são, em certa medida, uma reverente ‘tirada de chapéu’ aos seus personagens, autores e livros prediletos da literatura nacional e mundial.”
“É fácil fazer regime. Eu mesmo começo um novo todas as segundas-feiras”
No caso de O clube dos anjos, o convite partiu da então editora da Objetiva, Isa Pessoa. Verissimo assumiu o terceiro volume da série Plenos pecados, sobre os sete pecados capitais, dedicado à gula. Os demais autores foram Zuenir Ventura, que escreveu Mal secreto, sobre a inveja; José Roberto Torero, com Xadrez, truco e outras guerras, sobre a ira; João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), com A casa dos budas ditosos, sobre a luxúria; João Gilberto Noll (1946-2017), com Canoas e marolas, sobre a preguiça; o argentino Tomás Eloy Martinez (1934-2010), com O voo da rainha, sobre a soberba; e o chileno Ariel Dorfman, com Terapia, sobre a avareza.
O ponto de partida de O clube dos anjos foi uma crônica que o próprio Verissimo escreveu sobre os últimos remanescentes de um clube de gourmets que morrem queimados porque não conseguem controlar o fogo de um prato flambé e estão muito gordos para fugir. A tal crônica se chama “O clube” e foi publicada em Ed Mort e outras histórias. Quem revela é o jornalista Marcelo Dunlop, organizador da antologia Verissimas – frases, reflexões e sacadas sobre quase tudo (2016).
“Ler a obra completa de qualquer autor é uma viagem fascinante. No caso do Luis Fernando, levou-me a comparar crônicas de diferentes épocas, a ler os humoristas norte-americanos e britânicos que o influenciaram e a buscar a síntese perfeita de suas frases. Minha popularidade também aumentou bastante. Na mesa do botequim ou na ceia de Natal, sempre tinha uma boa frase na ponta da língua. Aí, saiu o livro e perceberam que eu não era engraçado. O livro do Verissimo é que era. Mas aprendi muito e ainda provei o arroz com camarão da Lúcia”, festeja Dunlop.
O único romance que chegou às telas de cinema foi O clube dos anjos. O diretor Angelo Defanti chegou a convidar Verissimo para dividir a coautoria do roteiro, mas ele declinou. O longa, escrito e dirigido por Defanti, estreou em novembro de 2022. O clube dos anjos não é a primeira incursão do diretor pelo universo de Luis Fernando Verissimo, já que, em 2012, ele esteve à frente do curta Feijoada completa. Nem será a última: está finalizando o documentário Verissimo não à toa, ainda sem previsão de estreia.
“Luis Fernando Verissimo é quase um personagem de si mesmo. Um sujeito calado que mais observa do que age. É impressionante o quanto é observador. Observa a tudo e a todos, o tempo inteiro. Suas tiradas geniais vêm muito desse poder de observação”, escaneia Defanti. “Passei um mês em Porto Alegre, filmando o autor e sua família. Há momentos ternos, como Verissimo brincando com a neta, e momentos amorosos, dele com Lúcia. Mas o documentário não é biográfico. Sua vida e obra já estão no Google. Tento ir além da pesquisa biográfica normal.”
“Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas”
Gaúcho de Porto Alegre, Luis Fernando nasceu no dia 26 de setembro de 1936. Ele é filho de Érico e Mafalda, e irmão de Clarissa. A família Verissimo morou por duas vezes nos Estados Unidos: entre 1943 e 1945, quando Érico assumiu o cargo de professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, e entre 1953 e 1956, quando assumiu a função de diretor cultural da União Pan-Americana em Washington.
Em sua segunda passagem pelos Estados Unidos, Luis Fernando, então com 17 anos, aprendeu a tocar um instrumento. Sua primeira opção era o trompete. Mas, na falta de um para alugar, arriscou-se no saxofone. Em uma de suas idas a Nova York, teve a rara oportunidade de assistir a um show do saxofonista Charlie Parker (1920-1955) com o trompetista Dizzy Gillespie (1917-1993) no clube de jazz Birdland.
De volta ao Brasil, já com 20 anos, foi convidado a fazer parte de um conjunto de jazz, o Renato e Seu Sexteto, e a tocar em bailes de estudantes. Embora fosse um sexteto, o grupo chegou a ter 11 músicos. “Éramos o maior sexteto do mundo”, brinca. Em 1995, integrou o Jazz 6, que lançou cinco álbuns: Agora é hora (1998), Speak low (2001), A bossa do jazz (2003), Four (2007) e Nas nuvens (2011). A certa altura, um dos integrantes precisou sair. “Somos o menor sexteto do mundo”, volta a fazer graça.
“O cérebro é um tubarão. Não pode parar senão vai para o fundo”
Em 1979, Verissimo criou um de seus personagens mais populares. Inspirado no detetive Philip Marlowe, do escritor Raymond Chandler, Ed Mort ganhou versões para as mais diferentes mídias. Nas tirinhas de jornal, o traço é de Miguel Paiva, o criador da Radical Chic e do Gatão de Meia-Idade. O detetive que fez curso por correspondência e divide um “escri” em Copacabana com 117 baratas e um rato albino foi interpretado por Luiz Fernando Guimarães (no especial da TV Globo Ed Mort – nunca houve uma mulher como Gilda, de 1993), Nizo Neto (na peça Procurando o Silva, de 1993), Paulo Betti (no filme Ed Mort – quem é o Silva?, de 1997) e Fernando Caruso (no seriado do Multishow Ed Mort, de 2011).
Apenas dois anos depois, inventou outro tipo hilário: o analista de Bagé. Criado para o programa Viva o gordo, exibido na TV Globo entre 1981 e 1987, era um garçom mal-educado que trabalhava em um restaurante francês. Logo, Verissimo resolveu transformá-lo em psicanalista. Em apenas uma semana, a L&PM vendeu os 3 mil exemplares da primeira tiragem. A exemplo de Ed Mort, o analista de Bagé virou HQ, ilustrada por Edgar Vasques, peça de teatro, encenada por Cláudio Cunha (1946-2015), e até estátua, esculpida pelo artista plástico Sérgio Coirolo. “Os psicanalistas acham que é uma gozação com o gauchismo. Já os gaúchos pensam que é uma gozação com a psicanálise. Então, fica todo mundo em paz”, declarou Verissimo ao Zero Hora em 2014.
No verão de 1973, quando o escritor entrou de férias na Folha da Manhã, o ilustrador Edgar Vasques foi escalado para a “inglória tarefa” de substituí-lo em sua coluna. Depois de cometer uma ou duas “crônicas”, propôs ao então secretário de redação, Elmar Bones, que publicasse as tiras de um tal de Rango, personagem que criara em 1970 e que fizera sucesso no campus da UFRGS. “Certo dia, depois de anos desenhando o analista de Bagé, relendo uma de suas primeiras crônicas, me deparei com uma frase que falava das ‘suíças do analista’... ‘Êpa! Peraí, se o cara ostenta suíças, é porque não usa barba completa!’ Cobrei do LFV: ‘Pô, eu tô há anos desenhando o personagem barbudo e, na tua concepção, ele não tem barba! Por que não disseste nada?’ E ele, sucinto: ‘Ficou bom assim…’.”
Além de crônicas e romances, Verissimo se aventurou por outros gêneros, como cartuns (As cobras, de 1975), peças de teatro (Brasileiras e brasileiros, de 1989), relatos de viagens (Traçando Nova Iorque, de 1991), poemas (Poesia numa hora dessas?!, de 2002) e contos (Os últimos quartetos de Beethoven, 2013). Entre 1992 e 1997, publicou mais cinco guias de viagem: sobre Paris (1992), Roma (1993), América (1994), Japão (1995) e Madri (1997), quatro em parceria com o artista plástico Joaquim da Fonseca.
Aos poucos, seus romances começaram a ganhar o mundo. Já foi traduzido para mais de 15 países, de Portugal à Lituânia, da França à Sérvia, do Japão à Croácia. No Reino Unido, foi convertido para o inglês pela britânica Margaret Jull Costa, responsável pela tradução de Eça de Queiroz (1845-1900), Fernando Pessoa (1888-1935) e José Saramago (1922-2010). Nos Estados Unidos, o crítico Thomas McGonigle, do Los Angeles Times, definiu Borges and the eternal orangutans como “um romance perfeito”, e Melvin Jules Bukiet, do The Washington Post, como “um autêntico romance policial”.
“Não sou eu que falo pouco. São os outros que falam muito”
Em 1997, Verissimo conheceu a agente literária Lúcia Riff, que representa mais de 150 autores brasileiros, e a convidou para administrar sua carreira editorial. A sua, a do pai e a da filha, a jornalista e tradutora Fernanda. “É verdade que Luis fala pouco. Mas isso nunca o impediu de falar muito bem, de conquistar o público e de ser uma grande companhia”, pondera Lúcia. “Em Tiradentes [MG], num festival de gastronomia, Luis ficou completamente afônico e precisava participar de um bate-papo. Ele, então, me pediu para responder em seu lugar, enquanto me passava as respostas por escrito, sussurrava do meu lado ou confiava que eu já soubesse responder depois de tanto ouvir perguntas semelhantes... Foi hilário. E o público curtiu.”
Histórias engraçadas, aliás, é o que não falta. Em uma ocasião, Verissimo foi entrevistado por uma repórter de TV em Ouro Preto (MG). A certa altura, ela quis saber, entre outras curiosidades, de onde ele tirava suas ideias. Terminada a entrevista, entregou um livro para Verissimo autografar. Dentro dele, um bilhetinho: “Sua braguilha está aberta”. Na mesma hora, o autor virou-se para a jornalista e respondeu: “Qualquer coisa pode virar uma crônica. Até uma braguilha aberta”. Sobre entrevistas, aliás, ele declarou ao Correio Braziliense em 2013: “Quando falo em público, não sei quem sofre mais, se sou eu ou se é o público. Prefiro tomar injeção a dar entrevista”.
“Viva todos os dias como se fosse o último. Um dia, você acerta”
Em 2017, o acervo particular do escritor foi cedido, em regime de comodato, para a Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). São, ao todo, 464 obras e 1.400 exemplares catalogados e disponíveis para consulta on-line. O acervo inclui de esboços de desenhos a roteiros de programas como o extinto TV pirata, exibido pela TV Globo entre 1988 e 1992. “Entre tantas obras especiais que compõem o acervo, consideramos as primeiras edições de O popular, de 1973, e O analista de Bagé, de 1981, as mais valiosas”, analisa Luciana Curra, gerente de serviços e relacionamento da Unisinos. “Tive a oportunidade de encontrar o Verissimo algumas vezes e posso dizer que quem ficou sem palavras fui eu. Sabe quando você encontra alguém que admira e nunca imaginou encontrar na vida?” Uma curiosidade: na capa de uma de suas primeiras edições, seu nome aparece como “Luiz”, e não “Luis”.
Sem produzir crônicas desde janeiro de 2021, quando sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), Verissimo tem se dedicado a outros prazeres da vida, como brincar com a neta Lucinda, ouvir CDs de jazz e reler Ulisses, a obra-prima do escritor irlandês James Joyce (1882-1941). “As três melhores coisas do mundo são pudim de laranja, gol do Internacional e netos”, afirmou na crônica “A cordilheira”, publicada no jornal O Globo em 3 de dezembro de 2015. “Não necessariamente nessa ordem”, arremata. O repórter acrescentaria uma quarta: ler LFV.