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Em nova praça: o circo na era das lives e das transmissões on-line

As reações do público, ainda que contínuas, são silenciosas: corações e curtidas demonstram aprovação e êxito, enquanto comentários e elogios seguem sem pausa tela acima

Publicado em 10/06/2020

Atualizado às 11:31 de 17/08/2022

As reações do público, ainda que contínuas, são silenciosas: corações e curtidas demonstram aprovação e êxito, enquanto comentários e elogios seguem sem pausa tela acima. Em transmissões virtuais de espetáculos teatrais, as novas formas de interação, embora gerem uma sensação de estranhamento para o ator sem plateia visível, parecem ainda adequadas ao espaço do teatro. Quando o universo em questão é aquele que faz morada na lona do circo, no entanto, a ausência de ruídos, que traduzem o arrebatamento do sempre respeitável público, representa ainda mais desconforto para quem está no centro do palco.

Tradicionalmente, o circo acontece em qualquer lugar. Onde há gente, há circo. “Nas ruas, nas marquises, nos teatros, no interior, nas grandes cidades, nas lavouras, nos bares e no picadeiro também. O circo no Brasil, por exemplo, já ocupou a programação das mídias de massa décadas atrás, e hoje disputa o território simbólico da internet”, explica Kadu Oliviê, fundador do Circo Os Kaco. Entretanto, ainda que diversos artistas, grupos e companhias estejam explorando a produção audiovisual e a possibilidade de construção de uma cena como foco desse conteúdo, a tarefa parece não ser das mais simples. “É uma forma de descortinar o circo aos olhos do público, mas isso requer habilidades com novas linguagens, que muitas vezes não estavam no radar do artista circense, além de exigir recursos tecnológicos que nem todos têm”, pontua ainda.

"O circo no Brasil, por exemplo, já ocupou a programação das mídias de massa décadas atrás, e hoje disputa o território simbólico da internet", diz Kadu Oliviê (imagem: Laura Pedrini)

Aproveitando o momento atual de isolamento para cuidar de questões relacionadas a infraestrutura, o Circo Os Kaco chegou a programar, inicialmente, uma série de shows infantis ao vivo para o período. “Fizemos algumas edições [dos shows], mas preferimos desacelerar e pensar de maneira mais abrangente, aproveitando este tempo para estruturar algumas coisas básicas e muito necessárias para o nosso funcionamento. Desenvolvemos adaptações de um espetáculo do nosso repertório para uma experiência de interação remota e também criamos vários números para esse mesmo formato”, conta Kadu.

Nascido em 2009, em Goiânia (GO), o circo iniciou os seus trabalhos artísticos, ainda como companhia, dentro da Escola de Circo Martim Cererê. Em 2013, após a temporada de um dos integrantes na Escola Nacional de Circo (ENC), no Rio de Janeiro, o grupo se estabelece no distrito de Taquaruçu, em Palmas (TO), e inicia sua trajetória como circo social. Em 2015, transforma-se na Associação Companhia Os Kaco, reconhecida pelo Ministério da Cultura (MinC) como Ponto de Cultura.

Apesar da necessidade de desaceleração de grande parte do planejamento anual do circo, o grupo segue, desde maio, com os preparativos para a sétima edição do Festival de Circo de Taquaruçu, primeiro e maior evento dessa linguagem na Região Norte do país, de forma on-line e totalmente experimental. Segundo Kadu, o grupo tem buscado inspiração em diferentes fontes para a edição do evento deste ano.Desde o começo da quarentena, fizemos algumas experimentações com a produção de conteúdos para a internet, como performances ao vivo, a exemplo da série #BomDiaPalhaces. Produzimos números para festivais on-line, mas, sobretudo, exploramos as novas possibilidades de interação com o público, pesquisando e testando informalmente. Temos uma equipe muito boa, multidisciplinar, com experiências em várias áreas, e estamos nos inspirando em inovações não apenas da cadeia produtiva do circo, mas de outros segmentos da economia criativa”, conta.

Ao logo dos anos, o festival em Taquaruçu foi se consolidando como uma das principais plataformas de conexão da arte circense no Norte do Brasil (imagem: Laura Pedrini)

A reinvenção é lei

Essa demanda por possíveis reinvenções da atividade circense está no centro da série de lives pensadas pela Cia. Corpo na Contramão, grupo nascido em 1991 com um trabalho de pesquisa em diferentes linguagens, técnicas e áreas. Veiculadas na página da companhia no Instagram, as entrevistas com pesquisadores e personalidades que são referência no universo do circo no país têm reunido artistas e estudiosos de todas as regiões do Brasil para pensar o momento atual e projetar possibilidades futuras para o circo.

“Com o isolamento, estamos tendo que remontar e reestudar cada um dos nossos espetáculos nesta outra linguagem que é a linguagem do virtual. Acho que essa ideia de reinventar o circo veio daí, porque estamos tendo que nos reinventar como companhia”, diz Lua Barreto, fundadora e diretora da Corpo na Contramão. Nina Leles, Rodrigo Mallet, Alice Viveiros de Castro, Ermínia Silva e Marcio Libar foram alguns dos nomes que já participaram da série organizada pela companhia.

“Vimos que muita gente também estava procurando isso. Muitos artistas, não só do circo, estão precisando encontrar meios de sobreviver e tendo que se reinventar. Aí começamos a pensar: 'Como o circo está fazendo isso?'. 'Como as outras companhias e as outras pessoas estão se reinventando no momento atual?'”, explica a diretora.

As entrevistas com pesquisadores que são referência no universo do circo no país têm reunido artistas e estudiosos de todas as regiões do Brasil para pensar o momento atual e projetar possibilidades futuras para o circo (imagem: Divulgação)

Para quem está tendo condições de produzir conteúdos ao vivo, a estratégia principal de geração de renda, de acordo com Kadu, tem sido o “chapéu virtual” – ou doações via bancos – e financiamentos coletivos. Ainda assim, na avaliação do artista, essa relativa tranquilidade e autonomia é a realidade da minoria: “Quem está com algum edital de fomento e pode adaptar sua proposta original para as limitações impostas pelo isolamento social está conseguindo se virar, mas a grande maioria, não”, diz. Segundo ele, ainda é tímida a participação do circo em editais promovidos por setores públicos e agentes do mercado.

As ações, muitas vezes experimentais, já têm gerado reflexões acerca do trabalho que poderá ser desenvolvido em um momento pós-pandemia – apesar da grande dificuldade de vislumbrá-lo. Segundo Lua, um sarau realizado pelo grupo teve a presença do público multiplicada no formato on-line: “O Sarau na Lua costuma contar com uma média de 70 pessoas. Nós chegamos a ter [agora] mais de mil visualizações e percebemos que tinha muita gente de outros países participando. Então, começamos a pensar que, quando retornarmos nossas atividades presenciais, vamos manter esse evento virtual também. Acho que tudo o que estamos estudando agora vai refletir muito no trabalho da companhia quando o isolamento passar”, afirma.

Readequações, mudanças de formatos e de praça, reinvenções. Entre pesquisas e testes, o circo tem seguido sua trajetória de refletir a contemporaneidade e a sociedade do momento, em que a noção de tradição se coloca apenas como uma demarcação do que veio antes, em outro tempo. Nas palavras da pesquisadora Ermínia Silva, que se apresenta como “a quarta geração circense no Brasil”, “o circo sempre se reinventava e se reinventa até hoje, produzindo espetáculos que são, concomitantemente, o mesmo e também o diferente”.

O evento em Taquaruçu já recebeu mais de 500 artistas de todos os estados do Brasil e de outros dez países. Mais de 40 mil pessoas já assistiram à programação do festival (imagem: Ricardo Avellar)
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