Giordano Castro, ator, dramaturgo e um dos fundadores do recifense Grupo Magiluth fala sobre as novas experimentações dramatúrgicas com o público
Publicado em 02/06/2021
Atualizado às 14:21 de 02/03/2022
“O encontro nunca deixou de existir”, disse Giordano Castro durante a nossa conversa. Para o ator e dramaturgo – um dos fundadores do Grupo Magiluth –, a troca com o público foi e está sendo fundamental para viver – ou sobreviver – durante todo esse período pandêmico que se iniciou em março de 2020.
O Grupo Magiluth, de Recife (PE), foi responsável por lançar um dos primeiros trabalhos criados durante e para o distanciamento social: o experimento sensorial Tudo que coube numa VHS levou o público a expandir suas sensações e sua própria participação, utilizando ferramentas e dispositivos que já usamos no cotidiano – como streamings de áudio e de vídeo, aplicativos de mensagens e até mesmo a hoje banal ligação telefônica – e provocando para além das exibições de espetáculos que, na época, eram feitas via Zoom ou YouTube. No trabalho, o público é conduzido por um percurso através de várias formas: uma música, um áudio, uma mensagem, um vídeo etc. “Essas relações sensoriais mexem com os nossos sentidos e afetam cada pessoa de modo diferente”, ressaltou Giordano.
O sucesso do trabalho não só fez o grupo sobreviver financeiramente, como também devolveu uma vida criativa interrompida com o apagar das luzes do palco físico. Não à toa, Giordano e Magiluth colocaram no ar Todas as histórias possíveis, trabalho que segue a linha do antecessor com ainda mais consciência do que está sendo feito. Nesta entrevista, Giordano fala sobre essas novas experimentações dramatúrgicas com o público – a partir de uma provocação que o próprio grupo faz.
Para quem quer prestigiar Tudo que coube numa VHS e Todas as histórias possíveis, basta visitar o Instagram do Magiluth – via @magiluth – e enviar uma mensagem para agendar a participação. Vale dizer que a experiência é individual.
Começo a entrevista com uma pergunta que vocês mesmos fazem na apresentação de Tudo que coube numa VHS: em um contexto de distanciamento social, de que forma é possível reinstaurar a presença compartilhada entre atores e espectadores?
Eu acho que nós seres humanos conseguimos nos adaptar a certas coisas, não é por acaso que estamos aqui. De alguma forma, começamos a perceber a necessidade desse momento de isolamento social – algumas pessoas, não estamos falando de todas – e a busca por tentar conectar-se com esse momento, conectar-se com novas formas de relações mútuas. Não só pela gente que faz, mas também pelas pessoas que acabam vivendo essas experiências. E, nessa busca por reconexões, a necessidade de você tentar estar bem acaba sendo inevitável. As experiências que nós tivemos nesses dois trabalhos – Tudo que coube numa VHS e Todas as histórias possíveis – foram por esse caminho.
Obviamente por algo que nós provocamos no público, mas, também, existe um lado de muita generosidade das pessoas de tentarem se conectar com essa proposta. Considerando esses fatores, o nosso trabalho deu supercerto. As pessoas estavam muito abertas para viver essa nova experiência. Tem sido muito bom ver o resultado, além de perceber que as coisas se readaptaram. A busca por esse sentir, por tentar se deixar afetar por essas coisas, acabou dando certo.
Esses experimentos sensoriais demandam a participação ativa do público, o que pode ser diferente de pessoa para pessoa. Em que lugar o público está nesse cenário?
O público está em um lugar em que a gente, o Magiluth, já gostava muito de colocá-lo quando estava no palco. É um lugar de provocação, de fazer com que essas provocações sejam como portas que fossem abertas por essas próprias pessoas. A ideia de fazer um experimento sensorial foi de tentar fugir dessa relação que acabou se estabelecendo no começo de tudo – quando começamos a ter a obrigação de nos relacionar pelo mundo virtual –, que é baseada na tela. De ver tudo assim, num quadrado.
Naturalmente, a gente foi buscando outros sentidos. Percebemos que somos muito mais do que apenas o que estamos vendo, há muito mais coisas que nos afetam. A busca era esta: fugir um pouco do senso comum e tentar fazer com que as pessoas se deixassem passar por outras experiências a partir dessa relação. Essas relações sensoriais mexem com os nossos sentidos e afetam cada pessoa de modo diferente. Algumas pessoas são mais musicais, outras são mais tocadas por uma construção que elas fazem a partir de um texto, ou elas são mesmo mais visuais. Ou até coisas mais doidas; por exemplo, só o fato de você fazer uma ligação telefônica – que hoje é muito diferente, nós pedimos permissão para ligar para alguém – já causa um estranhamento. Parece uma invasão de intimidade, e mexe um pouco com a experiência da pessoa.
São pequenos dispositivos de que vamos nos dando conta e com os quais cada pessoa vai se relacionando de forma diferente. Mas, de modo geral, que bom viver várias experiências sensórias justamente por causa disso. As pessoas falam: “Fazia tempo que eu não sentia tantas coisas”. É um experimento pequeno em que nós passamos por muitas sensações. Existe hora em que você está ouvindo, hora em que você está vendo, hora em que você fecha o olho e só sente aquele momento.
Vocês usam ferramentas que são do nosso dia a dia: aplicativos de mensagens, streaming de áudio e de vídeo etc. Como se deu essa escolha?
Quando a gente foi criar o Tudo que coube numa VHS – e fui provocador do grupo a princípio –, eu tinha um problema muito grande com dois pontos. Um que achava as lives chatas mesmo, não conseguia me concentrar naquilo. E outro, por uma questão de limitação técnica, que sentia que, além de não ter o domínio, nós não tínhamos uma boa câmera nem uma boa internet. Imagina estar dando um texto para alguém, a internet cai e volta? Já perde todo o sentido. A ideia era levar em consideração a maneira como a gente tem se comunicado hoje em dia – esse é o próprio fazer do teatro, como nos comunicamos e nos colocamos diante da plateia –, então trouxemos essa premissa para o on-line.
Outro ponto foi mexer sensorialmente com o público, para que a experiência partisse para além do audiovisual, bem como não torná-la uma grande e difícil gincana. É algo simples que você domina e com o qual vive. São links que levam você direto para alguma coisa em plataformas que usamos no dia a dia: YouTube, Spotify, e-mail.
Tudo que coube numa VHS foi criado durante a pandemia. Como foi esse processo de criação e de começo da pandemia, em março de 2020, como grupo?
O começo foi bem desesperador. A gente vinha de um ano (2019) muito bom e começava 2020 de maneira muito promissora. Tínhamos acabado de estrear o espetáculo Apenas o fim do mundo, que foi muito bem-aceito – fomos indicados a alguns prêmios, e o trabalho estava na agenda dos principais festivais do país na época. Também tínhamos acabado de inaugurar um espaço próprio em Recife, o Casarão Magiluth. Foi um investimento muito grande e, em dois meses de Casarão aberto, veio a pandemia e fechou tudo. Todo o nosso retorno financeiro acabou, o nosso principal meio de viver é através de bilheteria e da participação em festivais – quase 70% do nosso orçamento está aí. Ficamos sem as nossas reservas, sem o Casarão, sem as circulações. Em uma semana, a gente faliu.
Por isso, fazer o VHS foi algo motivado pelo desespero. Estávamos desesperados em tentar nos manter vivos nessa situação – vivos como um grupo de teatro – e também vivos de forma financeira. Precisávamos fazer um trabalho que nos desse retorno financeiro, afinal não fazia sentido tentar outra coisa quando 16 anos das nossas vidas foram dedicados a esse trabalho. A construção de Tudo que coube numa VHS surgiu muito rapidamente, praticamente em uma semana. Tínhamos uma dramaturgia criada, mas pensar a adaptação para as plataformas e os dispositivos digitais aconteceu em uma semana. Essa ideia de mexer com plataformas digitais era algo que ficava na minha cabeça, mas nunca tinha colocado em prática nem sequer começado a experimentar.
De alguma forma, foi um trabalho que surgiu no início da pandemia, a estreia aconteceu em maio de 2020. Nesse momento, muitos trabalhos não tinham surgido ainda. As companhias e os grupos estavam naquele movimento de liberar os seus espetáculos no YouTube, não existiam trabalhos criados na pandemia com esse pensamento de multiplataforma. Nós fomos pioneiros nesse sentido. Isso nos traz retornos que nos mantêm até hoje. A gente pegou, por exemplo, pessoas muito ávidas por viver alguma coisa nova e instituições que também estavam buscando trabalhos que eram novidade. Tudo que coube numa VHS e Todas as histórias possíveis foram dois trabalhos que salvaram e estão salvando o Magiluth até hoje.
Os dois trabalhos partem da mesma premissa de ter a participação ativa do público, mas quais são as diferenças entre eles?
Eles possuem o mesmo tronco e são quase irmãos gêmeos. O VHS é um trabalho mais bruto, ele foi muito no tato e nas escuras. Era a gente tentando ver se funcionava. Hoje eu consigo mais falar sobre a construção desse trabalho, mas é algo que está relacionado com o pós, dessa coisa de ver a experiência de fora. Foi tudo muito empírico, mas eu não conseguia organizar uma construção de tudo aquilo.
Essa, na verdade, é a maior diferença de um para o outro. É um salto de conhecimento. Quando fizemos o Todas as histórias possíveis, já entendíamos um pouco mais dessa dinâmica – de que o trabalho não poderia ter brechas muito grandes, de que as cenas não poderiam ser tão longas (como não o foram no VHS, e entendemos que isso deu certo). É um trabalho com entendimento de causa maior.
E agora também sabemos usar melhor essas plataformas digitais, eu manipulo a plataforma, não somente a uso. O Todas as histórias possíveis tem uma cena que é usada para entendimento da plataforma. É um trabalho mais consciente, mais maduro. É uma pesquisa contínua: como posso subverter ainda mais essa situação? A gente tem uma vontade – e uma necessidade, pois a pandemia não acabou – de fazer um próximo trabalho usando essa mesma linguagem, e acho que será ainda mais consciente.
Sinto que a palavra experimento, de que temos falado bastante nesta conversa, serve tanto para o público quanto para vocês, artistas. Quais possibilidades narrativas esse cenário está oferecendo?
A ideia de experimento era algo muito doido para nós. Essa pergunta deve ter passado por todo mundo: é teatro ou não? E nunca foi da nossa vontade respondê-la. Há pessoas que vão teorizar sobre esse momento e tentar dar nomes a isso, então deixo para os teóricos essa tarefa. Não temos muito essa preocupação. É um experimento, estamos experimentando para a gente e para o público.
Passado esse movimento, acho que é um trabalho teatral, porque ele tem na sua origem um grupo de teatro. O pensamento do Magiluth é teatral. A organização de uma cena flerta muito com o que o Magiluth já fazia nos palcos físicos. Só é um trabalho teatral em outra plataforma, nosso palco virou o WhatsApp.
O que tenho achado muito legal tanto para o Magiluth quanto para outros artistas é a gente começar a entender essas tecnologias. A gente começa a entender o aplicativo e vai encontrar brechas dentro dele e como nós podemos nos aproveitar disso. Tenho sentido, por exemplo, que há um entendimento maior de como fazer trabalhos on-line, não sinto mais aquela chatice das lives de antes. Começamos a usar melhor a câmera, a investir mais. Os trabalhos que tenho visto possuem resultados excelentes. Quanto mais tempo ficarmos aqui [no on-line], mais coisas vamos conseguir.
Qual tem sido a importância de esses encontros continuarem existindo?
A gente vive com saudade. Essa é a real constância de nossas vidas. Saudade de estar no palco, do encontro, de tudo. De chegar cedo ao teatro e reclamar de fulano que não chegou cedo para ajudar com a montagem. De alguma forma, essas relações que estabelecemos com a nossa vida teatral e com a nossa trajetória passam muito com a relação com o público. O Magiluth construiu ao longo de 16 anos uma relação muito boa com o público, também por saber fazer bom uso das redes sociais, e isso traz um público para este momento que estamos vivendo. Esse encontro nunca deixou de existir. Nós continuamos estabelecendo esse contato, muita gente chegou a nós através desses dois experimentos decorrentes do distanciamento social.
Estreitamos relações geográficas, públicos de lugares por onde nós passamos apenas uma vez voltaram a nos prestigiar agora. O Magiluth é um grupo que viajou por todo o Brasil, por causa dos projetos de que fizemos parte, e conseguir reencontrar esse público e provocar uma coisa sensorial é muito bom. As pessoas falam “Deu para matar a saudade do teatro”, e isso é uma coisa linda. Continuamos com saudade, continuamos querendo aquilo que a gente tinha, mas, enfim, é a forma que encontramos para sobreviver. Mas é sempre dizendo: “Olha, aguenta um pouquinho que já, já a gente volta a se encontrar cara a cara”.
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