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Para além do conteúdo, a escola como vivência: entrevista com João Jardim

O diretor de "Pro dia nascer feliz" fala ao Itaú Cultural a respeito do que, no cinema nacional e em sociedade, falta debater mais sobre a educação

Publicado em 15/10/2024

Atualizado às 18:29 de 15/10/2024

por Duanne Ribeiro

João Jardim quer ver o invisível. É uma constante do seu trabalho, conta o cineasta, a busca por evidenciar “sentimentos e situações” que escapam ao olhar desatento. Esse direcionamento que o acompanha desde sempre marca os dois documentários que o diretor dedicou à educação: Pro dia nascer feliz (2005) – já um clássico sobre o tema – e Atravessa a vida (2020), que são o mote da entrevista a seguir, em que João trata de dificuldades e aprendizados na produção desses filmes e do quanto o ensino brasileiro mudou nos 15 anos que os separam. Ainda mais, ele critica a ausência das escolas como foco de criação e pesquisa no audiovisual nacional: “É simplesmente um espaço muito pouco utilizado como ambiente de conflito, de dramaturgia, de reflexão”.

Pro dia nascer feliz e Atravessa a vida estão ambos disponíveis na Itaú Cultural Play, nossa plataforma gratuita de streaming. Os filmes integram Na sala de aula, curadoria que conta, ainda, com as produções Futuro da educação (2024), Nunca me sonharam (2017) e Eleições (2018). Para assistir às obras, basta realizar um cadastro simples.

Pro dia nascer feliz foi lançado em 2006, mas começou a ser gravado em 2004. Vinte anos depois, como você se sente em relação ao filme?

Eu me relaciono bem com o filme. Gosto de ter feito aquele filme, gosto desse tema da escola, do adolescente – até gostaria de fazer outro. Acho que o filme ainda é muito atual. A gente evolui, logicamente, [mas as] questões de envolvimento do adolescente com a escola permanecem completamente atuais.

Atravessa a vida foi a sua segunda incursão em documentário sobre educação?

Foi. Quis fazer um filme mais observacional, mais no estilo cinema direto, dentro de uma escola, e ver aonde eu chegaria. Acabou indo muito para cima daqueles alunos que estavam realmente se dedicando a entrar no ensino superior. 

Você já tinha feito Pro dia nascer feliz; por que você quis, no Atravessa a vida, voltar a esse tema da educação?

Porque acho que existe uma lacuna. É um tema, no Brasil, muito rico, e os cineastas não se debruçam sobre ele. Eu faria pelo menos uma meia dúzia de filmes [sobre isso], porque acho que seria positivo para o país. É preciso criar essa discussão sobre o que acontece dentro da escola no cinema, no audiovisual. 

É um mundo especial e existem milhares de escolas diferentes. A gente, na verdade, deveria ter um filme por ano falando sobre isso – falando sobre morte na escola, sobre paixão na escola... –, mas a gente não tem, é simplesmente um espaço muito pouco utilizado como ambiente de conflito, de dramaturgia, de reflexão.

É uma coisa que faz muito parte da vida da gente e não está refletida no cinema, daí pensei: “Gosto desse ambiente, quero fazer outro, vamos lá fazer, vamos achar um tema”. O assunto [encontrado] foi o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio],  o processo do Enem, essa preparação que acho que é uma coisa bem maluca, no sentido de que é muito estressante. 

Por que você acha que existe essa falta do audiovisual brasileiro de tratar o tema da escola?

Acho que pelo mesmo motivo pelo qual a gente tem essa dificuldade de evoluir na educação: não é uma coisa que é considerada primeiro plano, prioritária, não é um ambiente valorizado dentro da nossa sociedade, como local – não estou nem falando da educação, [mas do] lugar, do ambiente, dos conflitos que se dão ali dentro.

Como não é prioritário, no geral, a gente não olha para aquilo ali como um lugar para ser debatido, discutido – fora as pessoas do próprio setor, que também têm dificuldade de olhar para aquele espaço como espaço. Acho que é um reflexo do Brasil: encarar a escola como uma questão só de conteúdo, não pelas relações que se dão ali dentro, como funciona o processo, o quanto aquilo é relevante na formação de todos nós.

Isso é uma coisa que me marcou nos documentários: o conteúdo está ali – há registros de aulas –, mas, para além disso, o que fica evidente são as relações humanas entre os professores e os alunos. Outra coisa que me ocorre a partir dos filmes é: a escola parece muito difícil de realizar porque são muitos universos diferentes – entre bairros diferentes de São Paulo, por exemplo, é abismal a diferença. Sei que não é o caso de perguntar a você, que fez uma investigação, isso seria pergunta para um político, mas como lidar com universos tão diferentes assim no âmbito da educação?

Cara, realmente é muito difícil para mim responder isso, porque é uma pergunta que é bem importante, mas muito complexa. É a pergunta mais importante. Eu entendo até você perguntar, porque a gente fala, depois que vê os filmes: “Ih, caramba, como é que resolve isso agora?”. Eu também não sei responder, mas uma das coisas que faltam é essa reflexão daquele espaço como um lugar de relação, como você mesmo falou. E principalmente da relação entre o professor e o aluno, que é o que mais importa.

Essa preparação, essa discussão, essa formação continuada para as relações que estão se dando ali dentro é o que mais falta, porque é o que é mais difícil para o professor: saber como se relacionar com os alunos. O que você mesmo colocou: se está numa escola em zona de conflito – na favela da Maré, por exemplo –, é uma relação; se você está numa escola no Vidigal [bairro de classe alta no Rio de Janeiro], é outra coisa. E aí as relações são diferentes. Como o professor está preparado ou instrumentalizado para lidar com aquelas pessoas? Na formação do professor, não tem muito isso de se preparar para as relações – com o aluno que não aprende, com o aluno que desacata ou que se desinteressa –, [para] todas as questões que acontecem na sala de aula que atrapalham ou interferem na formação do aluno. 

É isso que os dois filmes tentam dizer, o que eles estão sempre abordando: como – quando o professor é bem-sucedido em construir essas relações, quando ele dá essa sorte – aquilo acontece de maneira brilhante para todo mundo ali dentro.

Para você, como documentarista, foi difícil lidar com essa diversidade? Você também teve que lidar com esses vários mundos.

Foi bem difícil, mas são dificuldades diferentes. A escola de Sergipe, do Atravessa a vida, é uma escola que atende bem os alunos, [que desenvolve bem] a função dela. Então, ali, o desafio para mim era: “Como faço para fazer um filme aqui que tenha dramaticidade, que não seja um filme sobre escola, sobre educação, que seja um filme que as pessoas vão querer ver, que vai entreter?”. Porque, sempre que a gente está fazendo cinema, sempre é entretenimento também, pelo menos na minha opinião.

Ali, o desafio era como fazer aquilo acontecer de maneira relevante do ponto de vista do conteúdo, ter entretenimento, ser justo com os alunos – porque seria muito fácil colocar alguns alunos em posição desfavorável, constrangedora para eles, [para] criar conteúdo bom para o filme, mas eu não poderia, isso não seria justo. É uma responsabilidade muito grande: como agir de maneira justa com os personagens [para essa última palavra, João faz gestos de aspas]?

Já o Pro dia nascer feliz, eu estava fazendo um filme mais abrangente, mais sobre a questão da educação no Brasil. Escolhi cinco temas, determinei em cada escola qual iria refletir aquele tema, aquele subtema, ou aquele aspecto, e aí fui atrás de fazer aquilo se refletir em cada lugar, adaptando o que estava querendo. E aí foi mais um impacto em cima de mim, porque fui para lugares bem mais adversos. Foram desafios bem diferentes. O Pro dia nascer feliz mexeu muito comigo do ponto de vista do ser humano. Dava uma sensação de desperdício de pessoas.

Você falou do filme como um retrato do Brasil; do Pro dia nascer feliz para o Atravessa a vida, o retrato do Brasil mudou? Como ele se transformou ou o que ficou igual?

Mudou muito. Acho que a educação no Brasil, a partir da década de 1990, começou a ter uma evolução muito grande no sentido da inclusão de mais gente, [com] a criação do Enem, a questão das cotas, a abertura de universidades no interior do país. E o Enem abriu essa possibilidade de o aluno fazer a prova não sei onde e estudar não sei onde. Antigamente a pessoa tinha de ir para lá [onde desejava estudar] fazer o vestibular, era muito mais difícil. [E realmente foram abertas mais vagas no ensino superior], e isso mudou bastante, porque criou uma motivação. O que eu percebi claramente, quase 15 anos depois, em uma determinada fatia dos alunos, foi uma motivação muito maior.

Assim, não dá para fazer uma comparação, porque, no Pro dia nascer feliz, eu foquei na 8a série e no 1o ano do ensino médio, e, no Atravessa a vida, no 3o ano. São momentos muito diferentes dentro da escola, sabe?

Mas [uma coisa] que percebi – como eu estava numa escola que tinha [os] três anos, eu percebi isso, que se reflete em muitos lugares – [é que, para] quem tem conhecimento, quem consegue ser despertado, a gente realmente criou um lugar ali para a pessoa trilhar. Se a pessoa não está num lugar que tenha violência, se a pessoa não vive situações dentro de sua casa que são totalmente impeditivas de ela se desenvolver, a gente – faz 20 anos ou até um pouco mais, começou no governo Fernando Henrique [Cardoso] – criou um caminho que nem o governo Bolsonaro conseguiu destruir.

Esse caminho ainda é muito para metade da escola, só. Isto a gente tem dificuldade de perceber: esse caminho, ele vai aumentando, mas ele é para uma parte da escola. A escola atua de maneira muito positiva para metade dos alunos. Para a outra metade, ela não consegue ensinar a ler e a escrever direito, não consegue ensinar matemática. Não é uma escola universal. O sistema educacional não dá conta dos que têm mais dificuldade. Porque todo mundo sabe que o que acontece na casa da pessoa, o que acontece no bairro, influencia demais. O diretor, a política da região, as nomeações, [tudo o que está implicado para que se tenha] uma escola funcionando de maneira competente. Você sabe que tem um monte de coisas que interferem, e isso faz com que metade dos alunos não aprenda o básico – a gente vê isso nos exames.

Pro dia nascer feliz tornou-se um filme referência, nas escolas é passado com frequência, e imagino que muitos professores e profissionais da educação tenham entrado em contato com você para falar sobre ele. Como foi essa recepção? Você aprendeu alguma coisa nesse contato?

Aprendi várias coisas, a gente teve realmente, durante uns dois ou três anos, esses contatos. O que eu aprendi é como o professor é carente – carente no sentido de não ser protagonista de uma discussão do que é relevante para ele. Carente no sentido de que é um tema, uma situação, uma profissão que é muito relevante para ter um debate tão pequeno sobre ela, [tratando de] outros aspectos que não quanto [o professor] ganha e o quanto está sendo competente. O professor é muito mais do que índices de educação e o salário dele. Essa parte pulou muito para mim, que a gente fica só nesses dois lugares. E é muito mais do que isso, eu percebi isso ao fazer o filme.

Esses dois documentários sobre educação, você vê relação entre eles e o restante de sua obra, seja no modo de tratar o cinema, no modo de tratar os personagens?

O primeiro filme que fiz era muito ligado à minha experiência pessoal com a visão: o Janela da alma [um dos assuntos desse filme é a relação de João com a miopia] – enfim, uma outra coisa, mas a relação que faço é que estou sempre falando um pouco de invisibilidade. É um tema dos documentários que faço: pontos que são invisíveis. Não do ponto de vista social, tipo de “pessoas invisíveis”, mas de sentimentos invisíveis – sentimentos, situações que eu vejo que são muito interessantes de serem abordadas e que tenham a ver comigo pessoalmente. E a outra coisa é essa coisa de falar do Brasil. Eu acho que o Brasil é do caralho. Então, a gente tem de fazer filmes sobre o Brasil. Este é o tema que mais me interessa: falar das questões do Brasil.

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