As poetas Marcela Bonfim e Bell Puã, premiadas pelo edital Arte como Respiro, falam sobre suas trajetórias e criações
Publicado em 25/02/2021
Atualizado às 18:42 de 25/02/2021
por Heloísa Iaconis
Era o penúltimo dia, quase fim do prazo para participar do Arte como Respiro, edital de emergência promovido pelo Itaú Cultural (IC) em 2020. Marcela Bonfim conversou com uma amiga, refletiu acerca do tema e do que queria, em especial, abordar: a pessoa negra no período pandêmico. Pensou, pensou, dormiu, acordou. Dia 13 de maio, limite máximo para o envio do projeto, 13 de maio, data de Preto Velho na umbanda, 13 de maio, Marcela pegou o celular e gravou, de uma só vez, as palavras que, ao longo da noite anterior, se formaram nela. Bell Puã, por sua vez, quando soube da seleção, tentou recuperar todos os sentimentos que a inundaram durante a quarentena – da exigência de ficar em casa à falta de gente querida. E, assim, as artistas se inscreveram na seleção e se tornaram autoras de dois dos 25 textos falados que foram escolhidos.
Os versos, esses já nascidos com voz, cadência e entonação, inspiram Bell desde 2017. Ainda menina, dedicava-se à dança, mas foi o slam (batalha de poesia falada, parte da cultura hip-hop) que a motivou a divulgar suas criações. “Quanto mais fui conhecendo o movimento de poesia marginal, mais me senti à vontade para expor meu trabalho e compartilhar discussões que ganhavam força dentro de mim, como debates em torno de questões raciais e de gênero”, conta a poeta. A urgência do dizer, presente em uma poética que prescinde do papel, dialoga, de modo estreito, com a vontade de tornar públicos medos e esperanças, reflexões críticas e sonhos. Marcela, inclusive, permite se encantar até pelo que, em um primeiro momento, não entende. “A arte é muito generosa: através dela, podemos compreender processos que antes não compreendíamos. Isso gera, além de aprendizados, oportunidades de nos posicionarmos de maneiras diferentes na sociedade. De abrirmos os nossos próprios olhos. Note: existem os olhos de quem o olha, existem os olhos de quem o vê, existem os olhos de quem só passa, e existe você. Os seus olhos”, pondera a artista. Com o olhar alerta, ela crê: os poemas vivem nos sujeitos que se entregam à natureza.
Natureza do tipo pés na terra, dos instantes que trazem calma, do voltar ao eixo, ao norte. Norte, Rondônia, Porto Velho, onde Marcela Bonfim e suas inquietações encontram morada. Há também, para a poeta, a natureza como âmago, a essência que vem de seu interior, de seus ancestrais, do agora e dos tempos passados. Por esse motivo, por essa dupla percepção do natural, ela sabe escutar suas necessidades. “Eu sou da necessidade. Por exemplo, na ocasião do edital, precisava tratar do negro na pandemia. E eu precisava fazer isso falando. Naquele dia 13 de maio, eu precisava falar”, lembra. Sem recorrer ao quebra-cabeça da escrita, aos encaixes e às aparas das letras redigidas, Marcela falou e suas rimas não sofreram nenhuma alteração posterior. Palavras com ritmo como o das cantorias de sua comunidade, dos acalantos de sua mãe, sua avó, sua bisavó.
Aliás, a irmandade entre poesia e música, uma que puxa recordações da outra, é mais um ponto de contato de Marcela com Bell, de Bell com Marcela. Bell Puã, mestre em história pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), herdou de seu pai o gosto pelas canções. Ele chegou a cursar até o último semestre da graduação em música na mesma instituição onde a filha concluiu o mestrado. Porém, foi no cotidiano, fora da sala de aula, que as composições o tomaram para valer. Tendo crescido com o som do violão paterno, a poeta quer conciliar suas paixões artísticas. “Eu me imagino, no futuro, estabelecida na música e publicando meus livros. Acho que toda expressão cultural é uma forma de afago”, conclui.
E esses afagos, salienta Marcela, são, de fato, recursos fundamentais para o ser humano. “A potência da arte está em cada um. O poeta não é alguém extraordinário no sentido de incomum. Cada indivíduo é um poeta. Concebo a poesia assim: um meio para que tenhamos uma vida melhor. Para que possamos ressignificar e acolher os temas que surgem na ordem dos nossos dias. Para que alcancemos uma leveza”, resume. Desse jeito, buscando o delicado essencial e, em simultâneo, não temendo as feridas, as duas artistas seguem com a boca no mundo.