Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

Projeto “A redescoberta do Brasil pelo traço de Nilson Azevedo” resgata acervo do cartunista mineiro

Objetivo do trabalho selecionado pelo “Rumos” é digitalizar, catalogar e organizar as obras de Nilson Azevedo

Publicado em 20/06/2022

Atualizado às 10:55 de 25/07/2022

Foi após uma visita ao ateliê do cartunista Nilson Azevedo, considerado uma das figuras mais expressivas da comunicação mineira, que o economista Carlos Machado decidiu iniciar o projeto A redescoberta do Brasil pelo traço de Nilson Azevedo, selecionado da edição 2019-2020 do Rumos Itaú Cultural. O objetivo é preservar a obra e organizar todo o acervo produzido pelo artista ao longo dos últimos anos.

Carlos conheceu o chargista em 2012, quando trabalhavam em salas vizinhas em Belo Horizonte (MG). Após as muitas conversas que tiveram depois dessa época, ele pensou em produzir um documentário sobre a obra do artista, responsável pela criação das HQs A caravela e Negrim.

No entanto, Carlos acabou adiando essa ideia ao descobrir que a maior parte dos originais e algumas cópias do acervo de Nilson estavam acondicionadas de modo muito precário num apartamento anexo ao que o artista mora, na capital mineira, correndo o risco de ser perdidas por não terem um tratamento adequado. O economista explica que, em primeiro lugar, era preciso fazer esse trabalho de resgate, sendo este uma pré-condição para realizar o tão sonhado documentário no futuro.

Essa tarefa, então, foi colocada como prioridade, já que, segundo Carlos, era impossível conhecer a obra de Nilson da forma como ela estava, em caixas e sem organização. E foi a partir daí que tudo começou.

Em entrevista ao Itaú Cultural (IC), Carlos Machado fala do projeto, dá mais detalhes sobre o processo de resgate do acervo de Nilson Azevedo e destaca a importância do cartunista, que, segundo o economista, “faz uma leitura da realidade brasileira a partir de uma perspectiva que não está nos livros de história”.

Como surgiu a ideia de A redescoberta do Brasil pelo traço de Nilson Azevedo, projeto apoiado pelo Rumos?

Esse é um termo que o próprio Nilson usou em determinado momento e a gente aproveitou para o projeto, essa é a ideia. Esse termo tem a ver com o contexto histórico, já que o Nilson teve o auge de sua produção artística coincidindo com a redemocratização do país, embora ele tenha começado muito antes. O Nilson traz uma leitura da realidade brasileira diferente.

Isso é presente especialmente numa obra que não está no projeto, que é A caravela, mas também o termo se estende por toda a obra de Nilson, que é uma leitura que ele faz da realidade brasileira a partir de uma perspectiva, digamos, não oficial, que não está nos livros de história.

Ele trata de temas como desigualdade, questões de costumes, sexualidade, racismo e assim por diante. Nilson trabalha todos esses temas que não eram discutidos ou que não eram tratados da forma como ele tratou. É sempre da perspectiva e do ponto de vista das minorias, do oprimido, fazendo sempre uma crítica social, uma releitura do Brasil de forma muito crítica nesse momento histórico.

O cartunista Nilson Azevedo posa sorrindo para a câmera. Ele usa uma blusa preta de frio, boina xadrez e óculos de grau. Ao fundo, várias revistas estão dispostas em uma estante e também sobre a mesa.
Cartunista Nilson Azevedo (imagem: Carlos Machado)

Por que você escolheu falar sobre a arte desse cartunista mineiro?

Na verdade, o destino e as circunstâncias me colocaram ao lado do Nilson em determinado momento. Conheço o Nilson desde 2012, então convivi com ele durante muito tempo, numa sala vizinha, ele trabalhando na imprensa e eu na assessoria, e tive a oportunidade de conversar muito com ele. Além de cartunista, Nilson é um excelente contador de histórias, que tem um repertório cultural impressionante, infindável. A capacidade do Nilson, a memória que ele tem de conhecer praticamente tudo sobre cinema, sobre literatura, sobre história, ele tem realmente uma capacidade fora do comum nesse sentido.

A gente conversou muito, e eu, embora seja economista, já faço documentários há um tempo. Então, dessas conversas, quis fazer um documentário sobre o Nilson e a obra dele, essa foi a primeira ideia. Fomos conversando sobre isso, e acabei conhecendo outras pessoas importantes, como o Erick Azevedo, que trabalha no projeto, outros cartunistas aqui de Belo Horizonte que foram discípulos do Nilson, que aprenderam com ele e que também são muito próximos dele, engajados nessa necessidade de resgatar sua obra.

Como foi todo o processo de construção do projeto?

Eu fiz junto com o Nilson um projeto que foi aprovado pela prefeitura de Belo Horizonte, para publicar o livro A caravela, que reúne uma série de tiras publicadas ao longo de 30 anos em vários jornais brasileiros. Quando surgiu o edital do Rumos, resolvi, conversando com o Erick, outros editores e quadrinistas que são próximos do Nilson, fazer esse projeto também.

O da prefeitura dava conta de uma obra específica e o do Rumos dava conta de organizar todo o acervo do Nilson, exceto A caravela, que já tem um projeto específico. Então, este tem uma amplitude grande, porque vai colocar à disposição do público todo o acervo do Nilson, ao longo de toda a produção artística dele.

O projeto inicialmente previa essa tarefa, que é o resgate de todo o acervo, a catalogação, a digitalização e a realização de um pequeno documentário. Após uma conversa com a equipe do Rumos, foi decidido que o projeto não contemplaria o documentário, mas se voltaria para a catalogação e a digitalização do acervo, o que foi uma sugestão muito acertada, porque o recurso não seria suficiente e a gente acabaria não dando conta de cumprir.

Então, surgiu dessa maneira um projeto importantíssimo nesse sentido, porque é um acervo de originais que poderia se perder com o tempo, mas a gente está fazendo um trabalho de recuperação desse acervo.

Várias caixas com papéis aparecem em uma estante e também espalhadas no chão de um espaço.
O acervo de Nilson Azevedo estava guardado em caixas no ateliê do cartunista. (imagem: Carlos Machado)

Qual é o diferencial apresentado nos trabalhos de Nilson Azevedo?

Ele trata de diversos temas, históricos e atuais, mas sempre com uma visão muito crítica e, ao mesmo tempo, cômica. Ou seja, ele traz isso com muita graça, com leveza. Eu já falei do título A redescoberta do Brasil pelo traço de Nilson Azevedo, falei sobre o tema, mas também é importante falar do traço do Nilson. Essa releitura que ele fez da realidade brasileira, não apenas por meio de uma visão crítica e muito bem informada, mas também através de um traço, de uma forma de desenhar, de colocar isso no papel de maneira muito original.

O Nilson tem um traço original que se reconhece como um desenho próprio; isso é uma coisa muito relevante. Essa originalidade do trabalho dele, em todos os personagens, em todas as situações que ele criou, embora ficcional, é fruto de muita pesquisa e muito estudo.

Existe uma parte da obra de natureza autobiográfica, há séries de tiras, como a Quatro olho, que é um pouco o Nilson na infância, no interior de Minas. Ele é de uma cidade vizinha à do Ziraldo, que também teve um papel importante em sua carreira. O Nilson é um pouco mais jovem que o Ziraldo e chegou a conhecê-lo nessa época. O Ziraldo, inclusive, chegou a desenhar um roteiro escrito por ele, quando o Nilson tinha 16, 17 anos.

Qual é a sua relação com o artista?

Eu tenho 54 anos. Era criança no início da década de 1970, ainda não sabia ler, mas tive contato com a obra do Nilson na infância, entre 4 e 6 anos. Antes de ler, tive contato com a obra dele num suplemento infantil do jornal O Estado de Minas, que se chamava Gurilândia, e o Nilson publicava regularmente várias tiras nesse suplemento, tanto da série Negrim do pastoreio como tiras sobre outros personagens também.

Até depois de conhecer o Nilson, mais recentemente, quando a gente estava fazendo o projeto, eu fui ver as tiras do Gurilândia, daí me lembrei desse episódio.

Na imagem aparecem páginas de revistas em quadrinhos, em preto e branco, de Nilson Azevedo.
Tiras de "Gurilândia", de Nilson Azevedo (imagem: Carlos Machado)

Por que esse projeto é importante?

O Nilson tem uma importância muito grande na história do cartoon em Minas Gerais, ele tem um trabalho que foi muito reconhecido ao longo destes anos todos. Este projeto é importante por esse resgate, por essa preservação.

Havia o risco concreto de perda desse material, em razão do tempo, de umidade, fungos. Esse material precisava ser resgatado de onde ele estava e organizado. Acho que isso já é um feito extraordinário deste projeto.

UM POUCO MAIS DO ARTISTA

O quadrinista, pesquisador e professor de quadrinhos Erick Azevedo é um dos "pupilos" de Nilson Azevedo e um profundo conhecedor da obra do artista. Ele, que foi contratado pelo projeto para fazer a catalogação e a digitalização, explica que a trajetória do cartunista é, sem dúvidas, uma das mais produtivas e variadas dos quadrinhos no Brasil.

"Desde sua estreia, em 1967, ele tem se dedicado à abordagem de uma infinidade de temas para diferentes públicos em grandes jornais, publicações independentes e sindicais", diz Erick.

Discípulo de Ziraldo e Henfil, dois dos maiores quadrinistas do país, Nilson desenvolveu ao longo de sua carreira um pensamento consequente, ético e engajado que por si só já constitui um patrimônio a ser preservado.

Erick destaca que os cartuns e as charges de Nilson abrangem temas variados, registrando mais de 50 anos da história do país, sempre com uma abordagem lúcida que torna sua obra bastante atual ainda nos dias de hoje.

Um homem, usando máscara de proteção, faz anotações em um papel. No ambiente, várias caixas aparecem no chão.
O quadrinista, pesquisador e professor de quadrinhos Erick Azevedo é um profundo conhecedor da obra do artista. (imagem: Carlos Machado)

Segundo o professor, as histórias do cartunista destinadas ao público infanto-juvenil combinam a herança de Monteiro Lobato e Ziraldo com suas memórias da vida no interior de Minas Gerais (MG), em títulos como Negrim do Pastoreio (um dos maiores sucessos de MG na década de 1970), Pingos de gente e Quatro olho.

"Já os quadrinhos voltados para adultos apresentam a lucidez crítica de Henfil e Woody Allen, aliados a reconstituição histórica e cultural em obras como A caravela, Pindorama, Pery a perigo (estes sobre o encontro dos índios com os europeus) e Magrelo, sátira autobiográfica inovadora", destaca Erick.

Nilson Azevedo atuou ainda como ilustrador, jornalista, professor, escritor, apresentador de TV e comentarista político, além de colecionar prêmios em concursos no Brasil e no exterior. "Por tudo isso, julgamos que a preservação de sua obra e sua trajetória artística são um dos mais importantes registros da história dos quadrinhos recentes no país", conclui.

 

Compartilhe