Os idealizadores do "Dona Ruth: festival de teatro negro" iniciam uma série de cartas para homenagear a pioneira na luta contra o racismo nas telas e palcos do Brasil
Publicado em 12/05/2021
Atualizado às 11:33 de 23/11/2022
por Amanda Rigamonti e William Nunes
Atualização em 15 de julho de 2021: Não haverá lançamento de duas cartas por mês no site do Itaú Cultural até o festival. Todas as cartas serão lançadas no próprio festival.
Em 12 de maio de 1921 nascia uma mulher que iria mudar o percurso da história brasileira e de suas produções culturais.
Ruth de Souza nasceu na zona norte do Rio de Janeiro, no bairro de Engenho de Dentro, e logo se mudou com a família para um sítio em Porto Marinho, interior de Minas Gerais. Nesse período, ela se encantava com as histórias da mãe, que contava que na capital brasileira da época as ruas eram iluminadas – e a imaginação produtiva de Ruth data já desse tempo, quando, ela conta, tentava reproduzir a sensação ao capturar e enfileirar vagalumes.
Com a morte de seu pai, a família voltou para o Rio de Janeiro. Ruth tinha 9 anos. É aí que sua história com os palcos e telas tem início. “Quando cheguei ao Rio de Janeiro, a primeira coisa que me deixou encantada foi o cinema. Minha mãe me levou para ver o primeiro filme da minha vida, Tarzan, o filho da selva (1932), com Johnny Weissmuller. Fiquei deslumbrada!”, conta a artista no livro Ruth de Souza: a estrela negra (2007).
Sua mãe, Dona Alaíde, era lavadeira de roupas e foi graças à sua perseverança que a pequena Ruth pôde ter acesso aos espaços que lhe deram a formação cultural que definiu a sua vida. Foi também com ingressos que a mãe ganhava de patroas que Ruth frequentou óperas, peças e outros espetáculos do Theatro Municipal. E decidiu que queria ser atriz.
“Muitos riam de mim. Não acreditavam que eu fosse conseguir e faziam chacota, se divertiam à minha custa. Mas isso não me incomodava, porque eu tinha uma certeza: eu ia ser artista”
Trecho do livro Ruth de Souza: a estrela negra
E que artista!
Foi no começo da década de 1940, pela Revista Rio, que Ruth conheceu o Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo idealizado pelo escritor e dramaturgo Abdias do Nascimento, passando a integrar seu elenco em 1945. Aos 24 anos, fez sua estreia nos palcos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro fazendo uma ponta na peça O Imperador Jones, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill. Sua primeira grande atuação aconteceu dois anos depois, em 1947, em O filho pródigo, do escritor Lúcio Cardoso.
Sobre a criação do TEN, a artista lembra que na época os personagens negros eram representados através do blackface, prática racista em que um ator branco é pintado de preto. “Então o Abdias do Nascimento resolveu criar o TEN. Na verdade, criamos juntos, eu, Abdias, Aguinaldo Camargo e muitos outros. Queríamos provar que negro também podia ser ator. Não dava para acreditar: em um Brasil mulato como somos, não ter um ator negro! Era um absurdo!”
Em 1949, ela iniciou sua carreira no cinema em filmes produzidos pelo estúdio carioca Atlântida. No mesmo ano foi fundada a Companhia Cinematográfica Vera Cruz e o diretor Alberto Cavalcanti foi convidado para ajudar a organizá-la. Em meio às suas pesquisas, Cavalcanti se deparou com Terra violenta e Também somos irmãos, dois filmes que Ruth havia feito pela Atlântida – do primeiro, inclusive, participou por indicação de Jorge Amado, que a admirava. E assim veio o convite para ser parte do elenco fixo da produtora. “Ruth fez muita coisa nesses anos todos. Foi nossa primeira estrela negra, conquistando uma posição cobiçada na extinta Vera Cruz”, escreve Maria Angela de Jesus na introdução de Ruth de Souza: a estrela negra.
É durante sua trajetória pela Vera Cruz que um dos eventos mais marcantes – e são tantos – da carreira de Ruth acontece. Sua atuação no ambicioso Sinhá Moça deu a ela destaque internacional, sendo cotada para o Prêmio de Melhor Atriz do Festival de Veneza de 1953. A atuação rendeu-lhe o troféu Saci de Melhor Atriz (ela havia conquistado a premiação também no ano anterior por Terra é sempre terra). Em sua carreira, Ruth participou de mais de 20 filmes, sendo que muitas das personagens que interpretou ao longo das décadas de 1950 e 1960 remetiam à resistência do corpo e à vivência negra na sociedade brasileira.
Também na década de 1950, Paschoal Carlos Magno a incentivou na carreira teatral e a recomendou para uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, na Rockefeller Foundation. Ruth passou um ano no país, onde estudou e pesquisou artes cênicas na American National Theater and Academy, na Karamu House e na Universidade de Harvard.
Quando voltou dos Estados Unidos, Ruth encontrou uma televisão em ascensão em sua terra natal, e logo ingressou nessa história. Fez os primeiros teleteatros da TV Tupi e da TV Record, nos anos 1950. Depois, integrou o elenco de uma das primeiras telenovelas da TV Excelsior, A deusa vencida, em 1965. Quatro anos depois, contratada pela Rede Globo, tornou-se a primeira protagonista negra de um folhetim televisivo brasileiro e passou a ser presença frequente nas telenovelas da emissora.
Em março de 2019, aos 97 anos, foi homenageada no Carnaval carioca pela escola de samba Acadêmicos de Santa Cruz, com o samba-enredo “Ruth de Souza – Senhora Liberdade, abre as asas sobre nós”. Faleceu em 28 de julho do mesmo ano, aos 98 anos e com mais de 70 de carreira, deixando um legado excepcional, a mudança nos rumos da cultura brasileira, e marcando gerações de artistas negros – inclusive as que ainda estão por vir.
“A Ruth de Souza fazia parte de uma rede de atrizes negras e atores negros que entenderam que as suas imagens nos palcos e nas telas eram capazes de contribuir de forma muito significativa para a dignidade da população negra no Brasil. Para a Dona Ruth, já naquela época, não bastava apenas estar nas produções de teatro, cinema e novela, a forma como a sua presença seria utilizada para retratar a mulher negra era determinante. Neste sentido, o seu interesse era por interpretar e ver personagens negros livres dos estereótipos racistas e com real importância na obra”, diz Gabriel Cândido, que, ao lado de Ellen de Paula, idealizou Dona Ruth: festival de teatro negro de São Paulo.
O festival é uma das ações que celebram a existência da artista e se empenham em manter viva sua memória. Ellen evidencia esse aspecto: “Hoje, pela imensidão e pluralidade da cena teatral negra espalhada pelos Brasis, tem sido mais coerente afirmar que os teatros negros, no plural, são continuidades dos saberes e das ciências pretas de ainda muito antes, expressados através de manifestações culturais que nem são comumente nomeadas como teatro. A presença de Ruth e de outros artistas negros está justamente no entendimento e reconhecimento desse percurso histórico, da compreensão da importância de nos aquilombarmos para elaborar as nossas poéticas, estéticas e políticas".
O encontro de Ruth e Dona Ruth
A história e a atuação da artista são celebradas em Dona Ruth: festival de teatro negro de São Paulo, evento que promove o encontro, a expressão, a reflexão e o diálogo entre artistas, grupos e público que se dedicam aos teatros negros. Batizar o primeiro festival de teatro negro da cidade com o nome da Dama Negra do Teatro, do Cinema e da Televisão do Brasil foi a solução para homenagear sua memória de modo permanente.
“Quando tivemos a ideia de criar o festival, isso em meados de 2017, conversávamos sobre o evento ter um nome que pudesse ser afetivo e agregador para que desde aí a nossa atuação fosse na contramão de uma lógica do desencontro e fragmentação que existe em São Paulo. Dona Ruth é um ato de homenagem à Ruth de Souza, por essa mulher preta e artista ser uma das responsáveis pelo teatro negro ter se tornado o que é hoje, pela sua excelência cênica como atriz e por sua atuação política na linha de frente da luta por dignidade da população negra”, comenta Ellen.
O percurso para tal foi inevitável, como explica Ellen, uma vez que caminhar pela história dos teatros negros no Brasil é, naturalmente, ir em direção à trajetória de Ruth de Souza e de “outras artistas mulheres negras que, direta ou indiretamente, são responsáveis por inúmeras conquistas, avanços e saberes que desfrutamos há muito tempo, e ainda hoje, no teatro e para além das artes em geral”, complementa.
Ruth, a atriz, faleceu antes de prestigiar a primeira edição de Dona Ruth, o festival, que ocorreu em 2019 – com atividades presenciais, no Sesc Interlagos, em São Paulo –, mas, ainda assim, teve em vida um pouco do sabor dessa reverência. Isso graças ao encontro realizado no Rio de Janeiro, na casa da atriz, a convite da própria. “De início pareceu algo muito difícil e complexo, porque ela tem esse lugar de majestade para nós. Mas, desde o primeiro contato com a Luzia Gondim – amiga e na época assessora de Ruth –, a recepção foi muito atenciosa e carinhosa. A Luzia resolveu não contar tudo a ela, pois achava importante que nós falássemos da homenagem e do festival pessoalmente. E assim foi, quase como um sonho”, relembra Ellen de Paula.
Para Gabriel Cândido, estar na presença – e na casa – de Dona Ruth é inesquecível: “Sentimos que ela simpatizou muito com a gente, tanto que foi se abrindo e contando histórias pessoais que estão fora das suas biografias, entrevistas e relatos”. Ao falarem do festival, do desejo de homenageá-la por meio do nome, da identidade visual – criada por Silvana Martins – e de programações dedicadas a ela, receberam um silêncio – daqueles tão importantes para o ritmo de uma cena –, que terminou com o esperado consentimento. “Ela disse que estava extremamente emocionada e que não sabia o que dizer, pois jamais poderia esperar por algo assim”, diz Gabriel. “Ela deu todo o apoio, quis participar e ficou muito feliz. Para nós era fundamental que ela soubesse de todo o processo de criação do festival e recebesse a homenagem em vida.”
O encontro ainda marcou a entrega de uma carta escrita à mão pelos idealizadores do festival a Ruth (veja abaixo). Ellen sintetiza: “É muito importante que seja dito: a cada vez que nós dizemos Dona Ruth, reverenciamos e agradecemos à Ruth de Souza e, com ela, a cada mulher negra que está, cada qual a seu modo, na linha de frente das tantas lutas cotidianas”.
Acesse aqui a transcrição da carta.
Cem cartas para Ruth de Souza
O Dona Ruth: festival de teatro negro de São Paulo teve em 2020 sua segunda edição – a primeira on-line, por causa da pandemia – e chega neste ano em sua terceira em uma parceria com o Itaú Cultural. A programação ainda está em elaboração – o evento deve ocorrer novamente no ambiente virtual, em virtude do processo de vacinação –, mas estão previstos espetáculos, debates e atividades formativas que celebram o centenário durante todo o ano. Também uma ação especial foi pensada.
Durante essa frutífera trajetória, a artista foi (e segue) marcando a vida de muitas pessoas. Assim, a lista de quem tem algo para lhe dizer é longa. Foi pensando nisso que Ellen e Gabriel construíram esta ação especial – cem pessoas serão convidadas para escrever cartas para a Dama do Teatro, do Cinema e da Televisão. No festival, todas as cartas serão reunidas em uma plataforma organizada pelo evento.
“O melhor presente que a Dona Ruth poderia receber para a sua história é um reconhecimento que esteja à altura da sua vida e obra. Como ela era extremamente generosa e comprometida com o seu ofício e com a sua atuação política, sabemos que ela desejaria o mesmo para a população negra do país”, conclui Ellen.
E, hoje, para marcar o lançamento da primeira das cem cartas, Ellen e Gabriel retomam aquele 25 de maio de 2019, lembram do até logo na despedida com Dona Ruth e celebram o legado da atriz.
Leia abaixo a carta e, clicando no player, ouça-a na voz de Ellen de Paula.
São Paulo, 12 de maio de 2021
Querida Ruth de Souza, dona Ruth
Já se passaram praticamente dois anos desde o nosso primeiro e último encontro em sua casa. Os dois “jovens de São Paulo”, como a senhora mesma nos chamou na ocasião, saíram completamente diferentes da forma como entraram na sua residência. Era um sábado, dia 25 de maio de 2019, mais especificamente. Nos recordamos de um dia ensolarado, quente e agitado, como é típico do Rio de Janeiro. Nosso encontro estava marcado para às 14h, lembra? Pois tratamos de chegar antes, acho que o relógio não marcava nem 13h. Primeiro localizamos o seu prédio, depois procuramos algum lugar próximo para almoçar e baixar a ansiedade do encontro. O tempo voou, dona Ruth, impressionante. Às 14h em ponto tocamos o interfone e a Lu Gondim veio nos receber. A Lu que, inclusive, desde o início nos tratou com tanto carinho e atenção que foi inevitável não criarmos uma relação de amizade com ela dali em diante, tanto é que até hoje nos falamos e a senhora continua sendo um dos nossos assuntos preferidos. Temos muitas saudades daquele dia, dona Ruth. Bom, aí fomos entrando no prédio e o tempo começou a ficar diferente, as frequências cardíacas foram alterando, as bocas secando, e o ar entrando de forma irregular em nossos corpos. A porta finalmente abre e vemos a senhora ali, linda, sentadinha no sofá, vestida com o – para nós – inesquecível suéter preto de estampas florais em azul, rosa e verde. Pedimos licença para entrar (licença para a senhora, para a Lu, para toda a nossa ancestralidade e entidades que nos guiam e protegem). Podem entrar – disse a Lu. A senhora nos cumprimentou e nos convidou a sentar em cadeiras que estavam dispostas de frente para o sofá em que estava sentada. Sentamos. A senhora nos olhava com um olhar tão profundo que era como se enxergasse as nossas almas e lesse o nosso pensamento. O que foi aquilo, dona Ruth? Lu nos ofereceu água e de pronto aceitamos, lógico. Internamente cada um de nós, durante toda a tarde, seguiu agradecendo por estar tendo tamanha oportunidade. Sem rodeios, a senhora logo lançou: o que vocês querem de mim? Naquele momento rimos de nervoso, tentamos dizer uma coisa ou outra sem nenhum sucesso e ficou evidente que não tínhamos preparado roteiro algum. O que nós queremos da senhora, dona Ruth? Quem somos nós para querer algo da senhora? Dali em diante sabemos bem os mistérios que conduziram a nossa conversa. A nossa Gira de Conversa e de Afetos segue aberta até hoje. E a conversa rendeu tanto que já começava a escurecer e nós, em constrangimento por poder estar incomodando, íamos tentando encaminhar os diversos assuntos abertos, mas fracassamos. Quando estávamos quase nos levantando das cadeiras, a senhora nos ofereceu um pudim e de quebra fez uma enorme propaganda do seu sabor. Como recusar? Impossível. Isso porque nem vamos citar aqui para a senhora que um de nós sequer gosta de comer pudim, mas que naquela hora comeu com muito gosto, viu?! Na hora de irmos embora, um até logo. De fato, muitos assuntos ficaram abertos, muitas mais risadas precisavam ser dadas juntas, muitos mais beijos e abraços para serem trocados. Até hoje ficamos curiosos para saber como o nosso presente ficou na senhora, sabia? Ah, o presente que a senhora nos deu segue guardadíssimo! Quando deixamos o seu prédio, a sensação era como se estivéssemos atravessando um portal de volta ao planeta terra (para o nosso azar). Depois fomos ao mesmo lugar em que havíamos almoçado, mas dessa vez para digerir o nosso encontro, narrar um para o outro o que acabara de acontecer como se quiséssemos nos convencer de que tudo aquilo foi real. Assim ficamos mais algumas horas em seu bairro antes de partir de vez. Esperamos que a senhora tenha tido uma ótima noite. Esse foi um dos dias mais importantes das nossas vidas, dona Ruth. É sempre emocionante relembrar e contar para as pessoas sobre esse dia. Obrigado mais uma vez por nos convidar e receber em sua casa.
Como a senhora sabe, naquele mesmo ano realizamos a primeira edição do Dona Ruth: Festival de Teatro Negro de São Paulo. A sua permissão para que nós a homenageássemos de forma permanente, e o seu próprio interesse pelo Festival como um todo foi fundamental para seguirmos em frente. Estávamos preparando aquilo que nós três havíamos combinado: organizar uma estrutura para que a senhora participasse do festival mesmo à distância e registrar todo o evento em fotos e vídeos para que pudesse acompanhar por meio do seu tablet. A exposição que tanto queríamos fazer, inclusive com os materiais que a senhora nos ofereceu, ainda não saiu, mas estamos trabalhando para que isso aconteça logo. Foi uma luta imensa, dona Ruth, para tirar o Festival do papel e fazermos acontecer em condições dignas, coisa que a senhora sempre nos ensinou a fazer com as suas práticas políticas e pedagógicas desde os tempos do Teatro Experimental do Negro. Nesse sentido, de lá pra cá, infelizmente pouco mudou para que nós, artistas negros, em termos de conseguir recursos orçamentários para realizar os nossos projetos autorais. É sempre uma luta muito grande para provar que o que fazemos, além de ter qualidade, tem a capacidade de mobilizar interesse público e dialogar com todos os assuntos mais caros para a sociedade brasileira. Para além disso, pensamos que é como se uma estrutura fosse criada para gerar disputas entre nós para os poucos recursos disponibilizados. Uma perversidade. Falamos um pouco sobre isso em nosso encontro, né? Mas enfim, obviamente existem avanços e eles só foram possíveis de serem conquistados graças a senhora e a tantas outras e outros artistas da sua geração. Temos hoje no país uma cena artística negra em efervescência elaborando estéticas, poética e políticas que são, a nosso ver, o que de mais interessante e significativo tem acontecido na arte contemporânea do país. Este é o tamanho do seu legado, percebe? Bem, ainda sobre a primeira edição do Festival, como dissemos, ele aconteceu em outubro e durou até o comecinho de novembro. Tivemos uma parceria muito importante com o Sesc SP, e esta edição aconteceu na unidade do Sesc Interlagos, que fica localizado na região do Grajaú, extremo sul da capital. Era mesmo o nosso desejo que a história desse Festival na cidade tivesse início nos territórios periféricos, porque esse evento é construído por nós, para as nossas e os nossos e, também, porque a cena teatral da cidade acaba se concentrando de forma mais intensa na região central – lugar que sabemos que inevitavelmente iremos estar também. Na programação, muito do que lhe contamos foi possível fazer: uma programação celebrando a história dos teatros negros paulistanos com companhias, grupos, coletivos e artistas pioneiros na cidade em um encontro intergeracional entre os que vieram antes e os mais jovens. Tivemos uma performance linda, intitulada de “Femenagem à Ruth de Souza” dedicada à senhora e criada pelas Capulanas Cia de Negra, Clarianas e Zona Agbara, três grupos compostos por mulheres negras do teatro, dança e música daqui de São Paulo. Sabe quem participou do Festival também? Léa Garcia! Foi um presente conhecer a sua grande amiga, dona Ruth. A dona Léa, assim como a senhora, é maravilhosa e compôs uma das nossas Giras de Conversa dedicada à sua vida e obra junto com a Lu Gondim, a Dani Ornellas, a Maria Ceiça e com o Júlio Cláudio da Silva. Foi emocionante. Acredita que depois demos um rolê com a dona Léa? A levamos para conhecer a Aparelha Luzia, que é um quilombo urbano localizado na região central da cidade. Tivemos uma noite inesquecível e a dona Léa mostrou ter muito mais disposição do que nós para o rolê. Desde então sempre trocamos ideias com ela.
O Festival foi um sucesso, dona Ruth! Se já não tínhamos dúvidas da importância de um evento como esse, a partir daí a certeza só aumentou. Encontramos tanta gente incrível que colou junto e demonstrou tanto apoio e disposição para caminhar conosco, que mal encerramos a primeira edição e começamos a trabalhar para construir a segunda. O sonho desses jovens estava começando a se realizar. Seguimos trabalhando e buscando as parcerias para garantir a estrutura necessária para a segunda edição do Festival. Só que aí, aconteceu que o mundo foi tomado por uma pandemia de um vírus chamado coronavírus. No Brasil, essa nova pandemia (nova porque percebemos que por aqui já existiam muitas outras) se intensifica e nossa gente morre ainda mais, porque os brasileiros resolveram eleger para governar o país um ditador, genocida e negacionista da ciência, da saúde, da educação, da cultura, da ética e tantos outros valores que deveriam ser inegociáveis. E nessa imensidão de Brasis, muitos outros ditadores e genocidas anteriormente escondidos agora andam tranquilos pelas ruas, falam pelas redes sociais, lançam suas vozes nas rádios e mostram suas caras nos jornais e TV. E tudo isso sem qualquer constrangimento. A senhora sabe bem como é isso, não é? Em meio a muitas disputas políticas, negacionismos e uma série de barbaridades que colocam a vida do povo na mira da fome e da morte, tem gente pedindo a volta da ditadura militar, dona Ruth. Nos constrange tanto ter que te contar isso, porque sabemos que a senhora viveu e sobreviveu, como uma mulher, negra e artista, sob os regimes autoritários no Brasil. Nós sabemos das estratégias que a senhora construiu. Nós sabemos das estratégias construídas pelo Teatro Experimental do Negro. Nós sabemos do exílio, da tortura e da morte que afetou a nossa gente preta que se levantou contra o autoritarismo. Estamos doentes de Brasil, dona Ruth.
Mas nós, que temos a memória como fundamento, lançamos o nosso olhar para as e os que vieram antes de nós, nos apoiamos na nossa ancestralidade e nos levantamos também contra todas as tiranias e pandemias sistêmicas que nos ferem de fome e morte. Foi com esse fundamento que construímos a segunda edição do Dona Ruth: Festival de Teatro Negro de São Paulo, num formato onlie. Não se assuste, é isso mesmo, uma edição online. Com a pandemia, medidas de isolamento e distanciamento social foram implementadas: nada de aglomerações de pessoas, uso de máscaras, higienização constante das mãos - é bem verdade que isso não tem funcionado muito bem, porque as pessoas não são capazes de cumprir estas regras básicas com vigor e os governos não ajudam, mas ainda assim são medidas necessárias para preservarmos as nossas vidas. A gente teve que inventar outras formas de fazer teatro, sem público cara a cara com os artistas em cena e com elencos reduzidos. Teve de tudo: teatro gravado, teatro sendo transmitido de dentro das casas das pessoas, teatro sendo transmitido ao vivo de espaços culturais e por aí vai. Teve até aquela discussão de “é teatro ou não é teatro?” É uma novidade interessante e desafiadora, porém cansativa ao mesmo tempo. Não sabemos quando voltaremos ao teatro presencial, pois dependemos da vacinação contra esse vírus malditdo para podermos nos reunir com segurança, e por aqui esse processo de imunização está extremamente lento e burocrático. Nada surpreendente se tratando do Brasil. Bom, a gente decidiu se jogar e realizar a segunda edição do Festival mesmo nessas condições, e contamos com o apoio fundamental da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo. Formamos uma equipe incrível e fomos para os teatros, sem público: as artistas realizavam os espetáculos nos palcos dos teatros públicos e nós transmitíamos ao vivo pela internet. Foi tão bonito e potente, dona Ruth. Não é a mesma coisa de estar no palco com o público presente ali com a gente, corpo a corpo, mas a gente conseguiu estar junto de alguma forma e criar um outro espaço de encontro, sabe? A senhora ia adorar! Com certeza ia acompanhar cada espetáculo pelo seu tablet e comentar no chat as suas impressões sobre eles, interagindo com o público que ficaria enlouquecido com a sua presença. Imagina, a senhora poderia lá da sua casa no Rio de Janeiro participar de uma das Giras de Conversa sobre a senhora mesmo. Quer dizer, nem faz sentido isso, porque na verdade a senhora poderia estar com a gente da maneira que desejasse. A gente queria tanto isso, dona Ruth. Zezé Motta esteve conosco, compartilhando sobre o ofício de atriz em uma sala virtual lotada de outras mulheres negras. Coisa linda! Sabe quem esteve com a gente, também? A professora Leda Maria Martins. A senhora conhece ela? Ah, com certeza conhece. Ela disse coisas tão lindas sobre a senhora. Leda é tão fundamental e importante pra nós. E a senhora nem sabe: nós fizemos uma homenagem aos 20 anos da Invasores Cia Experimental de Teatro Negro e aos 45 anos do Teatro Popular Solano Trindade. Os dois grupos criaram uma performance juntos para celebrar as suas trajetórias e existências. Nossa! É tão bom, dona Ruth, a gente poder celebrar as nossas histórias. Ainda mais quando não é uma história qualquer, mas a de dois grupos tão importantes para o teatro brasileiro e que são invenções dessas gigantes artistas mulheres negras: Dirce Thomaz e Raquel Trindade.
Dona Ruth, a Dirce é assim igual a senhora: boa de prosa, tem dentro dela tantas memórias da história dos Brasis, dos teatros, das artes, das nossas lutas. Ela falando da senhora é de uma boniteza sem fim. Outro dia mesmo, a gente tava falando pra ela que íamos te escrever essa e muitas outras cartas, e ela nos disse: “a Ruth me contou que adorava receber cartas”. Qualquer dia desses ela vai te escrever também. E dona Raquel? Que lindo que é ler as palavras dela sobre a senhora, contando da amizade que começou quando ela ainda era uma menina, da amizade da senhora com o Seu Solano Trindade, e de como ela e o pai te admiravam pela sua inteligência, pela sua dignidade, pelo seu talento, pelo seu conhecimento sobre o mundo e sobre as artes, pelo seu apreço pelo estudo, pela sua persistência e suas estratégias de luta e por tanto mais que a senhora transbordava de si. Dona Raquel e Dirce Thomaz são a sua continuidade, dona Ruth, assim como nós somos a continuidade de vocês três: mulheres teimosas e persistentes, comprometidas, cada qual a sua forma, em construir outros mundos para a nossa gente. Somos tão gratos por tanto que vocês já fizeram por nós.
Vamos lidando com a saudade da senhora revendo as suas brilhantes atuações em filmes, novelas e te imaginando no palco por meio das suas fotografias em montagens teatrais. Já estamos em 2021, dona Ruth, o tempo voou mesmo desde o nosso último encontro. A vida por aqui não anda fácil. É verdade que pro nosso povo preto e pobre nada nunca foi fácil. Só que agora, as violências sempre lançadas contra nós foram atualizadas e intensificadas de uma maneira tão absurda que todos os dias a gente se pergunta se deve insistir um pouco mais: insistir em ser artistas, insistir em sonhar com outro mundo possível, insistir em criar condições para que a nossa gente tenha uma vida mais digna e justa. Tem tanta gente com fome, dona Ruth, que parece tão pouco provável que alguma coisa boa possa acontecer, que uma mudança radical possa ser concretizada. Aos poucos, a gente vai perdendo a fé na vida, nas pessoas e até na gente mesmo, sabe? Estamos doentes de tristeza e de desesperança, dona Ruth. Este é nosso sentimento hoje no Brasil.
Mas sabe o que fortalece a gente, nos mantendo conscientes de que a luta é constante e de que precisamos construir estratégias para seguir a caminhada? A senhora, dona Ruth. Sabe o que que mantém vivo em nós a certeza de ser artista e persistir em ser artista? A senhora, dona Ruth. Sabe o que fundamenta em nós o sonho de garantia de futuros para o nosso povo e para todas as pessoas? A senhora, dona Ruth. A senhora nos ensina tanto! Ensina sobre caminhar em bando, sobre ser estratégico, sobre se mover em segredo (e olha que bonito, outro dia aprendemos com os Kariri Xocós que onde não há segredo não há força. E a senhora parece que já sabia disso). A senhora, com seus cem anos de idade e mais de setenta anos de carreira, nos ensina sobre como permanecer. É verdade que a gente ainda bate cabeça, erra, erra e erra. É que permanecer não é fácil. Mas, olha, nós estamos tentando … E quando dizemos nós, nos referimos a um tanto de artistas negras, negres e negros, um tanto de gente preta cujos os nomes nós não sabemos, mas que seguem lutando diariamente, se inspirando no seu talento e de tantas outras e outros da sua gereção. Estamos todes tentando, mantendo vivo dentro de nós, como um sonho nosso, o seu sonho de menina negra que queria ser atriz.
Tem uma frase, dona Ruth, do Laudeni Casemiro, mais conhecido como Beto sem braço, que diz assim: o que espanta miséria é a festa! Neste ano de misérias inumeráveis que nos desencantam, nós invocamos a energia da festa que nos mantém encantados com a vida, para celebrar os seus cem anos. Cem anos de um sonho que se move no tempo.
Hoje, 12 de maio de 2021, é o seu aniversário, e nós queremos gritar pro mundo o seu nome, espalhar pela cidade o seu rosto e fazer saber a quem ainda não sabe quem é Ruth de Souza!
Nós somos a sua continuidade, dona Ruth, e a continuidade de cada pessoa negra que nos antecede no sonho e na luta pelo nosso direito de existir. E nós nos comprometemos, assim como a senhora nos ensinou, a permanecer, marcando nas histórias do mundo as nossas presenças, ciências e poéticas negras.
Muito obrigada por ser essa imensidão de mulher e de artista.
Com um amor inenarrável e uma saudade gigante,
Ellen de Paula e Gabriel Cândido