Parte do trio à frente da Cátedra Olavo Setubal, a pesquisadora fala sobre as exigências de uma diversidade real e de uma ética do cuidado
Publicado em 01/09/2024
Atualizado às 10:27 de 01/10/2024
por Duanne Ribeiro
A educadora, pesquisadora e ativista Sandra Benites tem um sonho. Deseja fazer “uma escola, não uma escola padrão, mas uma escola que cuida, acolhe e fortalece pessoas e coisas”. De origem guarani, ela considera que até poderia criá-la em sua aldeia, contudo, como intenciona um ambiente de “acolhimento diverso – com não indígenas, mulheres, homens, todos os seres humanos e não humanos”, prefere “um lugar próprio”, próximo a um rio, onde haja espaço para o cultivo de plantas e o banho. Ainda não há verba para realizá-lo, mas a vontade desse ponto de “conversa e debate, encontro e soma” persiste.
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Os valores entrelaçados nesse sonho dão o tom da sua trajetória e da entrevista a seguir. Sandra é uma das três mulheres que, neste ano, se tornaram titulares da Cátedra Olavo Setubal. Ao lado de Arissana Pataxó e Francy Baniwa, igualmente pesquisadoras, ela, que também é diretora de artes visuais da Fundação Nacional de Artes (Funarte), promove em 2024 o projeto Caminho da cutia: territórios e saberes das mulheres indígenas. Ao site do Itaú Cultural (IC), Sandra falou sobre a invisibilização de contribuições femininas; sobre a cosmologia do seu povo, os Guarani Nhandewa; sobre como a diversidade exige a criação de novas dinâmicas nas instituições; sobre suicídio, território e mais.
Problemática do convite
Uma das preocupações de Sandra ao ser convidada para liderar a Cátedra Olavo Setubal era se essa chamada consistia numa abertura concreta. A primeira questão nesse sentido era se haveria tempo hábil para o cumprimento das atividades. Quando soube que Francy e Arissana também haviam sido convidadas, ficou “muito interessada”, mas enxergou aí um desafio, pois “somos três mulheres superocupadas, supermilitantes”.
A segunda questão era o quanto a instituição seria, de fato, permeável às temáticas e às dinâmicas trazidas do lado de fora dela. Sandra aponta que os povos indígenas têm “inquietações” políticas, culturais e existenciais que precisam ser atendidas; existe toda uma “bagagem” para se dar conta. Com frequência, afirma ela, esses fatores não têm atenção suficiente: “Muitas das vezes, a gente ainda é atropelada por conta das demandas das instituições [em detrimento das nossas]. Para mim, é um desafio muito grande”.
“Temos de ter muito cuidado para não sermos engolidos”, avança a pesquisadora, “moldados pela conduta própria dessas instituições” – absorção essa em que prazos apertados não têm impacto pequeno, “porque a gente tem de correr, tem de fazer um monte de coisa, daí entra nesse jogo da angústia e esquece o que nos leva até aí”. Esses são os cuidados tendo em vista um trabalho genuíno: "Se for apenas para seguir a estrutura, seguir a regra da instituição, não significa que estou presente lá, enquanto mulher indígena. Isso não resolve... me levar para dizer que estou presente, mas de mãos atadas. Não consigo aceitar essa postura".
Apesar de considerar que um ano não é suficiente para concluir um projeto de pesquisa como esse, Sandra dá a entender que se dispuseram a tratar de temas mais prementes e pôr algo em movimento, o que poderia ser perseguido depois pela universidade. "O Caminho da cutia", entende ela, "não garante que a gente vá resolver a questão, mas [serve] para abrir o debate. Acredito que falar [dessas histórias] é importante, tratar o assunto com urgência e preservar os saberes das mulheres, das parteiras, das rezadeiras e também das educadoras, que nos ensinam, que mostram o caminho, que contam histórias para nós".
A mulher como lacuna
Juntas, as três catedráticas atuaram no edital que selecionou bolsistas para o projeto. Ponderaram sobre prioridades, levando em consideração que “algumas lacunas são mais gritantes”. Aquela que decidiram focalizar foi a “invisibilização do esforço das mulheres indígenas”, apagamento que acontece “por mais que elas façam mil coisas". Por exemplo, segue Sandra: “[a escritora] Eliane Potiguara, [a pedagoga] Dona Catarina e outras que participaram do movimento para garantir os direitos indígenas na Constituição de 1988 não são citadas em nenhum lugar”.
A escolha de sublinhar trajetórias femininas também veio, de um lado, da vivência do trio – “nós, três mulheres indígenas, com percursos muito específicos, passamos por vários desafios e dificuldades por conta de sermos mulheres” – e, de outro, da contribuição peculiar que essa perspectiva pode trazer: “Nós, mulheres, trazemos várias questões para os espaços que ocupamos que são diferentes – não totalmente – daquelas dos homens indígenas”. Uma dessas diferenças é a maternidade: “Vamos falar também sobre território, vamos falar sobre as nossas lutas, só que [no nosso caso] são lutas mais desafiadoras ainda, porque somos mães”.
Ser mãe, ser indígena e – como é o caso de Sandra e de outras mulheres que estão em pauta no Caminho da cutia – se dedicar à formação universitária e à carreira acadêmica é um dilema particular nesse contexto. Entre os indígenas, declara a entrevistada, não é visto como normal as mães saírem de casa para se dedicar aos estudos: “Precisamos estar junto com nossos filhos. A maioria das mães não participa da licenciatura, não vai fazer graduação, não vai continuar suas pesquisas de mestrado, doutorado, exatamente porque tem esse desafio ou esse lugar de não acolhimento. Então a gente deixa nossos filhos crescerem para depois continuar – é o meu caso, o da Francy e o da Arissana também. Isso não é fácil para a gente”.
A necessidade de deixar o seu território para estudar também traz complicações, conta Sandra: “Sair da nossa aldeia é sair do nosso conforto, porque o nosso conforto é a nossa aldeia, é a nossa família, é os nossos filhos estarem perto”. Essa mudança é como perder o chão: “Quando saímos da aldeia, mexe com o nosso emocional, porque se teve de escolher morar na cidade, em um mundo onde não se conhece ninguém, muitas vezes isolada, vivendo somente para o nosso trabalho, só para o nosso estudo, nos empenhando. Daí voltamos e nos fechamos na casa, o que não é o nosso costume. Isso é muito difícil, não só para as mulheres, mas para as mulheres é muito mais difícil, porque somos a base de muitas aldeias, então quando saímos é um desafio”.
Versões contra as hierarquias
A figura da mulher também se destaca entre os povos originários, na medida em que se entremeia com a sua cosmologia, “porque nós, mulheres indígenas”, diz a entrevistada, “toda a nação indígena, aliás, entendemos a Terra como um corpo feminino, por isso que a chamamos de Terra-mãe”. Em sua pesquisa acadêmica – que abrange a dissertação “Viver na língua Guarani Nhandewa (mulher falando)” e a tese, ainda sendo realizada, “Kunhangue reko: fundamentação do teko tekoha a partir da visão das nhandesy kuery” –, Sandra quis entender os motivos dessa concepção de alcance ético e metafísico.
“Para eu poder explicar isso, tive de escutar as mulheres”, explana ela, “principalmente porque essa narrativa vai se ajustando ou se transformando de acordo com quem conta e para quem está contando, e também de acordo com a temporalidade”. Dessa maneira, “cada um tem a sua versão – as mulheres têm uma versão, os homens outra, a juventude também”, e essa variedade de versões “é muito importante para a gente, porque senão se entende que o mundo é apenas de um jeito, se torna uma hierarquia – quem conta a história achar que é o certo, o verdadeiro –, e isso é um pouco perigoso”.
Assim, é como se as contações trouxessem um remédio para o que a escritora Chimamanda Ngozi Adichie chamou de “o perigo de uma história única”, o apagamento da pluralidade intrínseca às culturas. Na fala de Sandra, essa perspectiva tem várias camadas, sendo uma delas a política: “No mundo do patriarcado, quem tem poder são os homens, e, para o poder não ficar somente na mão deles, a gente precisa escutar histórias diversas”. Já outras camadas abrangem maneiras de viver e pensar: “Quanto mais versões houver, melhor, pois esse é o caminho para entender como a gente se agrupa e interage, respeitando as diversidades”. Em suma, “diversidade é olhar, é ciência. Os modos de estar, de enxergar, de interagir com o outro”.
Pisar nesse chão devagarinho
Sandra ressalta que pensar uma Terra-mãe “não é simplesmente dizer ‘a nossa mãe é a nossa terra’”, mas entender o território como espaço de conexão entre povo e mundo, o que se dá ritualisticamente. “Os rituais são processos em que a gente se relaciona com a Terra”, informa ela, dando o seguinte exemplo: “Quando vamos plantar, fazer a roça, temos o ritual de pedir permissão. Quando a gente colhe, tem o ritual de festejar, de agradecer a esses espíritos da Terra. Tudo isso tem a ver com a Terra ser nossa mãe. É uma questão de respeito pedir permissão. Essa mãe continua dando vida; as árvores, os rios, os animais, todas as coisas que existem na Terra são parte de nós, é a nossa vida”.
Outro ritual destacado por Sandra nesse contexto é o jeroki ywyra’ija, a dança do guerreiro, própria dos homens, mas que tem a participação das mulheres. “É uma dança com muito movimento, é tensa. [Nela, deve-se] ter o corpo leve e pisar leve – ter corpo leve, nos povos Guarani, é saber escutar, ou seja, falar menos, ser muito silencioso, saber ficar concentrado.”
Essa sabedoria, performada nessa dança, permeia outras práticas. “Quando se vai para a mata para trazer algo de lá, [aprendemos] a ir muito devagar, a saber escutar o som da natureza e a enxergar longe – e ‘enxergar longe’ não é pelos olhos, mas sim pela escuta.” Por meio disso, pode-se “sentir o perigo, sentir como se desviar dos perigos” de modo a não se machucar nem acabar ferindo animais e plantas. “O pisar leve”, diz Sandra, “tem essa relação com o cuidado: onde se pisa, onde se ocupa; preparar o ouvido, preparar o olhar e preparar o sentimento”.
Efeitos da perda de referências
"Falar disso também é muito importante", argumenta Sandra, "porque muitos indígenas estão sem território, ou seja, estão limitados, vivendo onde não tem rio, não tem mato, não tem animais, não tem mais nada. Eu moro na cidade e me vejo nesse sufoco, porque não tem para onde você ir, não tem aonde ir pedir permissão. Como você vai praticar esse seu conhecimento se não tem rio, não tem floresta, não tem animais, não tem mais nada? Como mantemos o nosso conhecimento, como vamos repassar esse conhecimento para outras gerações?".
A falta de oportunidade para exercer esses saberes que são essencialmente práticos tem fortes impactos, diz Sandra, na saúde física e mental dos indígenas. Ela relaciona a isso os suicídios de indígenas, cuja taxa, em 2020, era quase o triplo daquela da população brasileira em geral, sendo que a maior parte dos vitimados estava na juventude. A entrevistada – que perdeu uma irmã de 13 anos por suicídio – menciona mortes recentes de jovens em Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e comenta: "Isso é um dos fatores de não se ter referência, não ter mais essa prática, esses rituais, esse diálogo. Nossa espiritualidade também depende desses elementos – rios, plantas, animais. É como se perdêssemos nossos braços, as nossas pernas". E conclui: "Para mim, é muito profundo falar sobre isso – mas a gente tem que falar, não dá para a gente silenciar o tempo todo, eu tenho que falar".
Transgressão e encontro
A relação com as instituições; as tensões entre maternidade, estudo e vida profissional; as lutas políticas; o desenraizamento; a necessidade de afirmar identidade e demandas – essas e outras questões estão naquelas "inquietações" e na "bagagem" a que Sandra se referia. Neste cenário, buscar transformações exige, segundo ela, desorganização e desobediência.
Isso porque, nas instituições, "essa ideia de organização [conduz] uma única forma de pensar, e nisso não cabe a diversidade, não cabem as mães, não cabem as crianças, não cabe ninguém – só um único corpo, que é homem branco e tem dinheiro". Quando outras realidades adentram esses espaços, por exemplo, por meio de um mecanismo de cotas – que "obriga a universidade a se desorganizar, a repensar a sua postura" –, causam abalos: "A presença do corpo indígena, do corpo preto, começa a balançar essa estrutura do pensamento colonial. A partir do momento que a gente está presente já é uma chacoalhada na estrutura, que não é fácil de romper".
Dentro desses espaços, acrescenta ela, esses corpos outros não são pautados pela adequação: "Quando a gente ocupa esses lugares, a gente desobedece, e essa ideia de desobediência não é negativa, de mal-educado, mas [se desdobra] porque a gente é diferente, tem outra realidade; a gente traz outra percepção e isso tem que ser respeitado". Essa presença transgressora é algo que se impõe: "A gente não está preparado para enfrentar esse mundo conflituoso, mas, quando a gente entra nele, já entra no conflito". Isso, porém, não implica "desconstruir, não é deixar de lado o que está acontecendo. É trazer mais algo, eu diria, um encontro", esclarece.
O que é o cálculo para os Guarani?
Ao fim da entrevista, Sandra quis contar uma história sobre um dos seus filhos – uma narrativa que retoma temas do seu depoimento e fala das dificuldades de se realizar um sonho. "Em todas as entrevistas, em todos os trabalhos que faço, trago este exemplo", começa ela. De fato, à 35ª Bienal de São Paulo, ela também levou esta memória: "O meu filho é engenheiro ambiental e sanitário. Quando entrou na faculdade, ficou muito feliz, pois era o seu sonho. Um ano depois, ele me ligou e disse que ia desistir, porque tinha muita dificuldade em cálculo, física e química".
"Como entrou muito novo, com 18 anos", prossegue, "terminou o ensino médio e já foi para a universidade, não teve essa preparação do enfrentamento, e isso a gente só faz com o tempo. Ele se sentiu incompetente; daí, falei para ele trancar a faculdade e ele ficou muito frustrado, se culpou, culpou a escola – porque não estudou na escola particular – por não acompanhar os outros colegas que sabiam mais do que ele. Então falei que quem não tinha competência de o acolher – enquanto indígena, enquanto Guarani – era a universidade, porque temos o nosso cálculo de física e química, mas vivenciamos isso no dia a dia".
"Depois ele voltou à faculdade e voltou mais forte", retoma ela, "porque soube escutar, soube construir o seu fortalecimento de como enfrentar – não confrontando, mas encontrando uma forma de atuar, de encarar essa violência, essa colonização, que também é racismo... apagar o conhecimento do outro. É impossível tratar de diversidade se não tratar disso também".
Sandra enfatiza ainda, nessa lembrança, a necessidade de diálogo entre epistemologias diversas. "O que é cálculo de física e química para os Guarani e outros povos indígenas? É como falei no começo: pedir permissão para tirar uma casca, pedir permissão para os espíritos das árvores, pedir permissão para os espíritos das águas da nascente. A forma de a gente pensar, calcular, somar, resolver, isso não é discutido. Não estou dizendo que a metodologia branca, ocidental, de pesquisadores, cientistas é errada, mas poderia se somar a esse outro conhecimento."
"Acredito que, hoje, as universidades estão se ajustando, aos poucos, para trazer outros debates, com a presença de indígenas e de outras comunidades, mas ainda é muito lento, muito pequeno", avalia Sandra. E conclui: "Se não se souber escutar e acolher, nunca vai fazer sentido. Mas faz sentido para nós, então é importante conversar sobre isso".