De forma amorosa, a autora-destaque do Cantinho da Leitura de março relembra sua trajetória, caminho todo pautado pelos livros
Publicado em 29/03/2019
Atualizado às 11:33 de 30/12/2019
É Angela Davis quem alerta a todos: não basta, só e tão só, não ser racista; deve-se cultivar, sempre e tão sempre, uma postura antirracista. A colocação da filósofa norte-americana, um chamado em prol de um comportamento ativo e empático, ressoa por entre manifestações e países diversos. Na literatura brasileira contemporânea, por exemplo, a autora Sonia Rosa busca descolonizar o imaginário dos pequenos leitores: por meio de personagens como Nito, um menino que não aprisiona o choro, e Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares, a artista elabora tramas que valorizam os negros – fictícios ou reais.
Para além do burilar dos vocábulos, Sonia também atua em esferas outras: docente e contadora de histórias, oferece às crianças enredos que ampliam a capacidade delas de se sensibilizarem com o próximo. Nascida em 1959, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), a escritora costuma dizer que narrar um causo é o mesmo que abraçar: com frases e invencionice, envolve-se um alguém que bem pode retribuir tamanha afeição. E de carinho a educadora entende, posto que, para ela, o ofício literário está unido a uma ternura grande, vinda de gente amiga e de gente anônima. “Minha alegria é saber quanto a literatura me proporcionou caminhar, no sentido de andar para a frente, de vivenciar experiências e afetos”, pondera a criadora de Vovó Benuta (2012).
Com obras contempladas pelo selo Altamente Recomendável, marca atribuída pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), Sonia Rosa coleciona homenagens, do diploma Orgulho Carioca (honraria ganha em 1999 por sua dedicação ao Ensino Público Municipal) às salas de leitura e bibliotecas batizadas com o seu nome (em colégios no Realengo, na Tijuca e em demais bairros fluminenses). No Cantinho da Leitura do Itaú Cultural, em março, mais um realce: ela é a autora-destaque do projeto e, durante o mês, seus títulos estarão disponíveis para o público, que não é apenas de miúdos – há muitas pessoas crescidas que se encantam com a carta de Esperança Garcia ou com os tesouros de Monifa. Na entrevista a seguir, Sonia aborda batalhas e fascínios seus, duas das forças que movem suas letras.
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Qual sua primeira recordação a respeito dos livros e da literatura?
Nasci em uma comunidade no Rio de Janeiro, uma favela que não existe mais. Passei por uma remoção, onde hoje é o Planetário, na Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ), na Gávea. Nesse período, não tive livros em casa, mas havia as narrativas e o afeto, que são o diferencial. Minha mãe (baiana que chegou ao Rio com 16 anos) contava as histórias de seu repertório vasto. Ela, aliás, tinha um apreço pela poesia. Já na escola, tive contato com os livros e fiquei fascinada: ainda garota, fazia versos. Porém, nunca desejei ser escritora, pois esse sonho não cabia em meu contexto. Queria, isso, sim, ser professora. A literatura entrou em mim pelo viés da oralidade e pelo fascínio com a palavra dita.
Você é escritora, contadora de histórias e educadora. Como une essas três atuações?
Uma fortalece a outra. Quis ser professora – e não foi fácil. Em um meio economicamente empobrecido, tudo é mais difícil. No entanto, almejei e consegui ser professora. Ao estudar para isso, tornei-me mais apaixonada pelas palavras e entendi o poder delas. Fui aprovada no concurso para o magistério público e, então, comecei a contar histórias para meus alunos. Levava Ruth Rocha, Ziraldo, autores que lá estavam quando iniciei minha carreira. Trabalhar com crianças é fantástico: você encontra uma pureza. Em comunidades, lidei com pequenos que, muitas vezes, não eram nem chamados por seus nomes. Não é fácil, mas é possível.
Depois de casada e com um filho, pus-me a escrever. Foi inventando narrativas para minhas crianças que passei a escrever. Tive esse transbordamento daquilo que não suportamos: é importante que coloquemos no papel para que tenhamos esse esvaziamento. Seja coisa boa, que a gente compartilha, seja coisa ruim, que a gente drena.
O que significa, em sua opinião, produzir para o público infantil?
Uma responsabilidade enorme. A criança é muito inteligente e sensível. Ela pode não compreender, mas sente. A escrita é também um jeito de estar perto desse público, o que eu adoro: vou bastante às escolas, fico junto dos estudantes. Vale dizer que não escrevo para ensinar. Um texto literário que desrespeita a inteligência infantil, que desrespeita a diversidade racial, deforma. Acho que várias das manifestações racistas são originadas dessa deformação, dessa sociedade que não é igualitária. Ter, portanto, a chance de mexer nas relações dos pequeninos, nesse racismo estrutural, é um dos maiores prêmios para mim.
Manifestações populares diversas, da capoeira ao maracatu, são temas de seus escritos. O que é, para você, cultura popular? E por que colocá-la em suas criações?
Cultura popular é aquilo que emerge do povo. Cresci em um espaço em que a cultura é alimentada no convívio de todos. Na escrita, faço um recorte na matriz africana, pois meu objetivo é abordar a temática negra. Nesse sentido, falo, com minha veia poética, sobre o maracatu, o jongo, a capoeira, modalidades vindas de uma época em que os escravizados tinham sua cultura diminuída. Quero que nossas crianças se desloquem de uma visão eurocêntrica para uma possibilidade de vivenciar e perceber que há outros olhares.
Seu primeiro volume, O Menino Nito (1995), apresenta o tema da autoestima e a desconstrução de uma masculinidade prejudicial para os meninos. Como você enxerga essa questão?
Nito é um menino negro. Eu quis que fosse um menino negro. Escrevi esse enredo em 1988 e só o publiquei em 1995. Levei um tempo para transformar meu desejo, que passou a ser sonho, que passou a ser luta, em realização. Eu sou negra, meus alunos são negros e julguei natural que meu título de estreia tivesse um personagem negro. Gosto de ser contemplada como uma escritora que tem uma obra voltada para tramas e protagonistas negros – tal como a Mangueira, foquei no que não está no retrato. No mais, construo as histórias mediante minhas vivências. Minha mãe tinha um potencial machista considerável. Ela era dura com meus irmãos: “homem não chora”, “homem ri da dor”, ela falava há 60 anos. Tive muitos alunos travados em suas emoções e sempre achei isso um absurdo, visto que emoções e lágrimas não têm sexo. Por vezes, a gente precisa do choro físico mesmo. Ficamos com medo, duro que nem pau, com as mãos cerradas. Toco nesse assunto para que cuidemos da autoestima e da sensibilidade dos garotos.
Como você avalia o ensino de literatura no Brasil nos dias atuais?
Literatura não se ensina, compartilha. Creio que o professor deve contar histórias no começo da aula, para que seja instaurada essa perspectiva simples de partilha. Contudo, vejo que existem avanços: em colégios públicos, há programas bem legais de incentivo à leitura.
Se sua produção não fosse voltada para crianças, você escreveria mesmo assim?
Escrever para crianças tem me dado tudo o que tenho. Por que enfatizo isso? Porque o mercado para a literatura infantil (principalmente com essa configuração afro-brasileira) sofre preconceito: “ah, é um ofício menor”, declaram alguns. Trata-se de um trabalho exigente. Eu me preparo para não falar bobagem, estudo, não é uma coisa qualquer. Choro ao pensar nessa minha caminhada. Não tenho interesse de escrever para adulto, pois meu foco é a ambiência escolar. O livro e a literatura são, enfim, cúmplices das coisas do coração.