“O grande legado de Pelé é a sua existência”, diz Luis Bueno, artista urbano responsável pela série “Pelé beijoqueiro”
Publicado em 19/01/2023
Atualizado às 10:32 de 24/01/2023
Não só um beijo, mas um abraço também (gestos de carinho em harmonia): assim aparece Pelé na imagem que ganha as ruas de São Paulo. Ou de Santos – cidade-casa do Rei do Futebol e onde Luis Bueno, responsável pela série Pelé beijoqueiro, colou o primeiro lambe-lambe depois da morte de Edson Arantes do Nascimento. Ou do exterior, da Argentina ao Chile. A valer, Pelé está em toda parte e, nas mãos de Luis, o mestre surge ao lado de gente e personagens variados, a exemplo da Mona Lisa, símbolo de arte tal qual o futebol-espetáculo. Como homenagem ao eterno camisa 10, Luis conta ao site do Itaú Cultural (IC) sobre o trabalho já citado e a sua relação com o encantador da bola. Confira o bate-papo abaixo.
Qual a sua primeira lembrança em relação a Pelé?
Nasci em 1980 e, nessa época, ele era, provavelmente, a celebridade mais conhecida, alguém que muito aparecia na mídia de maneira geral. A isso, soma-se o fato de que o meu pai sempre amou futebol e me falava de Pelé. Sou são-paulino por causa do meu pai, torcedor do São Paulo que assistia a mais jogos do Santos de Pelé do que do próprio time, torcedor que acompanhou a carreira do Rei desde o início. Logo, não tenho uma primeira lembrança. Pelé é onipresente para mim desde a infância.
Como se deu a criação da série Pelé beijoqueiro?
Em 2007, comecei a fazer arte urbana e estava lendo Informação, linguagem, comunicação (1968), livro de Décio Pignatari. Na obra, há um desenho de Pelé em preto e branco, formas simples que são uma síntese da força da imagem dele. Mais tarde, quando passei a experimentar o estêncil nas ruas, peguei essa ilustração (um estêncil pronto) e, com uma única modificação (coloquei um anel ao redor da bola como se ela fosse o planeta Saturno), espalhei por São Paulo.
Em 2009, uma amiga minha, que conhecia esse trabalho anterior, me enviou a foto de Pelé beijando Muhammad Ali. Nesse período, não existia tanta circulação de imagem, tantas redes sociais. Então, foi a primeira vez que vi essa fotografia. E, quando isso aconteceu, pensei no mesmo instante: posso recortar Pelé e deixá-lo com outras pessoas. No dia seguinte, mandei para essa amiga uma versão: inverti as cores da camisa do New York Cosmos [time em que o jogador atuou de 1975 a 1977] de modo que ela ficasse como a do Santos e troquei Muhammad Ali por Mona Lisa. A minha amiga adorou a ideia e, desse jeito, percebi que havia ali um universo de possibilidades.
Por que o uso do lambe-lambe no projeto em questão?
Essa série consolidou a minha escolha do lambe-lambe como técnica principal de trabalho. Antes, utilizava o estêncil, mas notei que, se o empregasse nesse projeto, levaria bastante tempo para realizar cada um. O lambe-lambe, ao contrário, torna o processo ágil e me dá liberdade para criar com a linguagem fotográfica.
Como você seleciona quem ficará com Pelé? E se arrepende de alguma dessas escolhas?
Não me arrependo de nenhuma das escolhas, pois seleciono muito bem. Claro que as personagens que retratei são passíveis de erros como todo mundo. Porém, não me arrependo de nenhuma delas, tampouco ocorreu alguma repercussão negativa. Aliás, não costumo aceitar pedidos ou sugestões, só de amigos íntimos (caso a recomendação venha ao encontro com coisas que já estavam comigo). Por exemplo, um amigo que me sugeriu fazer Pelé com Sabotage. Admiro Sabotage e, por isso, criei essa versão (uma das que mais gosto). Levo em conta a relevância cultural dos nomes escolhidos e o que eles representam para mim.
De que modo os símbolos do beijo e do abraço se conjugam hoje para você?
Há uma década, a arte de rua ainda era malvista por uma parcela da sociedade. Ao trazer a imagem de alguém beijando e abraçando, quebrei um pouco dessa rejeição, visto que se trata de uma cena doce, de afeto. Foi em São Paulo, onde morei por mais de 15 anos, que passei a ter contato com a vida urbana sisuda, as pessoas se deslocando fechadas em si, cansadas, com medo. Nasci e cresci em Guararema, sei a diferença entre aqueles que caminham na cidade do interior e os que andam com um ar de tensão paulistana. O beijo e o abraço correspondem a um desvio nesse padrão de conduta retraída, um carinho colocado no meio de um ambiente duro, hostil. Muita gente para, olha a imagem e sorri.
Em suas aulas, Pelé beijoqueiro já foi tema de debate? Se sim, como os alunos participavam da discussão?
Sabe que não? Eu era professor de design (digo era porque parei de lecionar em faculdade) e queria separar esse mundo da minha atuação artística. Por um período, consegui. Contudo, quando o meu trabalho enquanto artista ficou mais conhecido, os alunos começaram a me perguntar: “você que faz o projeto sobre Pelé?”. O percurso, portanto, aconteceu de uma maneira inversa: o que falei em sala a respeito da série foi em resposta às perguntas dos estudantes.
Você se mudou para Santos, certo? Chegou a ir ao velório de Pelé ou a acompanhar, de algum jeito, essa despedida?
Quando Pelé morreu, estava viajando, em Minas Gerais. Na segunda-feira, após o Ano Novo, fui para a casa dos meus sogros em São Paulo [capital]. Na terça-feira [3 de janeiro de 2023], acordei cedinho, vim para Santos e dei uma passada no velório. Não gosto desse tipo de cerimônia, nem sou religioso, mas senti que devia presenciar isso. Havia uma fila enorme no estádio e, ao chegar perto [do caixão], mal dava tempo de, para quem acredita, fazer uma oração. Velórios de celebridades como Pelé são coisa rápida.
O que realmente me emocionou, no entanto, foi o cortejo. A torcida do Santos (a cidade se identifica com o time), gente nas sacadas, nas janelas, nos portões, emocionadas. Idosos, trabalhadores, torcida organizada, todo mundo misturado. O Canal 2 parou e, na avenida da praia, a multidão parecia formar uma enorme manifestação política, não sei descrever. Eu me emociono com a emoção das pessoas. Tão bonito ver essa comunhão em torno do representante maior do futebol.
Você colou algum lambe-lambe de Pelé em Santos?
Colei. Já havia colado alguns, o primeiro deles em 2015 a convite do Museu Pelé. Um desses lambe-lambes resistia até o ano passado, quando construíram um painel por cima. Agora, no dia 4 de janeiro, colei o primeiro depois da morte de Pelé (ele com Mona Lisa), no mesmo lugar onde havia posto em 2015. Foi estranho entender que o trabalho virou uma homenagem póstuma.
Por fim, a seu ver, quais os legados de Pelé?
Não tem como falar de futebol ou de conquistas em qualquer modalidade sem mencionar Pelé, pois ele participou da época de gestação do esporte profissional. Foi alguém que, evidentemente, abriu espaços. Além do futebol-espetáculo, há o fato que Pelé era um homem negro, nascido em 1940, em um país que aboliu a escravidão apenas pouco mais de meio século antes. Ele mostrou que é possível reverter o curso trágico da história do Brasil: rompeu paradigmas e premissas, tornou tudo o que se tornou. O grande legado de Pelé é a sua existência.