Cassiano Viana entrevista Boris Kossoy e aborda o trabalho que o fotógrafo sobre um "plague doctor"
Publicado em 28/05/2020
Atualizado às 11:34 de 17/08/2022
por Cassiano Viana
Engana-se quem pensa que o fotógrafo, historiador, sociólogo e teórico da fotografia Boris Kossoy parou de fotografar. Há exatamente um ano, em maio de 2019, o professor fotografou, na nevoa catarinense, um plague doctor, um dos símbolos mais conhecidos da peste negra que aniquilou milhões de pessoas na Europa durante o século XIV, e mesmo nos séculos seguintes.
“O Dottore, como é chamado na Itália, sempre me causou forte impressão pela aparência sinistra, misto de homem com cabeça de pássaro com um grande bico, e pela luta como médico buscando salvar da morte os infectados pela peste bubônica”, explica Kossoy. E completa: “É uma figura ambígua, um personagem que remete à vida e à morte”.
Ele conta que comprou a máscara veneziana em 2017, durante uma viagem. “No ano passado, finalmente produzi um ensaio com esse personagem. Assim, o Dottore foi incorporado à minha galeria de tipos simbólicos. Imaginei essa figura nos observando tendo o mar ao fundo. Algo na cena deve causar estranheza, provocar nossa imaginação para dentro de uma realidade fantástica”, diz o fotógrafo.
As fotos, tiradas de tempos em tempos na Praia dos Açores, em Florianópolis (onde Kossoy há anos se isola), lembram O Sétimo Selo (1957), filme de Ingmar Bergman. Em especial, a cena em que a Morte chega à praia, vestida com um manto negro, para jogar xadrez com o cavaleiro que acaba de voltar das cruzadas, encontrando seu país dizimado pela peste. “Nunca pensaria que a imagem, tirada em maio do ano passado, faria tanto sentido um ano depois”, admite Kossoy.
A fotografia traz a identidade de seu trabalho, a atmosfera de mistério e realismo mágico, a correspondência entre o sobrenatural e a realidade, a realidade e a ficção. “Sempre perguntam sobre minhas influências fotográficas. Falam de Cartier-Bresson, Atget, Brassaï, mas eu respondo que minha fotografia se fundamenta na literatura, no teatro, na arquitetura, na pintura e nas histórias em quadrinhos. E, naturalmente, no cinema, sobretudo o expressionismo alemão, mas também Bergman, Antonioni, Kubrick, Ridley Scott, David Linch, entre outros nomes”, explica aquele que tornou reconhecida mundialmente a invenção da fotografia brasileira.
A história da fotografia seria mal contada não fosse Boris Kossoy
Em 2021, o primeiro livro de fotos de Kossoy, Viagem pelo Fantástico, comemora 50 anos. Publicada em 1971 pela Livraria/Editora Kosmos e prefaciada por Pietro Maria Bardi, na época diretor do Museu de Arte de São Paulo (Masp), a obra traz um conjunto de dez sequências fotográficas, cada uma formando uma pequena história, inspiradas em Edgar Allan Poe, Julio Cortázar, Borges e Bioy Casares. Trata-se de um dos primeiros livros de autor publicados na América Latina, uma raridade que é estudada em trabalhos acadêmicos no Brasil e no exterior.
“O livro chocou os fotógrafos da época por se tratar de imagens que não registravam a realidade, como se a realidade fosse limitada apenas ao que estavam habituados a ver e conhecer”, lembra o artista. “E como se a fotografia devesse ser entendida apenas como meio de comunicação unicamente dirigido a aplicações utilitárias. Não compreenderam que a fotografia é antes de tudo uma forma de expressão autônoma e permissível aos sonhos e devaneios da imaginação. A ficção é componente intrínseco da realidade, e a fotografia é sempre resultado de uma construção”, ensina Kossoy.
O professor conta que passou os últimos anos preparando um livro de reflexões sobre os temas que tem tratado ao longo de sua carreira: teoria, história, memória, ficção e poética. O lançamento está previsto para este ano.
Durante a pandemia, ele tem aproveitado o isolamento para organizar seu acervo fotográfico, cadastrar imagens, acompanhar virtualmente a reedição e a tradução de alguns de seus livros e seguir fotografando em seu estúdio temas que estavam interrompidos há tempos, como a “alma dos objetos”.
“O dia transcorre rápido quando estamos em atividade, apesar do inusitado silêncio e vazio das ruas. Às vezes, vejo alguns mascarados seguindo seus rumos”, observa. “Tristes são as notícias sobre o atual pesadelo que tem afetado a todos qual uma ficção. Ou uma realidade anunciada?”, questiona Kossoy.