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Fotografia preta

No Dia Nacional da Consciência Negra, fotógrafos negros e brasileiros falam da imagem como retorno, aprendizado, ressignificação e identidade

Publicado em 20/11/2020

Atualizado às 19:10 de 16/08/2022

por Cassiano Viana*

Em Porto Velho, no estado de Rondônia, Marcela Bonfim documenta a Amazônia Negra, os povos, os costumes e as influências negras na floresta.

Em Salvador e no Recôncavo, na Bahia, Regiane Rios utiliza a fotografia como um meio para se aprofundar em sua própria identidade como mulher, negra, nordestina, candomblecista.

Daniel Meirinho, de Natal, no Rio Grande do Norte, é fotógrafo, professor, pesquisador e coordenador do projeto de pesquisa Olhos Negros, que está mapeando a fotografia negra contemporânea brasileira.

Nascido no quilombo Jamary dos Pretos, no Maranhão, Joelington Rios é artista visual, fotógrafo e curador do projeto Negros Fotógrafos, que difunde artistas negros.

No Dia Nacional da Consciência Negra, representantes da nova geração de fotógrafos negros e brasileiros falam da imagem como um lugar de retorno, aprendizado, ressignificação e descoberta de identidade.

Com a palavra, Marcela Bonfim, Regiane Rios, Daniel Meirinho e Joelington Rios.

Marcela Bonfim

(imagem: Marcela Bomfim)

A fotografia preta existe e está impregnada no meu corpo – historicamente limitado pela distinção e subalternização dessa fotografia – e nas lacunas do meu pensar fotográfico, hoje mais conscientes e dispostas a reunir e ressignificar as formações imaginárias, onde ainda se mantêm e se reproduzem os estigmas enfrentados à flor da minha própria pele.

Regiane Rios

(imagem: Regiane Rios)

A fotografia preta é um local de retorno e de inesgotável descoberta da identidade. O racismo estrutural frequentemente torna essa autodescoberta imagética mais lenta por atravessar essa concepção da própria cor com conceitos atenuantes como pardo, moreno, entre outros.

Através da fotografia, tive eu mesma maior consciência sobre minha negritude. O respeito com a imagem de uma pessoa preta é um dos grandes, senão o maior, dos meus aprendizados como humana e fotógrafa.

A fotografia afrocentrada em que acredito parte da ideia de que existem outras narrativas sobre o corpo negro que não estão necessariamente centradas numa perspectiva de dor, sofrimento, agressão e apagamento. Não porque esse tipo de foto não seja necessário, visto que a luta antirracista também passa pela denúncia.

Devemos também atentar para – evocando um texto de Chimamanda Ngozi Adichie – o “Perigo da história única" quando falamos de um universo tão rico quanto é a negritude. É preciso que a nossa imagem não precise sangrar ou caber como souvenir estético para ser concebida como importante ou necessária. Nós temos muito mais que a dor a falar sobre nós. Somos muito mais que isso.

Ao acreditar na fotografia negra e tentar contribuir com a ampliação desse espaço, penso ser também urgente a abertura de mais territórios de valorização de artistes visuais pretes para que não apenas a imagem dos nossos estejam em paredes para contemplação artística como também nossos nomes figurem para igual admiração enquanto autores de nossas próprias histórias e imagens.

Daniel Meirinho

(imagem: Daniel Meirinho)

O artista visual ou fotógrafo que se identifica como negro indica nas suas imagens seu lugar de fala e traduz politicamente a urgência de um debate racial no seu tempo e na sua história. É uma tentativa de inscrever seu corpo em um novo ordenamento e reestruturação de narrativas invisibilizadas e silenciadas.

A vivência negra brasileira foi apresentada, na maioria das vezes, pelo olhar branco. Esse é um momento de revisão e ajuste e não temos mais desculpas para dizer que outros olhares não existem.

Não podemos encaixotar, limitar o artista fotógrafo negro a falar apenas de questões raciais pelo simples fato de ser uma pessoa negra. A fotografia negra vem coabitar um lugar de reconhecimento, de diversidade de vozes, e estabelecer um debate a partir de como cada pessoa olha para si mesma e para o outro em sua subjetividade. Não mais como um objeto ou tema a ser capturado e exposto a partir de uma ideia posta pelo outro.

Joelington Rios

(imagem: Joelington Rios)

Uma vez, participando de um colóquio de fotografia, com a fotógrafa Marcela Bomfim, conversávamos sobre representatividade negra. Muito feliz, compartilhava com ela meu sentimento de participar pela primeira vez de um colóquio em um espaço acadêmico, em sua companhia; das possibilidades e caminhos que a fotografia pode nos permitir seguir e trilhar. Falei também sobre meu encontro com a fotografia ainda aos 14 anos, quando uma única imagem minha, de criança, publicada no fotolivro Terras de Preto: Mocambos, Quilombos: Histórias de Nove Comunidades Negras Rurais do Brasil, do fotógrafo Ricardo Teles, me fez sentir o desejo de construir e ressignificar histórias, começando pela minha e pela do meu povo quilombola. Nesse dia, Marcela me falou algo que ficou muito presente na minha mente e na minha caminhada na fotografia e na arte: “Você começou a fotografar quando se viu”.

Pensar na fotografia negra é ir ao encontro desse (re)conhecimento por meio da imagem, essa que sempre se fez presente aqui, fortificada desde muito cedo pelos nossos através da oralidade, das histórias ouvidas pelos nossos pais e avós quando crianças. Além disso, é pensar sobre os processos de apagamentos, fragmentações e invisibilidade ainda vigentes, dados em uma fotografia colonial que continua tentando esconder a obscenidade do desejo de capturar e dominar territorialmente o espaço e suas gentes, sobretudo corpos negros, explorando-os quanto mais suas falo-lentes possam alcançar, perpetuando histórias únicas e estereotipadas.

A fotografia negra nos coloca em encruzilhadas de possibilidades, permitindo-nos, a partir desse reconhecimento, olhar pelos olhos que vão além da lente da câmera, das histórias únicas e estereotipadas. Ela nos leva ao encontro das nossas vivências, belezas e traumas. Essas, também vistas e sentidas no outro, nos nossos, e para além, pois compreendemos o corpo negro como um ser gigante e complexo, capaz de performar nossa existência no mundo em muitos caminhos. A fotografia surge como uma ferramenta de reconstrução de uma imagem feita na frente e atrás da câmera.

Cassiano Viana (@vianacassiano) é editor do site About Light.

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