Como o ambiente urbano se revela quando a ausência humana se torna uma presença?
Publicado em 24/06/2020
Atualizado às 11:30 de 17/08/2022
por Cassiano Viana
Considerado o pai da fotografia de rua, Henri Cartier-Bresson dizia que o assunto mais importante era o homem. “O homem e sua vida, tão curta, tão frágil, tão ameaçada.” E acrescentava: “Vou ao mais urgente. Paisagens são eternas”.
No entanto, o isolamento social e as restrições de circulação adotadas para conter o alastramento da covid-19 alteraram drasticamente a paisagem urbana, transformando o mundo em uma imensa cidade-fantasma. Um cenário de ficção, de espaços públicos desertos e de poucas pessoas aventurando-se pelas ruas, quase sempre em corrida para um supermercado ou uma farmácia.
Hugo Takemoto está em São Paulo há mais de um mês gravando um documentário sobre a pandemia. “Nos dias livres tenho feito algumas fotos para meu acervo pessoal com o objetivo de registrar a história que acontece diante dos meus olhos”, conta.
O fotógrafo lembra os riscos da profissão. “Sair sozinho apontando a câmera por aí é delicado e, por isso, o bom senso é um excelente companheiro.” Em meio a uma pandemia, a tensão – que já costuma se manifestar quando caminhamos com uma câmera – engloba também o receio de uma ameaça invisível. “Só o fato de sair de casa nos expõe à possibilidade de contrair a covid-19.”
Ele ainda observa: “As pessoas estão mais alertas, por isso é bom manter limites de aproximação e não ser invasivo. Já basta o vírus; o fotógrafo não pode ser visto como uma ameaça”.
Fotografar o ausente
Como fotografar as ruas, o ambiente urbano, sem a presença humana? A fotografia, lembra Roland Barthes em A Câmara Clara, é o “isto-foi” que carrega, ao mesmo tempo e na mesma medida, a presença – aquilo existiu, esteve lá – e a ausência.
Durante o lockdown, a paulista Sattva Orasi decidiu fotografar lugares icônicos de Madri, onde mora há um ano e meio. Nesse momento de suspensão social, quis trazer a presença através dos indícios.
“De repente, suspendeu-se o movimento de pessoas, e as paisagens urbanas tomaram outra dimensão. Por essa razão, escolhi depositar mais atenção em formas, padrões e outros elementos estéticos que, no geral, estavam ocultados por aquilo que chamávamos de normalidade”, explica. “Os objetos que já estavam ali construíam esculturas da memória.”
A memória de nosso tempo
Para Victor Hugo Cecatto, o principal na fotografia de rua são as pessoas. Em tempos de isolamento, o fotógrafo, que mora no Rio de Janeiro, sai para correr bem cedo, das 6 às 7 horas da manhã. Dia desses, voltando da corrida, viu uma cena que chamou atenção: pessoas de máscara na rua, o olhar assustado, alertas para os limites de aproximação, enquanto um morador de rua, aparentemente indiferente e tranquilo, tomava banho em um vazamento de água em frente a um ponto de ônibus.
“O que sinto ao sair nas ruas é o medo da contaminação. As pessoas com máscaras sempre parecem ter um olhar mais agressivo, mais sério. Não consigo imaginar um sorriso por trás da máscara”, afirma.
Tudo mudou. E esse novo cenário é matéria-prima para a fotografia de rua. “Essa pandemia marcará a nossa geração. Sair na rua hoje nos permite ver a história acontecendo e produzir as memórias de nossos tempos”, avalia Takemoto.
Cassiano Viana (@vianacassiano) é editor do site About Light e autor da série Olhares sobre a Covid-19, que vem sendo publicada às sextas-feiras no site do Itaú Cultural.