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110 anos de Guimarães Rosa

Para celebrar o escritor, saiba como a sua obra se mantém viva, vivíssima

Publicado em 27/06/2018

Atualizado às 17:48 de 01/10/2018

por Heloísa Iaconis

Citadino cordisburguense, caro cônsul, capitão, clínico conceituado. Camarada contador, cem chuvas cozidas cá, colocou contos, causos, centelhas correndo campos, cosmos, contextos certos. Colheu conversas, combinou cantigas, compreendeu coisas citadas, coisas cobertas, coisas-confins. Cruzou cimo castiço com chão comum, corrente. Conduziu com competência caneta, caderno, coração. Criou, criou, criou circunstâncias, compadres, coronéis, crianças, caipiras, Cassiano, Chico, Camilo, coleção comprida, completa. Conjugou cores, contrários, cortes. Comandante criativo, cabeça cadente, coragem, clarão. Costurou conteúdo, corpo, corpo, conteúdo. Confluência consistente. Cativou clã carinhoso. Conquistou cadeira, consagração clássica; contudo, chegado cravo. Cavalgou céu célere célere: combustível contínuo, consciência cintilante, começo, conclusão.

A João Guimarães Rosa (1966), filme de Marcello G. Tassara | foto: Maureen Bisilliat

Em 25 de novembro de 1967, o Jornal da Tarde estampava uma carta redigida por João Guimarães Rosa a um colega, cônsul Cabral. A missiva foi publicada seis dias após a morte do escritor – que nasceu há 110 anos, em 27 de junho de 1908 – e contém apenas palavras cuja letra primeira é “c”. O intento bem serve de exemplo gracioso daquilo que, do particular aos parágrafos lapidados com afinco, se fez a luta do mineiro: o elevar a língua portuguesa ao enlace perfeito do dito com o dizer, pérola una constituída pelo narrar entrelaçado à forma afiada de cada sentença. Verivérbio, mediação entre o homem e o infinito, arranjo de realidades várias, símbolo e som, aqui e agora, travessias tantas.

O querer de Rosa, ideal maior, transformou-se em obra potente. Diadorim, Augusto Matraga, Nhinhinha, Sorôco e mais, personagens que carregam a beleza de uma prosa embebida na oralidade, por um lado, e concebida peça a peça, por outro. Narrativas que ganharam demais países e, concomitantemente, a terra do próprio inventor, no profundo das Minas Gerais. Alison Entrekin e Dôra Guimarães são duas das mil e uma agentes que, hoje, por ofício e encanto, transmitem o universo rosiano a novos leitores. Alison, australiana de nascença, embrenha-se no desafio, apoiado pelo Itaú Cultural, de traduzir Grande Sertão: Veredas (1956), o romance, para o inglês. Já Dôra, cujo amor pela literatura está em seu sangue, guia os Miguilins, jovens que sabem de cor e guardadas as tais tramas conterrâneas.

Retrato de Manuel Nardi, inspirador do conto “Manuelzão e Miguilim”, de Guimarães Rosa – Andrequicé (MG), 1966 | foto: Maureen Bisilliat

Pirlimpsiquice da palavra

“Ele narra uma história que é excelente. Porém, é a língua que traz toda uma outra dimensão. É uma magia, uma alquimia linguística. Há algo ali que tem uma vida muito maior do que as existentes na maioria das obras”: eis o jeito encontrado pela tradutora Alison Entrekin para condensar, em vocábulos, o fascínio que nela exerce o engenho de Rosa.

Esse encantamento teve início em 2014, quando uma agência literária a procurou: tratava-se da representante dos herdeiros do fabulista-fabuloso-fábula, a qual propôs à australiana verter, para o inglês, as aventuras do bando de Joca Ramiro. “No início, achei que seria impossível: o livro, além de ser enorme em número de páginas, apresenta uma dificuldade vinda da linguagem. Por isso, as horas dedicadas à tradução acabam se multiplicando muitas, muitas vezes”, comenta Alison. O processo é um destrinchar e reconstituir de cada frase, uma a uma, movimento de formiga paciente, calma, detalhista. A busca por um consenso na interpretação, a captura do que está atrás da linha, o estudo robusto, intenso: a leitura das correspondências do escritor com a tradutora inglesa e os tradutores italiano e alemão; anotações do autor em cadernos, a pesquisa em dicionários (simples, especializados – na redação rosiana ou no folclore brasileiro) e edições diversas. Um quebra-cabeça que requer minúcia, prazo largo, suporte financeiro – elementos assegurados devido à parceria com o Itaú Cultural. “A parte dos neologismos é divertida. O difícil, na verdade, é lidar com a sintaxe. Guimarães Rosa mexe, põe, tira, amarra retalhos com graça. E, na versão em inglês, preciso manter essa graça”, explica Alison.

Conservar o pirlimpsiquice da palavra de João Guimarães Rosa, a alma envolvente de suas veredas; reelaborar falas de modo que caibam na boca de Riobaldo com verossimilhança, sem sotaque norte-americano: essa é a percepção que a profissional possui da própria tarefa. O entendimento é resultado de uma experiência refinada nesse afazer delicado: formada em criação literária na Austrália, Alison transferiu-se para o Brasil e aqui cursou tradução. Juntou, pois, ambos os cartuchos e decidiu: desejava levar a literatura daqui para outras fronteiras. Até alcançar a ficção, entretanto, passou por guias turísticos, tratados sobre flora e fauna. Entrou no terreno querido a partir de contos da escritora goianiense Augusta Faro. O romance Budapeste, de Chico Buarque, foi a sua primeira incursão nesse gênero – e dele não mais saiu. Vieram Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera. E, finalmente, Grande Sertão: Veredas. “Estou no quadro 1. Peguei o ritmo, entrei no mundo dele. Tenho agora que acertar a voz, a abordagem. Às vezes, um termo dá pano pra manga. Eu e a Daniela Travaglini, minha consultora, dizemos: a gente fica 'chafurdando' em uma só oração”, observa Alison em relação à jornada que, por ora, está longe de acabar.

Miguilins que bem enxergam

Corpo de Baile (1956), arquitetado em dois volumes originalmente, é o lar de Manuelzão e Miguilim. O garoto que olhava o horizonte meio embaçado, meio turvo, é quem batiza o grupo cuidado por Dôra Guimarães ao lado de Elisa Almeida. Pessoas miúdas de no mínimo 10 anos, todas na escola regular, constituem o coro de narradores rosianos. O projeto originou-se, em 1996, como oficinas de contação de histórias. Em 1997, as atividades fomentaram a essência do círculo: pelas mãos de Calina Guimarães, médica e enfermeira, prima do homenageado, a casa onde morou Rosa renasceu. Aposentada, ela voltou a Cordisburgo, cidade de sua infância, espaço de convívio com o literato, angariou verba do Estado, reabriu o museu.

“A minha mãe, irmã de Calina, falou para ela que eu narrava Guimarães Rosa. Convidei-a para uma apresentação minha e da Elisa no Palácio das Artes. Ela se encantou e resolveu colocar os jovens para narrar e divulgar a obra”, recorda Dôra. A idealizadora sugeriu que Dôra trabalhasse textos com crianças de 11, 12 anos. A novata tinha dúvidas. Deu certo, tão certo que, em 2000, ela, outrora hesitante, assumiu as rédeas devido aos problemas de saúde de Calina. Elisa passou a participar de maneira efetiva em 2004, e no presente elas vão ao encontro das classes em quinzenas.

A preparação dos pequenos se dá gradualmente: causos da tradição do boca a boca, trechos mais fáceis de “Campo Geral” – até chegarem aos imbróglios de Zé Bebelo. Entre plantões no museu, leituras e a Semana Roseana (evento anual em julho), os miúdos crescem, vão para a adolescência e só saem da equipe quando concluem o 2o grau, incentivados a mais voos. “Estamos na nona geração. É impressionante: sempre existe alguém na família que foi Miguilim – primo, irmão, que servem de modelos”, constata a mentora.

O menino de lá

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG). Do rio e da rua, como pontuou Manuel Bandeira, mágico do reino-reino, nos termos de Carlos Drummond de Andrade, filho de Florduardo Pinto Rosa e Francisca Guimarães Rosa, mudou-se para Belo Horizonte aos 10 anos. Em 1930, formou-se médico e, por concurso, quatro ciclos à frente, virou diplomata. Serviu na Alemanha, na Colômbia, na França e, em terreno nacional, ocupou, entre outros cargos, as chefias da Divisão de Orçamento (1953) e do Serviço de Demarcação de Fronteiras (1962). Casou-se duas vezes: com Lígia Cabral Pena – na abertura dos anos 1930 –, mãe de suas filhas, Vilma e Agnes; na década seguinte, com Aracy de Carvalho, funcionária do Itamaraty que, durante a Segunda Guerra Mundial, emitiu vistos para que judeus fugissem do horror.

Ainda na mocidade, o garoto uniu-se ao fazer literário e, em 1929, publicou “O Mistério de Highmore Hall”, conto veiculado na revista O Cruzeiro. A coletânea de versos Magma, então título inédito em 1936, recebeu um prêmio da Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas foi mesmo com Sagarana (1946), volume de contos, que o destaque se firmou. O monólogo do jagunço Riobaldo, Grande Sertão: Veredas (1956), enfim, conferiu ao novelista a suma aclamação. Poliglota, teceu das primeiras, terceiras, estas estórias à Ave Palavra (1970, póstumo), conjunto que, de buritis em buritis, o alçou à cadeira 2 da ABL, posse tomada três dias antes de morrer.

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