Lançado em 1989, o curta-metragem de Jorge Furtado expressa de forma ácida – e com um ligeiro toque de humor – as muitas contradições das sociedades de consumo
Publicado em 30/04/2019
Atualizado às 17:34 de 13/10/2020
O que distingue o ser humano de outros animais mamíferos, como a baleia, e bípedes, como a galinha, é a presença de um telencéfalo altamente desenvolvido e um polegar opositor. Ele, o ser humano, integra e sustenta uma complexa cadeia que envolve lucro, pobreza, consumo, descarte e lixo. Lançado em 1989, o curta-metragem Ilha das Flores, de Jorge Furtado, expressa de forma ácida – e com um ligeiro toque de humor – as muitas contradições das sociedades de consumo. E, assim, se mantém atual, 30 anos depois.
“O tomate, plantado pelo senhor Suzuki, trocado por dinheiro com o supermercado, trocado pelo dinheiro que dona Anete trocou por perfumes extraídos das flores, recusado para o molho do porco, jogado no lixo e recusado pelos porcos como alimento está agora disponível para os seres humanos da Ilha das Flores”, diz a narração em off, ao desenhar a trajetória de um tomate, da colheita ao descarte, no aterro que dá nome ao filme, em Porto Alegre (RS).
Em Ilha das Flores, onde Deus parece não existir, como apresenta as cartelas iniciais do curta, crianças e mulheres sem nenhum dinheiro disputam alimentos considerados inadequados e impróprios para porcos. Tendo cinco minutos para recolher as sobras dos materiais orgânicos, grupos de dez pessoas são organizados para adentrar o terreno cercado. “O que coloca os seres humanos depois dos porcos na prioridade de escolha de alimentos é o fato de não terem dinheiro nem dono”, explica o narrador.
Para o roteirista e diretor, o documentário segue atual. “O filme fala de desigualdade social. Esse é o tema principal: gente que sobrevive com a sobra do alimento dos animais. Essa desigualdade, infelizmente, continua existindo. Se não é igual, segue sendo muito parecida”, afirma, em entrevista ao site do Itaú Cultural durante a terceira edição do evento Encontros de Cinema, no Rio de Janeiro.
Um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos, segundo lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), o documentário inovou em termos de linguagem, ao antecipar, segundo seu criador, questões relacionadas à velocidade e ao hipertexto. “Ele impressionou muito as pessoas. A partir daquele momento, essa linguagem se tornou mais comum. Acho que um longa-metragem como o Ilha, no entanto, seria insuportável. Aquela velocidade e movimentação toda. Tem coisa que funciona melhor no celular; tem coisa que funciona melhor no cinema”, explica.
Para Jorge, o cinema ama o silêncio e a arte é sempre voltada para as outras pessoas. Confira, a seguir, três perguntas feitas ao cineasta.
Qual é a atualidade de Ilha das Flores?
O filme fala de desigualdade social. Esse é o tema principal: gente que sobrevive com a sobra do alimento dos animais. Essa desigualdade, infelizmente, continua existindo. Se não é igual, segue sendo muito parecida. Então, Ilha continua atual nesse sentido. Por outro lado, ele tem uma linguagem que para a época foi muito inovadora, de velocidade, de planos, de relação entre conteúdos, hoje muito mais popularizada, especialmente pela internet. O hipertexto, aquela palavrinha que você clica e vai para outro texto, várias fontes de imagens diferentes. Isso já está mais naturalizado. Mas o tema dele, o assunto, continua muitíssimo atual.
Já pensou como seria fazer hoje um Ilha das Flores para as novas plataformas?
Quando a gente fez o filme, em 1989, eu me lembro de ter chamado dois fotógrafos diferentes e pedi a eles que não se falassem, não combinassem nada, de modo que a linguagem ficasse bem fragmentada, muito diferente de um plano para o outro. Quando aparece uma palavra no curta, surge uma imagem. Por exemplo, se é falado “dinheiro”, aparece uma nota. É como quando a gente procura hoje algo no Google. Se você digita “dinheiro”, aparecem algumas imagens.
Então, hoje talvez a gente pudesse fazer o filme quase com imagens aleatórias. A cada vez que você assistisse ao documentário, as imagens fossem diferentes. Dá para fazer um filme assim, todo diferente a cada vez que você o vê. Acho que seria uma novidade interessante.
Mas, seja em qual formato for, é importante perguntar: para que estou fazendo esse filme? Em qualquer tecnologia inventada, a gente vai continuar se perguntando isso. Não tem nenhuma regra para escrever histórias. Você precisa entender o tempo que leva para contá-las. Não é necessário levar meia hora para contar algo que poderia ser dito em cinco minutos.
O curta está disponível em diversas plataformas e sites na internet. Como você vê essa disseminação e o fato de ele continuar sendo visto em sala de aula?
Acho muito bom e fico feliz de ele ser bem utilizado. Ele é muito usado em escolas, sim. Tem escola francesa que o adotou. Recebo trabalhos de alunos do Japão, isso eu acho muito legal. Ainda que eu fale bastante dele, meio que perdi o contato também. O filme tem legenda e narração, por exemplo, em diversas línguas na internet. E eu nem sei quem fez ou o que está dizendo exatamente; simplesmente está lá para todos. E eu acho isso fantástico.
*Texto produzido durante a terceira edição do evento Encontros de Cinema, que reuniu no Rio de Janeiro, nos dias 15 e 16 de abril, diretores, pesquisadores, roteiristas, produtores, jornalistas e gestores desse setor