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“Campo minado”: a periferia em cena

Espetáculo em Ibura, no Recife, promove a descentralização da arte por meio da dança em um campo de futebol

Publicado em 20/11/2024

Atualizado às 18:10 de 19/11/2024

por André Felipe de Medeiros

É fácil entender por que um espetáculo sobre a vida na periferia receberia o nome de Campo minado. Ainda que os temas em cena sejam abordados com a delicadeza que o local e suas complexidades sociais merecem, há uma intencional leveza e bom humor na forma com que sua narrativa se desenvolve. Encenado em um campo de futebol, ele reflete também a vibração de uma comunidade de fortes inclinações artísticas – Ibura, no Recife.

A concepção é do dançarino Daniel Semsobrenome, natural do bairro. “Acontece de tudo naquele campo de futebol, como shows e festas. Foi onde aprendi a andar de moto e a dirigir”, relembra. Ao retornar à comunidade após morar em outras cidades e países, o bailarino teve a ideia de realizar um trabalho artístico no local.

Ele assina a concepção da obra e sua codireção, ao lado de Mônica Lira. O contato dos dois vem de muitos anos atrás, pela atuação em projetos sociais no bairro por meio do grupo Experimental, do qual ela é fundadora e diretora artística há algumas décadas. “Para nós, é muito especial voltar ao Ibura para acolher a ideia de um de seus artistas”, conta ela. É uma forma de celebrar a potência criativa, artística e humana do lugar”.

Entrega à arte

Com cerca de 50 mil habitantes, Ibura está na divisa entre o sul do Recife e Jaboatão dos Guararapes, espalhando-se um pouco para esse outro município. “É uma cidade dentro da cidade e uma comunidade de onde saem vários artistas – não só na dança, mas também na música e no cinema –, apesar de todas as dificuldades, como a criminalidade. As pessoas dos bairros vizinhos sempre comentam que quem é do Ibura se entrega muito à arte. Tenho orgulho disso”, diz Daniel.

O dançarino relembra a quadrilha das festas juninas como um bom exemplo das manifestações culturais do local: “Ela é caricata e traz leveza às questões presentes ali, por meio da dança. Eu mesmo comecei a dançar com as quadrilhas quando era criança, ao lado de minha mãe e minha irmã mais velha”. Essas características foram aproveitadas no processo de criação de Campo minado com os artistas locais.

São 27 bailarinos em cena – mais do que dois times de futebol completos –, vindos de diferentes estéticas de dança presentes na comunidade, como o hip-hop, a suingueira e até a dança de salão. Daniel, que vem da dança contemporânea e da dança popular, comenta que o desafio no processo de cocriação conjunta do espetáculo é definir o ponto de encontro desses estilos para além do que eles mais têm em comum, que é a vivência periférica.

Várias pessoas estão em um campo de futebol, sem gramado, de pé e alinhados lado a lado. À frente deles, no chão, estão camisas de time e desenhos feitos com um pó branco.
27 bailarinos entram em cena no espetáculo "Campo minado" (imagem: Rogério Alves)

Cardume

Com apoio do edital Rumos Itaú Cultural 2023-2024, um dos objetivos de Campo minado é a descentralização da arte ao levar um espetáculo para a periferia. “É um projeto muito pensado para as pessoas daquele território”, explica Mônica. “Mas queremos que quem está no centro da cidade também vá até lá para conhecer o local, sua arte e sua paisagem. Não adianta você achar que a periferia é legal só de longe e não trocar com ela.”

“É importante que as pessoas dessas comunidades entendam também que há equívocos em outros bairros e em todas as classes”, comenta Daniel. “E a arte nunca vem para cá, está toda muito centralizada. Eu tive acesso, eu pude ir até o centro ver, mas meus pais nunca puderam ter essa oportunidade. Então, é muito bom poder trazer um trabalho cênico da própria periferia para o espaço do campo de futebol, que já é um ponto de encontro de quem mora aqui.”

Durante o processo de criação do espetáculo, o artista repetiu para o elenco que o mais importante era o senso de unidade – “Somos cardume”, em suas palavras. “Há o costume de olhar para alguém que saiu da periferia e dizer ‘A favela venceu’, e eu digo: ‘Não! Quem venceu foi ele, a favela continua aqui’”, afirma Daniel. “O sistema gosta muito de olhar para a exceção e achar que é um exemplo do que acontece na comunidade, mas nossa luta segue todos os dias.” 

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