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Como não morrer no ano que vem? Uma homenagem aos 75 anos de Belchior

As cantoras Vannick Belchior e Ana Cañas, o filósofo Jair Barboza e o jornalista Jotabê Medeiros respondem a essa pergunta-desafio inspirada na letra de “Sujeito de sorte”

Publicado em 26/10/2021

Atualizado às 12:18 de 18/04/2022

por Duanne Ribeiro

Nós estamos com a mão sobre o cabo da pistola ainda no coldre. São 3 da tarde, mas o saloon está escuro como uma sala de cinema em que um casal apaixonado se beija sem ser visto. Nosso alvo é um homem no fundo desse bar de faroeste, além das cadeiras e das mesas com uns bêbados pingados. Nosso alvo é o cantor. Está sentado em um banco alto; é um violão o que ele dedilha? Soa feito navalha. Sem parar de tocar ou levantar os olhos, diz: “Não saque. Ou mate-me logo”. Sacamos. O tiro pega no peito, ele cai. Mas logo se põe de pé. Vem e passa por nós, indo à porta. Na saída, informa: “À noite eu tenho compromisso e não posso faltar por causa de vocês”.

O compositor e cantor Belchior vira herói de Hollywood nos versos de “Apenas um rapaz latino-americano”que encenamos acima: morre, mas é só um contratempo. Nos versos do autor, dessa e de outras letras, parece haver esta doutrina: mesmo se nos sentirmos acabados, mesmo se o jeito como vivemos se enrijecer, mesmo se perdermos algo precioso, existe o passo seguinte. Neste 26 de outubro, em que o músico – nascido em 1946 e falecido em 2017 – completaria 75 anos, propomos uma questão surgida desse tema do recomeço: “Como não morrer no ano que vem?”.

Essa pergunta é inspirada em outra canção de Belchior, “Sujeito de sorte”, que possui a estrofe “Tenho sangrado demais // tenho chorado pra cachorro // ano passado eu morri, mas esse ano não morro”. Lançada no disco Alucinação, essa faixa reelabora versos do repentista Zé Limeira e recebeu outra vida na música “AmarElo”, de Emicida, Majur e Pablo Vittar. Para responder ao desafio que ela nos sugeriu, convidamos as cantoras Vannick Belchior – filha do compositor – e Ana Cañas, além do jornalista Jotabê Medeiros e do filósofo Jair Barboza.

Cada qual tem uma relação com a obra do homenageado: Vannick, no projeto Das coisas que aprendi nos discos, tem trabalhado com o repertório do pai (o primeiro single desse projeto é “Divina comédia humana / Medo de avião”); Ana lançou neste ano o álbum Ana Cañas canta Belchior; Jair é um admirador que, para nós, lê os versos sugeridos sob a óptica de Schopenhauer, teórico alemão; por fim, Jotabê fez a biografia Belchior – apenas um rapaz latino-americano.

Os entrevistados também indicaram suas músicas favoritas de Belchior, que compõem com outras citadas na matéria a playlist abaixo.

Vannick Belchior: viver de forma mais branda e consciente

“Sujeito de sorte” apresenta uma imortalidade, principalmente quando ele fala “presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte”. É uma música extremamente potente e forte, ela mostra como o ser humano precisa se reerguer diante da conjuntura social. Não apenas da social, [Belchior] também fala bastante das questões emocionais – mas eu vejo muito dessa forma. [Reerguer-se diante de] uma conjuntura social, uma conjuntura política que nos obriga a sempre estar nos fortalecendo de alguma forma. “Sujeito de sorte” mostra muito isto: mesmo com tanta dificuldade, ele ainda está ali inteiro e mais forte e preparado para muita coisa.

Então, sobre a pergunta “Como não morrer no ano que vem?”: eu acredito que a gente precisa ter extrema consciência da nossa verdade individual e da nossa postura em comunidade, em sociedade. Dessa forma, acredito que a gente possa ter uma forma de viver mais branda. Mas que fique bem claro: que essa forma de viver mais branda não seja uma forma de se omitir quanto aos problemas sociais, muito pelo contrário. Nós temos de estar sempre muito atentos a tudo que está acontecendo e sempre se reciclando, reciclando a própria consciência.

Como não morrer no ano que vem? Com muita consciência do que há de vir, consciência política, consciência social, e fazer a nossa parte para que nós possamos mudar alguma coisa, reverberar o nosso comportamento de alguma forma, principalmente para quem tem menos visibilidade perante a sociedade. Acredito que essa é uma forma de estar cada vez mais vivo, cada vez com a voz mais latente. Acredito que foi muito sobre isso que ele quis falar em sua canção.

Vannick indica:Na hora do almoço” e “Alucinação

Ana Cañas: retomar a poesia que foi arrancada

Não morrer no ano que vem é um pacto do porvir alvissareiro. Por toda dor, por tudo que atravessamos. É um grito de resistência e celebração, retomando tudo que nos foi tirado. Não morrer no ano que vem se faz mote do horizonte que nunca se perde, a esperança. Entre lágrimas de reencontros, beijos de Carnaval, abraços festivos e catarses musicais, é a vida inflamada novamente. Não morrer no ano que vem é bandeira vacinada do resgate idiossincrático brasileiro, retomando a poesia que nos foi arrancada.

Ana indica: Coração selvagem” e “Divina comédia humana

Christiane Tricerri é uma mulher branca, com cabelos lisos, cujas raízes são brancas. Ela veste um vestido azul. A atriz está deitada em uma banheira com água e flores, com os olhos fechados e as palmas das mãos viradas para cima.
Capa da biografia escrita por Jotabê Medeiros (imagem: divulgação)

Jair Barboza: conviver com a doença, saber que nada morre

Essa questão está colocada em um contexto de pandemia. Comparando a vida deste ano com a do ano passado, todos nós morremos. Se pensarmos nos relacionamentos, na nossa vida psíquica, nas doenças despertadas por essa situação, na perda de empregos, no que deixamos de viver, houve um tipo de morte. Morremos no ano passado, no ano retrasado, como não morreríamos no ano que vem? Só se esse modo vivente começar a ser contestado, se as pessoas conseguirem conviver com esse vírus, se a economia se recuperar. Isso vai levar certo tempo. Nesse sentido, não morreríamos no ano que vem. Se continuar esse modo vivente, morreremos todos.

Em termos puramente filosóficos, lembro que, quando surgiu a pandemia, afirmei que estávamos diante de uma “pan-paranoia” e citei um texto de consolo escrito [pelo filósofo alemão] Schopenhauer, “Sobre a morte e sua relação com a indestrutibilidade de nosso ser em si”. É um texto metafísico, não se refere ao mundo empírico no sentido a que me referi antes. Vai além das aparências, além da aparência da morte. Filosoficamente falando, esse texto é consolador por quê? Porque, para a filosofia de Schopenhauer – e a de Nietzsche –, não existe morte, na verdade o que existe é a vida. A morte é um aspecto da vida. A morte como aniquilamento, na filosofia de Schopenhauer, não existe. O corpo físico morre, mas o caráter de cada um não desaparece e, dadas as condições propícias, vai renascer. No pensamento do filósofo, somos já renascimentos. Essa doutrina está na Índia e no espiritismo também. Assim, a resposta seria que não morremos no ano passado, não morremos neste ano e não morreremos no ano que vem.

Jair indica: Paralelas e “Medo de avião

Jotabê Medeiros: amar e mudar as coisas

Eu responderia de bate-pronto com outro verso de Belchior: no ano que vem, para sobreviver, eu pretendo amar e mudar as coisas, que é o que me interessa mais.

Jotabê indica: Voz da América”, “Passeio”, “Ypê”, “Brasileiramente linda”, “Senhor dono da casa”, “Fotografia 3x4”, “Alucinação”, “Medo de avião II”, “Monólogo das grandezas do Brasil”, “Mucuripe

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