Companhia amazonense de teatro desenvolve espetáculo musicado para responder a ataques homofóbicos que recebeu em 2021
Publicado em 06/11/2024
Atualizado às 18:28 de 06/11/2024
por André Felipe de Medeiros
Projeto: Sebastião (Rumos 2023-2024)
Proponente: Ateliê 23
Contra a pulsão de morte, a liberdade de viver: Sebastião é um espetáculo montado pela companhia Ateliê 23 como resposta a ataques homofóbicos sofridos por seus artistas. Ao contrário da violência recebida, eles optaram por uma resposta que valoriza elementos da cultura LGBTQIAP+ com todas as suas cores e seu brilho. Esse projeto foi contemplado pelo edital Itaú Rumos 2023-2024
O nome da peça é inspirado em São Sebastião, que parte da comunidade LGBTQIAP+ entende como padroeiro. A crença conta que ele, enquanto soldado romano, teria mantido um relacionamento com o imperador Diocleciano em meados do século III. Sua conversão ao cristianismo – vista como uma traição aos interesses do império – fez com que ele fosse amarrado a uma árvore e alvejado com flechas pelos próprios companheiros de exército. Sebastião sobreviveu e pôde confrontar Diocleciano, mas teve sua morte declarada pela segunda vez, tendo sido açoitado e, depois, jogado no sistema de esgoto de Roma.
São Sebastião é também o nome da igreja, em Manaus, situada no largo de mesmo nome, ao lado do Teatro Amazonas. Esse foi o local escolhido pela companhia para gravar o videoclipe Glowria, em 2021, como parte do projeto A bela é poc, já que a música “tratava do amor entre iguais que compartilhavam também a fé cristã”, como explica o diretor, dramaturgo e ator Taciano Soares. “Ele foi gravado com autorização e não apresenta nada demais em seu conteúdo, mas foi rechaçado nas redes sociais.”
Os ataques vieram de grupos ligados à Igreja Católica, que organizaram um movimento nacional contra o trabalho do grupo. O teor das mensagens, relembra o artista, expressava um intenso “desejo de morte. Eram ameaças como ‘se eu pudesse, matava’, ‘pena que a inquisição acabou’ e ‘tomara que vocês morram de aids’. Foi como se estivéssemos revivendo, em alguma medida, a metáfora de ser Sebastião, sem a liberdade de ser quem se é e amar quem se ama. Você é flechado e condenado à morte”.
“Então, Sebastião nasce dos nossos atravessamentos por esse desejo de morte”, explica Taciano. “Não é que não saibamos que ele existe, somos todos gays. Mas foi diferente ver a liberdade com que cada uma daquelas pessoas se sentia muito tranquila para expressar o desejo da morte do outro. E é exatamente essa a nossa pesquisa; essas figuras que estão sempre à margem, na precariedade da condição de se manterem vivas.”
O céu no inferninho
Pouco tempo após os ataques de 2021, uma descoberta resgatou um pedaço da história de Manaus: a cerca de seis quilômetros do Largo de São Sebastião, os artistas se depararam com o Bar Patrícia, tido como o primeiro reduto LGBTQIAP+ da cidade e que funcionou em plena ditadura militar até seu fechamento em 1979. “Era um espaço ocupado por muitas drag queens, mesmo que não houvesse esse nome à época”; um lugar onde homens gays se expressavam artisticamente, mesmo com a polícia sempre marcando presença e, muitas vezes, violentando-os e prendendo-os. Ainda assim, eles sempre voltavam”, diz Taciano.
O contato com essa memória da cidade foi a base para que o Ateliê 23 desenvolvesse Sebastião, motivado também, como já mencionado, nas vivências do grupo diante dos ataques homofóbicos. “Entendemos que estamos ali: sobrevivendo no Bar Patrícia antes das flechadas”, conta Taciano.
A trama, toda conduzida pela música, coloca sete atores em cena, que iniciam o espetáculo como drag queens. À medida que a narrativa progride, o elenco se desfaz da caracterização e assume suas próprias identidades, aproveitando a referência de São Sebastião para compartilhar suas próprias histórias, inspirados no formato conhecido como “bionarrativas”. Participam da montagem a própria estética drag e o diálogo entre o sagrado e o profano, permeados por um bom humor que contrasta radicalmente com a violência que deu origem ao projeto.
“O que nos norteou foi a ideia de construir um refúgio”, revela Taciano, “sabemos que, no movimento LGBT, às vezes é só no espaço do bar ou da boate em que há uma proteção física. É claro que o desejo é a liberdade fora, na rua, mas isso ainda é utópico em uma cidade como Manaus, a terceira capital mais violenta para a população LGBT no Brasil. A ideia é que quem assista à peça também sinta segurança ao ver os movimentos e as sensações desse inferninho que vai se beatificando conforme o espetáculo avança e vai se tornando um céu metafórico”.
Direito de resposta
“Estávamos magoados por ter nossas vidas ameaçadas, mas entendemos que o espetáculo não tem a ver com o lugar da denúncia”, aponta Taciano. E acrescenta: “a única resposta que podemos dar, se é que existe uma resposta, é narrar nossas existências, nos humanizarmos. Porque é aí onde está o grande problema da sociedade: estamos cada vez mais letárgicos, anestesiados pela incapacidade de estarmos juntos e entendermos a diversidade humana. Estamos cada vez mais intolerantes. Então, queremos mostrar o que nos forma, e o que nos formam são histórias engraçadas e divertidas, e também difíceis e sensíveis”.
“É por isso que começamos drag queens e vamos nos desfazendo de drag, montando-nos de nós mesmos à medida que avançamos na metáfora de São Sebastião. Afinal, temos ali sete atores absolutamente disponíveis e vulneráveis, e usando da vulnerabilidade para dizer ‘é isso, eis o que somos. Se você não gosta de mim, não posso fazer nada: só existo’. Às vezes, só precisamos poder dizer que existimos”.
Sebastião estreia em 5 de novembro e fica em cartaz todas as terças e quintas do mês no Teatro Gebes Medeiros, localizado a uma quadra do Largo São Sebastião. Sua presença no centro da cidade dialoga, por meio da arte, com os ataques sofridos pelo Ateliê 23, que – assim como o Bar Patrícia – agora também faz parte da história da comunidade LGBTQIAP+ em Manaus e até mesmo no país.