Veja como as tradições de culto e de comemoração se sincretizaram no Brasil
Publicado em 21/09/2022
Atualizado às 17:59 de 29/11/2022
A série Festas populares do Brasil, do Itaú Cultural (IC), destaca a diversidade, a cultura e a tradição das celebrações típicas do país. Nesta edição, Icaro Mello escreve sobre as festas de Ibeji e de São Cosme e Damião.
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O mês de setembro é marcado por duas comemorações populares que fazem parte da memória de muitos brasileiros: a Festa de Cosme e Damião, no dia 26, e a Festa de Ibeji, no dia 27. As duas comemorações estão presentes também em nosso imaginário, seja pela distribuição de doces às crianças, seja pela oferta do caruru ao orixá ou aos santos. As similaridades entre os cultos de devoção e as comemorações são um retrato do sincretismo religioso brasileiro e das dinâmicas sociais do país: o processo de colonização, o tráfico de escravizados e as estratégias de sobrevivência e manutenção de memórias e cultos do povo negro.
Esse sincretismo, embora presente em diversas sociedades pelo mundo, adquire posição de destaque nas práticas religiosas da diáspora negra. Religiões e práticas religiosas africanas se desenvolveram em sociedades que tiveram a presença de pessoas negras escravizadas.
Realidade em muitas sociedades africanas, europeias e árabes antes mesmo do processo de colonização iniciado no século XV, em razão dos fluxos populacionais, comerciais e migratórios, o sincretismo também se desenvolveu no Brasil durante e após o processo de colonização, no contato entre as diversas culturas presentes no território, especialmente entre a tradição católica europeia e os diferentes povos africanos sequestrados e aqui desembarcados. Nesse amálgama, muitos dos santos católicos e dos orixás são sincretizados. É o caso do orixá Ibeji, e sua representação gemelar, e dos santos Cosme e Damião.
Ibeji e os gêmeos
“Ibeji” vem do iorubá ibi (nascimento) e ji (dois): é o orixá jeje-nagô dos gêmeos, sendo seu tutor e guardião. As sociedades iorubanas do continente africano possuem uma das maiores taxas de nascimento de gêmeos do mundo. E a relação dessas sociedades com o nascimento dessas crianças transcorreu de diversas maneiras durante a história: do medo à celebração. A representação de Ibeji se dá justamente na duplicidade dos gêmeos, usualmente com duas estátuas, uma referindo-se ao masculino e outra ao feminino. Nas sociedades iorubanas os gêmeos são indissociáveis, duas manifestações da mesma alma; por isso, possuem papel especial, com nomes específicos e rituais funerários diferentes daqueles das demais pessoas. A Ibeji é confiada a proteção não apenas dos gêmeos, mas de todas as crianças.
Cosme e Damião
Cosme e Damião são dois santos gêmeos da tradição católica. Médicos, exerciam a cura sem cobrar pelos serviços, e, por isso, traziam muitos novos fiéis para a fé cristã. O culto aos santos gêmeos chega ao Brasil por volta de 1530, e eles se tornam os padroeiros de Igarassu, em Pernambuco. São padroeiros da medicina (especialmente da cirurgia), dos médicos, das crianças, dos barbeiros e dos cabeleireiros, entre outros. Nas práticas religiosas de negros escravizados no país, que sincretizaram orixás e santos católicos como estratégia de manutenção dos cultos de suas sociedades em meio à ausência de liberdade religiosa, Cosme e Damião foram associados ao orixá Ibeji. Aqui, em muitas das representações imagéticas dos santos gêmeos, eles são infantilizados ou muito mais jovens que sua contrapartida europeia, e frequentemente estão acompanhados de mais uma figura, o Doum. Nas sociedades iorubanas, o nome Doum costuma ser dado aos meninos nascidos após irmãos gêmeos, o que ressalta a influência do sincretismo religioso mesmo nas práticas católicas no país.
Os cultos e as festividades
A maior expressão do sincretismo entre as duas entidades, iorubana e católica, é que usualmente são oferecidos cultos específicos do Ibeji aos santos católicos – como a proteção da infância, das brincadeiras, dos gêmeos e dos partos múltiplos –, sempre repletos de alegria. Na Bahia, por exemplo, cada família possui sua própria maneira de cultuar os santos, desde que algumas obrigações sejam mantidas – o que remete diretamente às práticas religiosas da diáspora, já que na tradição católica não há obrigações. Durante as festividades, que tradicionalmente ocorriam no dia 27 de setembro, mas, a partir de 1969, são adiantadas em um dia para não entrar em conflito com a data de comemoração de São Vicente de Paulo, os santos são conduzidos por crianças a pedir contribuições em dinheiro. O valor arrecadado deve, necessariamente, ser gasto com as crianças. Além dessa prática, existe a obrigação de oferecer comida e doces a elas. A oferta de doces é uma das práticas mais comumente atribuídas à Festa de Cosme e Damião, em que os fiéis os colocam em pacotes de papel ilustrados com a representação dos santos gêmeos e distribuem às crianças do bairro.
Na Festa de Ibeji, por sua vez, é comum oferecer o caruru, prato típico da culinária baiana derivado da cultura de negros escravizados. Apesar das variações existentes, seus ingredientes são o azeite de dendê, o quiabo, a cebola, o camarão e outros temperos. Além de tradicional na Bahia, o prato é também comida ritual no candomblé e na umbanda, sobretudo como obrigação para com o orixá Ibeji, em qualquer época do ano, de acordo com o pedido feito a ele. Durante as festas, além da oferta do caruru, as crianças também comem o prato antes de todas as outras pessoas, invertendo a hierarquia costumeira da alimentação, dos mais velhos aos mais novos.
Tais práticas são as mesmas em todas as cidades brasileiras onde os santos e os orixás são cultuados, e é muito comum oferecer o caruru também aos santos católicos, para pedir a proteção dos filhos. Essa tradição tem sua origem na cosmogonia iorubana: Xangô, que é o pai de Ibeji junto a Iansã, tem como comida preferida o amalá, prato feito com quiabo cortado, cebola ralada, pó de camarão, sal e azeite de dendê. Todo dia, no entanto, o amalá era comido por Exu, que chegava antes para o almoço. Com raiva, Xangô fazia tremerem o céu e a terra. Um dia, os gêmeos Ibeji decidiram ajudar o pai.
Eles pediram um tambor batá e que Xangô chamasse todos os orixás para uma festa, menos Exu, que viria de qualquer maneira. Quando ele chega, questiona a ausência de comida e de seu convite para o evento. Os irmãos então lhe propõem um trato: um deles tocaria o tambor para o orixá dançar, e, se ele parasse de cansaço, nunca mais entraria no palácio. Começa a dança. Quando os braços de um dos gêmeos começavam a doer, o outro entrava em seu lugar, sem que Exu percebesse, tocando em um ritmo cada vez mais acelerado. O orixá se cansa e é derrotado, passando a comer sempre do lado de fora do palácio. Satisfeito, Xangô oferece aos gêmeos uma recompensa. Eles pedem para que, sempre que fosse servido, uma parte do amalá ficasse reservada a eles. Daí a oferta do caruru aos dois em culto. E, no processo sincrético, também os gêmeos católicos passaram a receber o prato de seus devotos.
Festa de Cosme e Damião e Festa de Ibeji – série Festas populares do Brasil
Onde: todo o Brasil
Quando: setembro, dias 26 e 27