A realidade virtual como meio de transmitir e preservar a cultura indígena
Publicado em 23/12/2025
Atualizado às 17:21 de 23/12/2025
Projeto: Kamukuwaká realidade virtual – Um patrimônio arqueológico e cultural indígena brasileiro
Texto: Piratá Waurá, com apoio de Yula Rocha
Esse projeto imersivo em formato de realidade virtual nasce do desejo do meu povo, os Wauja do Alto Xingu, de compartilhar o conhecimento ancestral do mito do Kamukuwaká com o público não-indígena diante da crise climática global e da tentativa de apagamento da nossa cultura.
Em 2018, quando as gravuras milenares da gruta Kamukuwaká – considerada sagrada para nós e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – foram vandalizadas no Mato Grosso, nós começamos a trabalhar com parceiros internacionais na reconstrução de uma réplica em tamanho real, no desenvolvimento de um piloto de realidade virtual para o nosso povo “entrar na gruta” e em um filme curta-metragem, chamado Replika. A obra foi tão bem recebida nas aldeias Wauja, especialmente pelos mais jovens, que decidimos criar uma experiência imersiva para educar o público não-Indígena. Antes de dirigir o Kamukuwaká – O chamado da floresta, em parceria com o Studio KWO e a People’s Palace Projects, eu trabalhei na produção, filmagem e edição de filmes e vídeos como cineasta, fotógrafo e educador nas aldeias Wauja, documentando nossa história e nossas memórias.
O audiovisual, para mim, é também uma ferramenta de luta pelos direitos dos povos indígenas. Desde a demarcação do primeiro território do Brasil, o Xingu, onde vivo, na década de 1960, lutamos para que a gruta do Kamukuwaká – hoje dentro de fazendas de soja – seja incorporada à nossa terra. Kamukuwaká – o chamado da floresta, agora finalizado e prestes a ser lançado, é uma obra de arte, mas também parte do trabalho de incidência política para nós no Xingu. Esperamos que a arte possa sensibilizar políticos e o público sobre as nossas lutas.
Sobre o projeto
Kamukuwaká – O Chamado da Floresta transporta o público ao território indígena do Xingu em uma experiência imersiva de realidade virtual. A obra convida a vivenciar rituais, encontros com pajés e visões da floresta através do tempo, revelando a força dos saberes Wauja diante da crise climática.
No coração da narrativa está a gruta sagrada Kamukuwaká, cujas inscrições milenares guardam a cosmogonia do Xingu. Entre mito e tecnologia, a experiência aproxima o público da sabedoria Wauja e aponta caminhos de futuros possíveis mais justos.
O longo processo de criação do projeto envolveu muita gente nos últimos dois anos e foi feito com muito cuidado e respeito aos Wauja, porque somos guardiões dessa história. Antes e durante a pré-visita de campo, o desafio foi consultar as lideranças Wauja e compartilhar a ideia do projeto nas aldeias, onde tudo é decidido de forma coletiva. Uma vez validado o projeto dentro da comunidade, começamos a pensar na história que queríamos contar ao público não-indígena.
E aí veio o segundo e talvez maior desafio – definir a narrativa. Como aproximar o público de uma realidade tão distante e conectar o mito do Kamukuwaká à emergência climática? Como fazer esse público perceber que estamos todos conectados, que todo mundo tem a ver com a destruição da floresta e do patrimônio indígena e que os saberes ancestrais são parte da solução da crise do clima? Eu queria que a experiência fizesse o público “sentir” o que vivemos no território e despertasse de alguma forma a vontade de cuidado do planeta. Depois de muitas conversas com o cacique Akari Waurá, que foi o consultor dessa experiência, e a ajuda de um roteirista de realidade virtual, chegamos a um texto de tom educativo para guiar o público através das imagens que são muito potentes. Pela primeira vez, estamos abrindo nossa casa – a aldeia Ulupuwene no Alto Xingu – para o mundo. O público vai poder ver de perto as queimadas da floresta, a expansão desenfreada da soja, mas também vai vivenciar a riqueza da nossa cultura – com nossas danças, cantos e rituais. Eu, Piratá, tive sempre em mente a mensagem que queria levar com esse projeto, que é a de convencer o homem branco (como nos referimos aos não-indígenas) a parar de se autodestruir.
O terceiro desafio foi a logística de gravar no meio da floresta e o curto tempo de captação da obra – menos de uma semana! Depois de quase 24 horas de viagem, a equipe do Studio KWO foi recebida na aldeia Ulupuwene em meio aos preparativos para a inauguração da réplica da gruta do Kamukuwaká com mais de 300 convidados, entre autoridades, lideranças indígenas, jornalistas e parceiros internacionais. Fizemos uma apresentação no centro da aldeia para explicar que para gravar com câmera em 360 e drones, as cenas precisariam estar limpas, sem gente circulando ou falando, uma tarefa difícil para a rotina da aldeia de 180 residentes, maioria jovens e crianças, onde todos circulam livremente.
Eu, Piratá, cuidei da direção geral da obra, em consulta com os educadores Wauja e em parceria com o Studio KWO, um dos pioneiros em realidade virtual no Brasil, e com a organização People’s Palace Projects associada à Universidade de Queen Mary em Londres, com quem já colaboro há mais de cinco anos, responsável por toda a logística desse grande projeto. Como indígena, sempre trabalhei de forma coletiva, então formei uma grande aliança com os parceiros não-indígenas desde a concepção, roteiro até o desenvolvimento técnico da obra. Acompanhei todas as etapas, em visita ao estúdio no Rio de Janeiro e remotamente do Xingu em dezenas de reuniões online, até que a obra ficasse pronta. Para dar voz à experiência, convidamos a ativista e parenta Shirley Krenak, que esteve envolvida no projeto da construção da réplica do Kamukuwaká.
Durante todo o fazer do Chamado da Floresta fui guiado pela sabedoria do Kamukuwaká. Esse mito sempre me ensinou a viver em harmonia com a natureza. Com essa experiência imersiva, eu espero que os não indígenas entendam que somos todos natureza. Espero que eles escutem meu chamado para agir antes que seja tarde demais.