Relembre 12 filmes da atriz e diretora, que faria 90 anos no último dia 21 de fevereiro
Publicado em 11/03/2025
Atualizado às 12:57 de 11/03/2025
"Trabalhei muito, batalhei muito, amei muito, me rebelei muito. Vivi muito. Tudo sempre muito e demais e intensamente" (Norma Bengell)
Quem pesquisa sobre Norma Bengell (1935-2013) tende a concordar com a afirmação acima, feita pela própria artista em sua autobiografia. Norma, que teria completado 90 anos no último dia 21 de fevereiro, atuou durante cinco décadas no cinema, no teatro e na televisão. A artista protagonizou alguns dos mais célebres filmes brasileiros, fez carreira na Europa, trabalhou como atriz, cantora, produtora e diretora, envolveu-se na luta contra o conservadorismo, o machismo e a ditadura militar, e deixou o lugar passivo de musa para se tornar autora e realizadora dos seus próprios projetos.
Em que pese o desafio de dar conta de tantas facetas, este guia convida o leitor a conhecer a trajetória de Norma a partir de 12 filmes emblemáticos.
O homem do Sputnik (1959)
direção: Carlos Manga
Norma começou a carreira como modelo e vedete, e estreou no cinema a convite do diretor Carlos Manga (1928-2015), que assistiu a um de seus shows. A comédia conta a história de Anastásio (papel de Oscarito), um caipira que vira alvo de russos, estadunidenses e franceses após a notícia de que o satélite Sputnik teria caído em seu galinheiro. Norma interpreta Bebe – personagem inspirada na atriz Brigitte Bardot –, a principal arma dos franceses para seduzir Anastásio. O filme, e sobretudo a cena em que Bebe canta e dança sensualmente, começou a construir a imagem de Norma como símbolo sexual.
O pagador de promessas (1962)
direção: Anselmo Duarte
Único filme brasileiro a receber a Palma de Ouro no Festival de Cannes, O pagador de promessas narra a saga de Zé do Burro (Leonardo Villar) para se manter fiel a um juramento que fez a Santa Bárbara. Mesmo tendo pouco tempo em cena como a prostituta Marli, Norma se beneficiou da repercussão nacional e internacional do longa. Em sua autobiografia, publicada postumamente pela editora nVersos, ela definiu sua atuação nessa película como “puro instinto”: “Não sou uma atriz genial, mas tenho uma vantagem: quando me movo, parece que estou tomada”.
Os cafajestes (1962)
direção: Ruy Guerra
O filme que transformou Norma em estrela foi também aquele no qual ela protagonizou a primeira cena de nu frontal do cinema brasileiro. Em Os cafajestes, dois jovens (Jece Valadão e Daniel Filho) planejam chantagear um homem rico utilizando imagens nuas de sua amante, Leda, a personagem de Norma. Para isso, levam-na a uma praia, escondem suas roupas e tiram fotos enquanto ela corre desesperada pela areia.
Em sua autobiografia, Norma escreveu sobre a filmagem e a força da cena: “Eu deveria andar em círculos na praia, completamente nua. Era uma verdadeira batalha com a câmera. Ruy avisava que a câmera ia para o sexo e eu tapava o sexo, que ia focar os seios e eu tapava os seios. […] Ruy foi gentilíssimo e me disse que se eu não gostasse do resultado, ele não colocaria a cena no filme. Mas eu gostei. Muito além da minha aparência, que afinal nem era o foco da cena, o que sobressai é a representação da angústia. As imagens falam menos de quem se vê e mais de quem as vê: são cruas como a perversão, violentas como o desejo, monstruosas como a verdade. Como se, realmente, a câmera eletrizante de Ruy Guerra estivesse voltada para a moral daquela sociedade, pois, de fato, é a plenitude daquela nudez que despe o espectador, explicitamente”.
Os cafajestes ficou pouco tempo em cartaz, foi proibido pela censura e inaugurou o que Norma chamou de “seus problemas com o governo brasileiro”: “Sofri grande perseguição dos setores conservadores e ataques da Igreja e da famigerada organização Tradição, Família e Propriedade, a TFP, cuja campanha moralista e conservadora me acusava de ser amoral e libertina”.
Sob muitos aspectos, o filme representou um antes e depois na trajetória de Norma – consolidou sua carreira de atriz e confirmou seu status de símbolo sexual, ao mesmo tempo que colaborou para sua imagem de mulher livre e transgressora, dentro e fora das câmeras. Norma também atribuía a Os cafajestes um papel importante em seu amadurecimento profissional: “Este filme mudou minha forma de representar. Era outra técnica, minimalista e naturalista, à maneira europeia, interiorizada, de tempos marcados, sem muitas falas”.
O mafioso (1962)
direção: Alberto Lattuada
Enquanto virava estrela no Brasil, Norma também começava sua carreira internacional, com a comédia italiana O mafioso. Ela interpretou Marta, a mulher do protagonista, vivido por Alberto Sordi, um homem cordato que se envolve com a máfia durante férias na Sicília. Ao longo dos anos, Norma atuou em vários filmes na Europa e, sobretudo, na Itália, incluindo La costanza della ragione (1964), de Pasquale Festa Campanile, O planeta dos vampiros (1965), de Mario Bava, e Vigarice (1965), de Giuliano Montaldo, que ela dizia ser seu favorito entre os trabalhos que fez no exterior.
Noite vazia (1964)
direção: Walter Hugo Khouri
Enquanto desenvolvia a carreira internacional, Norma continuou atuando em produções brasileiras, entre elas Noite vazia, que competiu no Festival de Cannes. O filme acompanha dois homens (Mário Benvenutti e Gabriele Tinti) que percorrem as ruas de São Paulo em busca de sentido para suas vidas. Eles contratam duas prostitutas de luxo (Norma Bengell e Odete Lara) para uma noite de sexo, mas o encontro expõe a angústia e a solidão de todos os envolvidos. Durante as filmagens, Norma se casou com Gabriele Tinti, com quem permaneceu até 1969. Mais tarde, teve relacionamentos longos com Gilda Grillo e Sônia Nercessian.
A casa assassinada (1971)
direção: Paulo Cesar Saraceni
Grande parte da carreira de Norma se deu no contexto da ditadura militar, período no qual ela se tornou mais politizada. A atriz participou de manifestações (incluindo a Passeata dos Cem Mil, em 1968), ofereceu assistência a pessoas perseguidas e foi, ela mesma, presa e interrogada. Numa consulta ao acervo do Arquivo Nacional, as pesquisadoras Patricia Machado e Thais Blank encontraram 73 menções ao nome da artista em documentos produzidos por departamentos de Estado entre 1964 e 1985. Nesses documentos, segundo as pesquisadoras, ela é caracterizada como subversiva, comunista e depravada.
Norma relembrou a tensão daquele período em sua autobiografia: “Não era mais possível montar peças ou filmar. Toda privacidade e liberdade de expressão estavam censuradas. Só me deixavam em paz quando eu não trabalhava. Todas as minhas peças estavam proibidas e meu nome não pôde sequer constar nos letreiros dos cinemas quando o filme A casa assassinada foi lançado”.
O longa mencionado por Norma – baseado na obra de Lúcio Cardoso (1912-1968) – conta a história de Nina, uma mulher de espírito livre que se casa por interesse, sem saber que a tradicional família do noivo está em decadência. Vivendo em um ambiente repressor, ela se aproxima do cunhado, Timóteo (Carlos Kroeber), que, por ser gay, é forçado a passar seus dias confinado no quarto. No ano em que o filme foi lançado, Norma partiu para o exílio na França.
Inês (1974)
direção: Norma Bengell
Foi durante o exílio que Norma conheceu a atriz francesa Delphine Seyrig (1932-1990) e as demais integrantes do coletivo Les Insoumuses, que a colocaram em contato com os debates feministas da época e a incentivaram a realizar seus próprios filmes.
O encontro de Norma e Delphine rendeu Inês, curta-metragem sobre a militante brasileira Inês Etienne Romeu (1942-2015), que, na época, estava presa e buscando revisão da pena. Sem cartela com créditos de realização, o filme foi arquivado no Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, em Paris, e atribuído a Delphine no site da instituição. No entanto, a autobiografia de Norma e a pesquisa de Patricia e Thais apontam para uma obra idealizada pelas duas artistas e realizada por um coletivo de mulheres.
“Idealizei, peguei e fiz os cenários do filme: cadeira de choque elétrico, pau de arara etc.”, escreveu a brasileira. “Fiz uma história humana, nada panfletária, sem citar o nome de Inês, denunciando o estupro. A violência não tem nome, e as mulheres, quando são torturadas, levam desvantagem pelo estupro, que traz doenças e gravidez.”
Para a pesquisadora Thais, Inês elevou a outra potência a percepção de corpo como território político que Norma passara a ter a partir de Os cafajestes. “É um filme muito difícil de assistir, porque [mostra] um corpo sendo estuprado e massacrado o tempo todo”, afirmou. “O foco está nisso: no corpo da mulher e na tortura misógina.”
Mar de rosas (1977)
direção: Ana Carolina
Norma voltou para o Brasil no fim dos anos 1970 e colocou suas inquietações feministas em Mar de rosas, primeiro longa-metragem da cineasta Ana Carolina. A atriz interpreta Felicidade, uma mulher sufocada pela vida doméstica e pelo casamento infeliz, que durante uma viagem de carro mata o marido e foge com a filha adolescente e indisciplinada.
Foi uma das melhores atuações de Norma, inclusive segundo ela mesma. “[Felicidade] representa uma mulher que dá os primeiros passos em busca de sua emancipação. É um papel cheio de conflitos e contradições, que se veem em cada diálogo, silêncio e olhar”, escreveu. “Tive a oportunidade de botar para fora o que vi minha mãe sofrer e ser massacrada. O mesmo massacre que eu mesma poderia ter sofrido, se tivesse aceitado um casamento como minha família queria, e tivesse sido taquígrafa ou datilógrafa.”
Maria Gladys, uma atriz brasileira (1979)
direção: Norma Bengell
Em meados dos anos 1970, Norma fundou sua própria empresa, a N.B. Produções. O seu projeto era filmar documentários sobre grandes mulheres brasileiras, entre elas a líder do cangaço Maria Bonita (1911-1938), a atriz Fernanda Montenegro e as militantes políticas Inês Etienne Romeu e Iara Iavelberg (1944-1971). Norma chegou a realizar pesquisa e algumas filmagens, mas a dificuldade em obter financiamento fez com que só um curta fosse produzido: o dedicado à atriz Maria Gladys.
“É o filme que deu certo”, resumiu a pesquisadora Patricia Machado, destacando também o caráter pessoal das imagens e a força do encontro entre as artistas. “Há uma relação de troca e de similaridades de histórias. Num determinado momento, Norma filma o espelho e também aparece em cena. Então, é como se dissesse: ‘Estou falando com a Maria Gladys, mas estou falando de mim também’.”
A idade da terra (1980)
direção: Glauber Rocha
Após começar a dirigir e produzir, Norma seguiu trabalhando como atriz em filmes como Rio Babilônia (1982), de Neville d’Almeida, Tabu (1982), de Júlio Bressane, Tensão no Rio (1982), de Gustavo Dahl, e A idade da terra, última e mais polêmica obra de Glauber Rocha (1939-1981). Exibido na competição do Festival de Veneza e inspirado em um poema de Castro Alves (1847-1871), o longa retrata a situação política, cultural e social do Brasil a partir da história de quatro “Cristos” diferentes. Norma protagoniza cenas marcantes, como quando encarna a Rainha das Amazonas e quando anda pelas ruas gritando por liberdade.
Eternamente Pagu (1987)
direção: Norma Bengell
Norma estreou na direção de longa-metragens com esta cinebiografia da escritora e jornalista Patrícia Galvão (1910-1962). Também produtora e coautora do roteiro, ela colocou o foco na militância política e na obstinação de Pagu, com as quais se identificava. “Somos de gerações diferentes, mas, num país conservador, as histórias se cruzam”, escreveu.
Para o papel da protagonista, Norma escolheu Carla Camurati, que venceu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado. Ao falar sobre as filmagens, Carla destacou a equipe “coesa” e o trabalho de direção que buscava “transparência”: “Norma não queria imprimir uma coisa de violência na Pagu. Queria que ela tivesse atitude, mas também um lado mais delicado, porque achava que nesta mistura estava a força da personagem”.
Ao falar sobre Norma, Carla usou termos parecidos: “Ela era totalmente ‘Norminha furacão’ e, ao mesmo tempo, muito delicada. Eu brincava que ela tinha um lado meio mariquinha, porque, quando viajávamos, ficava horas desarrumando a mala, deixando tudo ajeitadinho”, relembrou. “Ela tinha lados muito interessantes. Era uma pessoa plena e explosiva, tanto para a alegria quanto para a raiva e contra a injustiça.”
Embora também tenha ido para o outro lado das câmeras – inclusive dirigindo Norma no curta A mulher fatal encontra o homem ideal (1987) –, Carla afirma que a passagem da atuação para a direção não foi tema de conversa entre as duas. “A gente estava sempre concentrada no que ia fazer e na construção das cenas”, disse.
Para ela, um momento memorável se deu na pré-estreia de Eternamente Pagu no Rio de Janeiro, quando avisou Norma de que, por não gostar de se ver na tela, iria deixar a sala após o início da exibição e assistir ao filme da cabine. “Ela olhou para a minha cara e falou: ‘Se você levantar, eu processo você ou mato você’”, contou Carla, aos risos. “E depois dessa, eu fiquei, né?”
O guarani (1996)
direção: Norma Bengell
O último trabalho de Norma na direção foi a adaptação do romance O guarani, de José de Alencar (1829-1877), um projeto que ela levou anos para conseguir realizar e que foi impactado pela paralisação do audiovisual brasileiro durante o governo Collor. Mal recebido pela crítica e pouco visto pelo público, o longa usou leis de incentivo fiscal para captar financiamento, mas sua prestação de contas foi recusada pelo Tribunal de Contas da União. Norma teve bens bloqueados e chegou a ser indiciada por lavagem de dinheiro e apropriação indébita. Negou qualquer tipo de má-fé e venceu alguns dos processos, mas permaneceu imersa em dívidas e brigas judiciais.
Ao longo da carreira, a atriz viu portas se fecharem por sua personalidade forte, seu comportamento combativo e pelo machismo no audiovisual brasileiro, mais receptivo a seu trabalho como atriz do que como produtora e diretora. O imbróglio de O guarani aprofundou o isolamento da artista, que fez poucos trabalhos posteriores mesmo em frente às câmeras, com destaque para a série cômica Toma lá, dá cá (2008-2009), exibida pela Globo.
Depois de anos com a saúde debilitada, Norma morreu em 9 de outubro de 2013, aos 78 anos, de câncer de pulmão. Dois anos antes, em 2011, ela se emocionou ao receber uma homenagem no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (hoje rebatizado de Prêmio Grande Otelo): “Foi um êxtase de carinho, como se todos os aplausos entrassem pelos meus poros”, escreveu. “Quando cheguei ao meio do palco, pensei em como era bom carregar comigo tudo aquilo que conquistei. Falei algumas palavras e chorei muito. Pedi que continuassem a aplaudir, pois é disso que um artista necessita.”