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Revista Observatório 33 | Caminhos para unir ensino técnico e área cultural na formação de jovens, por Carla Christine Chiamareli

Revista Observatório 33 | Caminhos para unir ensino técnico e área cultural na formação de jovens, por Carla Christine Chiamareli

Artigo de autoria de Carla Chiamareli discute a importância do ensino técnico para a área cultural, em especial com foco nos juventude

Publicado em 12/09/2022

Atualizado às 17:36 de 17/10/2022

por Carla Christine Chiamareli

 

>> Acesse aqui o sumário da Revista Observatório 33

 

A educação profissional e tecnológica (EPT) é um universo amplo, rico e diversificado que pode representar, para muitas pessoas, uma etapa dentro da sua longa trajetória de qualificação. A área da cultura está contemplada em diversos tipos de formações técnicas e, sem dúvida, constitui uma importante frente de inserção produtiva dos jovens brasileiros e de melhoria do ambiente escolar e comunitário. Este texto traça caminhos possíveis para aproximar a EPT de nível médio da área cultural.

Engana-se quem supõe que os cursos técnicos se restringem à formação do profissional para atuar apenas em parques industriais e tecnológicos ou em empresas do setor produtivo tradicional, como fábricas e montadoras. Segundo o Catálogo nacional de cursos técnicos, do Ministério da Educação (MEC), que lista os cursos da EPT de nível médio oferecidos no país, o eixo de produção cultural e design apresenta 31 cursos técnicos, com os mais variados focos: artes visuais, canto, dança, design, museologia, produção cultural, multimídia, teatro e moda, entre outros.

Além dos cursos de nível médio, que podem incluir a formação inicial e continuada (FIC), de curta duração, outros cursos que fornecem um diploma de graduação, como o de tecnólogo em produção cultural, representam uma chance de o jovem se aprofundar no nível superior, permitindo que continue o seu processo de qualificação para as múltiplas exigências do século XXI.

cursos que fornecem um diploma de graduação, como o de tecnólogo em produção cultural, representam uma chance de o jovem se aprofundar no nível superior, permitindo que continue o seu processo de qualificação para as múltiplas exigências do século XXI

As possibilidades de formação são muitas, e colocar a cultura dentro de um itinerário profissional é dar a ela a importância que merece e, ao mesmo tempo, contribuir para fortalecer a chamada indústria criativa, ou economia criativa, que tem grande potencial no Brasil, com sua riqueza e diversidade cultural imensuráveis.

A economia criativa é abrangente e compreende muitas subáreas de atuação, reunindo toda uma cadeia de produtos e serviços. Em um único show ou exposição, por exemplo, podem trabalhar dezenas de profissionais técnicos antes, durante e depois do evento, o que ilustra as várias oportunidades de geração de trabalho e de renda para as juventudes – possibilidades que ainda podem e devem ser ampliadas.

Segundo levantamento do Observatório Itaú Cultural, que possui dados interessantes sobre o assunto, foram identificados 18 setores econômicos diretamente relacionados à produção criativa. Essas áreas empregaram 4,89 milhões de pessoas em 2021, das quais 2,89 milhões eram trabalhadores criativos. Contudo, a atuação desses profissionais não está restrita aos setores criativos: são mais de 1,28 milhão atuando fora deles, em um universo total de 4,18 milhões de trabalhadores da área no Brasil.

a atuação desses profissionais não está restrita aos setores criativos: são mais de 1,28 milhão atuando fora deles, em um universo total de 4,18 milhões de trabalhadores da área no Brasil

Os trabalhadores criativos podem pertencer a uma variedade de 57 ocupações, sendo que 21 delas – como profissionais da publicidade e da comercialização; desenhistas e projetistas técnicos; desenhistas e decoradores de interiores; e técnicos de radiodifusão e gravação audiovisual – são de pessoas formadas por qualificação profissional ou por cursos técnicos de nível médio, que somaram quase 2,27 milhões no segundo trimestre de 2021, segundo a “Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua” (“Pnad contínua”). Isso quer dizer que praticamente metade desses trabalhadores possui formação/conhecimento da EPT de nível médio e que ainda há espaço para esse número crescer.

No mesmo período de 2021, de acordo a pesquisa, um quarto (25,6%) dos trabalhadores criativos era formado por jovens (15 a 29 anos). Nesse universo, algumas ocupações eram compostas predominantemente dessa faixa etária, sobretudo as relacionadas à tecnologia da informação e outras diretamente ligadas às artes, como de modelo e ator. Além disso, em 14 das 57 ocupações, o percentual de jovens ultrapassava os 40%.

Uma pessoa vestindo túnica branca e com a mascara com capuz vermelho, segurando abacaxis em cada uma das mãos, dentro de uma cela onde no meio do tronco aparecem duas placas escritas: CELA 106 e outra 106.
Ensaio Artístico Revista Obs 33 | Frame do filme Sethico. Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia

Para além dos 31 cursos técnicos do eixo tecnológico de produção cultural e design citados anteriormente, cursos de outros eixos, como de produção alimentícia e de turismo, hospitalidade e lazer (técnicos em gastronomia e em eventos), também contam com vários outros cursos para a formação de trabalhadores criativos.

Atualmente, o principal desafio do Brasil está em aumentar e democratizar a oferta da EPT, mas com qualidade, elevando o total de profissionais com formação realmente adequada, seja na área cultural ou em outra. Há ainda um longo caminho de mudança de percepção interna para que o país valorize mais a EPT como forma de inserção digna dos jovens no mundo do trabalho, a exemplo do que já acontece há décadas em nações desenvolvidas, como Alemanha, Áustria, Suíça, Holanda e Japão. Essa mudança é ainda mais urgente e necessária quando se observa que o país tem hoje um universo populacional de cerca de 50 milhões de jovens, ávidos por boa formação e por inclusão produtiva qualificada.

Há ainda um longo caminho de mudança de percepção interna para que o país valorize mais a EPT como forma de inserção digna dos jovens no mundo do trabalho, a exemplo do que já acontece há décadas em nações desenvolvidas, como Alemanha, Áustria, Suíça, Holanda e Japão

A pesquisa nacional Percepções dos jovens sobre o ensino técnico. Primeira parte: pesquisa quantitativa, realizada em 2021 pelo Plano CDE a pedido do Itaú Educação e Trabalho e da Fundação Roberto Marinho, reuniu mais de mil respostas de estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental e do 1º ano do Ensino Médio da rede pública de ensino a um questionário on-line. Entre os dados mais preocupantes, tem-se que “43% dos jovens nunca ouviram falar de ensino técnico”. E, mesmo entre quem já ouviu, a maioria não conhece nenhuma escola de Ensino Médio que ofereça cursos técnicos.

O curioso é que, apesar do baixo conhecimento, os estudantes que participaram da pesquisa têm atitudes positivas em relação ao ensino técnico, visto por eles como de boa qualidade e como uma opção adequada de preparação tanto para o vestibular quanto para o mundo do trabalho. Além disso, conseguir um emprego é o principal motivo de considerarem atrativo esse tipo de ensino. Ao mesmo tempo, o levantamento mostra que os alunos sentem uma desconexão da escola com o mundo. Há uma percepção predominante de que a escola os prepara pouco para o mundo do trabalho, de que deveria preparar mais.

o levantamento mostra que os alunos sentem uma desconexão da escola com o mundo. Há uma percepção predominante de que a escola os prepara pouco para o mundo do trabalho, de que deveria preparar mais

O professor Bernard Charlot, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), autor do livro Da relação com o saber às práticas educativas, esclarece que a escola formal foi concebida justamente para ser separada da vida e do trabalho. Segundo ele, os jesuítas desenvolveram um espaço “ideal” para as crianças estudarem e se formarem, que era apartado da vida: o internato. Agora, cabe aos novos gestores escolares promover uma reconexão entre esses universos, na perspectiva da formação integral do sujeito.

Já a segunda parte da mesma pesquisa, qualitativa, ouviu 96 jovens em profundidade e mostrou que eles têm dificuldade em encontrar sentido e conexão entre a escola e as suas vidas, e que sentem falta de conteúdos e aprendizados aplicáveis. Queixam-se também da falta de um diálogo maior entre a escola, os seus interesses e as suas necessidades, e gostariam de ter mais orientação para atingir o que desejam. Alegam, por exemplo, que há pouco conhecimento sobre profissões e áreas de atuação e sobre o mundo do trabalho de forma geral.

falta de um diálogo maior entre a escola, os seus interesses e as suas necessidades, e gostariam de ter mais orientação para atingir o que desejam

Os resultados das duas partes da pesquisa transmitem um recado: é clara a oportunidade para as redes de ensino repensarem e atualizarem suas ofertas curriculares, levando em conta os desejos dos estudantes e as possibilidades reais de contratação pelo mercado. Fica patente também a necessidade de melhoria da divulgação dos cursos técnicos entre os adolescentes do Ensino Fundamental II, a fim de que fiquem mais bem informados para fazer suas escolhas do Ensino Médio de forma mais estruturada.

Com a reforma implementada no Brasil a partir de 2022, o Ensino Médio passa a contar com o itinerário de formação técnica e profissional, ou quinto itinerário, e com flexibilização curricular, formação por competências e maior interdisciplinaridade, podendo unir muito mais educação, arte e cultura. Pode-se integrar, por exemplo, o itinerário técnico com o de linguagens (língua portuguesa, artes, língua inglesa etc.), e isso pode ser promovido por meio da FIC. Ademais, trabalhar o empreendedorismo na área da cultura propondo-se atividades “mão na massa” na escola é um meio possível para formar um jovem capaz de criar e gerir seu empreendimento cultural, seja ele um DJ, um youtuber ou um designer de moda.

A recente experiência de uma escola da rede estadual de ensino de Pernambuco pode inspirar as demais redes na oferta de cursos técnicos da área cultural no contexto do novo Ensino Médio. Desde fevereiro de 2021, a Escola Técnica Estadual (ETE) Professor Alfredo Freyre, no bairro de Água Fria, Zona Norte do Recife, oferece dois cursos integrados ao Ensino Médio: técnico em teatro e técnico em artes visuais.

Hoje, são 267 alunos e 25 professores (9 da base técnica e 16 da base comum) ocupando diferentes espaços da escola, que incluem um teatro para a exibição das peças e um local para as exposições artísticas dos alunos e para os aprendizados sobre cinema.

No fim de 2023, esses jovens estarão aptos a atuar no mercado cultural em cargos de nível médio. Mais que isso, estarão preparados para diversas atividades. Sairão da escola com habilidades para trabalhar na organização de eventos, com conhecimentos de som e de iluminação. Serão formados também artistas visuais prontos para se expressar esteticamente de diversas formas, capazes de inspirar o outro e de empreender em suas obras.

Sairão da escola com habilidades para trabalhar na organização de eventos, com conhecimentos de som e de iluminação. Serão formados também artistas visuais prontos para se expressar esteticamente de diversas formas, capazes de inspirar o outro e de empreender em suas obras

Relatos dos gestores da unidade de ensino mostram que a associação com artes e cultura tem gerado sensações de engajamento e de pertencimento entre os estudantes, que quanto mais participam de projetos, ajudando a construí-los e exibi-los, mais querem estar presentes, com demonstrações de empolgação e de criatividade.

Um exemplo disso aconteceu na vivência do Dia da Matemática, quando os estudantes de artes visuais produziram objetos de arte baseados nas formas geométricas, que resultaram em uma exposição bastante criativa; e os alunos de teatro conceberam espetáculos inspirados na vida e na obra do matemático e escritor Malba Tahan, gerando significado para eles e para toda a escola.

Thayane Rhayane Sales de Oliveira, estudante do segundo ano do curso técnico em teatro integrado ao Ensino Médio da escola pernambucana, demonstra esses aspectos em sua fala: “Sempre me senti muito próxima da arte, e a experiência de atuar na peça de matemática foi incrível. Confesso que não estava muito animada, porque matemática nunca foi um dos meus fortes, mas foi maravilhoso usarmos o curso técnico para aprender mais e mais. Essa peça mudou meu ponto de vista, porque antes eu acreditava que o teatro era para ser só uma coisa dramática e para falar sobre romances, tal como as novelas. Percebi que o teatro traz vários benefícios: conhecemos mais nosso corpo e nossas limitações, fortalecemos trocas afetivas e principalmente o trabalho em grupo”.

O desenho da fachada do portal do Mercado Boa Vista, no topo do portal está escrito Cemitério da Boa Vista, A fachada está pintada de vermelho, o céu está mesclado de preto. Nas portas e janelas estão com muitas máscaras brancas e abacaxis verdes no chão da fachada.
Ensaio Artístico Revista Obs 33 | Mercado de Boa Vista. Desenho de Wagner Montenegro

Já Lucas Cauê da Silva Cordeiro, aluno do mesmo ano e curso, salienta a potencialização das suas habilidades: “Nas peças interdisciplinares, os professores utilizaram o ensino técnico para fazer um ensino mais descontraído. Não aprendi apenas a atuar, aprendi a estar atrás das câmeras para poder produzir minhas próprias coisas. Além de atuar, ajudei a produzir outras peças, e alguns amigos meus também tomaram esse rumo, fazendo iluminação, sonoplastia e roteiros. Vou explorar exponencialmente a parte técnica com a atuação para poder me destacar como profissional”.

Formar jovens em diferentes competências e habilidades no nível médio significa abrir as portas para que eles continuem a se desenvolver plenamente no futuro e estabeleçam uma carreira no longo prazo. Vários artistas consagrados tornaram-se capazes de exercer diferentes atividades. Emicida não é só rapper: é cantor, compositor, letrista, diretor de documentário, apresentador de TV, empreendedor e professor. Ney Matogrosso não é só cantor: é iluminador, ator, dançarino, artesão, compositor e diretor de espetáculos. Antes de se tornarem cantoras e dançarinas conhecidas mundialmente, Pabllo Vittar era maquiadora e Anitta cursou o técnico em gestão administrativa.

Formar jovens em diferentes competências e habilidades no nível médio significa abrir as portas para que eles continuem a se desenvolver plenamente no futuro e estabeleçam uma carreira no longo prazo

Infelizmente, o distanciamento social imposto pela pandemia de covid-19 aumentou ainda mais os desafios das redes de ensino para atrair e manter os alunos estudando e se formando, o que exige uma forte cooperação entre gestores públicos, famílias e sociedade como um todo. Com a recente retomada das atividades presenciais no país, o campo cultural pode voltar a se fortalecer e incentivar a inventividade de milhões de jovens brasileiros. Os cursos técnicos e profissionalizantes são, claramente, um vetor possível para proporcionar essa recuperação tão necessária e bem-vinda.

 

Como citar 

CHIAMARELI, Carla C. Caminhos para unir o ensino técnico e a área cultural na formação de jovens. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. Doi: https://www.doi.org/10.53343/100521.33-11

 

Carla Christine Chiamareli é gerente de gestão de conhecimento do Itaú Educação e Trabalho. Advogada, atua há mais de 18 anos com direitos sociais, sobretudo na elaboração e na implementação de políticas públicas educacionais. Nos últimos anos, dedicou-se ao apoio técnico para a ampliação com qualidade da oferta da modalidade de educação profissional e tecnológica. Tem passagens pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social de São Paulo (Seds) e pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).

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