por Daniela Ribas Ghezzi
Resumo
Neste artigo, exploramos as relações entre música e tecnologias digitais, com ênfase na transição de um modelo baseado em algoritmos de recomendação com governança centralizada e pouco transparente (web 2.0) para um modelo em que a propriedade da identidade digital passa a ser o elemento principal de uma governança descentralizada e mais transparente (web 3.0).
Música e web 2.0:[1] um diagnóstico rápido
A disputa por atenção nas plataformas que sustentam a difusão musical – como Instagram, TikTok, YouTube e Spotify – é um exemplo de como o tráfego na internet se concentrou em poucas plataformas, e de como as big techs[2] são centrais hoje para a produção cultural. As redes sociais[3] são essenciais para redirecionar o tráfego da audiência para plataformas de streaming,[4] e o esforço para levar as pessoas de um “lugar” para o outro é tão grande que requer cada vez mais tempo e recursos dos artistas (MULLIGAN, 2021).
Isso tem um enorme impacto nos modelos de negócio na área da música, cada vez mais desenvolvidos em torno do marketing de conteúdo e das fronteiras porosas entre artistas e influenciadores (CHIOCCARELLO, 2020). Para esses “criadores de conteúdos” digitais, compreender a semântica de cada uma das mídias sociais é fundamental para a conversão de pessoas em consumidores, objetivo último do marketing de conteúdo. Contudo, o design de plataforma dessas mídias – originalmente centrado na geolocalização e nas interações one-to-one de seus usuários – tem se transformado no sentido de globalizar o alcance dos conteúdos. Isso graças ao redesenho do social graph[5] das redes sociais (LEMOS, 2022), cada vez mais desterritorializado. Se, por um lado, a distribuição mais global de conteúdos pode beneficiar artistas em busca de audiências mais amplas, por outro, o redesenho do social graph torna essa audiência cada vez mais culturalmente distante dos criadores, além de conduzir a criatividade à produção de conteúdos cada vez mais padronizados. Dessa forma, não só a relação entre o artista e seus fãs é cada vez mais mediada pelas big techs, mas os próprios processos culturais de construção de identidades são mediados por essas plataformas, cujos objetivos são eminentemente comerciais.
Não obstante, a principal forma de se ouvir música hoje é mediada por algoritmos de recomendação,[6] que coletam, armazenam e tratam uma enorme quantidade de dados para predizer gostos e vender publicidade on-line. A esse processo se dá o nome de comoditização da música, caracterizada pela produção dos bens culturais de maneira padronizada e em larga escala mundial, pelo preço determinado não pelos produtores, mas pela relação entre a oferta e a demanda internacional, e por ter como objetivo tão somente ser gancho para a economia da atenção e a captura de dados pelas big techs. Isso faz do mercado musical uma das fronteiras do capitalismo de dados ou de vigilância (ZUBOFF, 2021). Pensar o mercado musical no âmbito da gestão cultural exige pensar também nas transformações dos meios digitais que o sustentam, bem como no papel das techs nesse processo.
O modelo de negócio das techs é o acesso às pessoas, e seu business é a venda de audiência microssegmentada para a publicidade on-line: os sistemas algorítmicos coletam e tratam informações pessoais, cruzam variáveis e criam perfis individuais para cada usuário da rede com o objetivo de predição de nossos padrões de consumo. Em certo sentido, os sistemas de recomendação nos conhecem melhor do que nós mesmos. Enquanto usuários, porém, não temos acesso às informações associadas a nossos perfis individuais. A identidade digital de cada usuário da internet, com todas as informações qualitativas associadas ao seu perfil individual, não é conhecida pelos próprios usuários, mas é utilizada como ativo principal para a venda de anúncios on-line pelas big techs. Quando fazemos login num serviço digital – por exemplo, uma assinatura de um jornal – por meio de nossos perfis preexistentes no Google, na Apple ou no Facebook, as empresas envolvidas trocam entre si informações valiosas sobre nosso comportamento digital para nos oferecer produtos e serviços de maneira direcionada. Embora estejamos expostos a tais anúncios, não conhecemos as razões que nos levaram a eles. É por isso que dizemos que, na web 2.0, os usuários não detêm a propriedade de sua identidade digital, tanto pelo uso de serviços de terceiros para login quanto pelo total desconhecimento dos atributos de identidade relacionados ao seu perfil digital.
os sistemas algorítmicos coletam e tratam informações pessoais, cruzam variáveis e criam perfis individuais para cada usuário da rede com o objetivo de predição de nossos padrões de consumo. A identidade digital de cada usuário da internet, não é conhecida pelos próprios usuários, mas é utilizada como ativo principal para a venda de anúncios on-line pelas big techs. Na web 2.0, os usuários não detêm a propriedade de sua identidade digital
Controlar o tráfego na internet é crucial para essas empresas, pois é a partir do controle centralizado do tráfego que se podem coletar dados, realizar a microssegmentação da audiência e atualizar constantemente os sistemas de recomendação, de acordo com as preferências e os interesses transitórios dos indivíduos (SANTINI, 2020). Há um alto custo no desenvolvimento dessas tecnologias, e por esse motivo o mercado musical em nível global continua organizado sob um modelo concentrador, ainda que haja a percepção de que a internet aproximou os produtores dos meios de difusão (GHEZZI, 2022).
Nesse modelo, em que o tráfego na internet se concentra em poucas plataformas ou aplicativos, tudo reforça a governança centralizada das big techs. O sistema de pagamentos das plataformas de streaming é um exemplo disso: ele não é estruturado em torno do que cada usuário escuta individualmente (sistema user-centric),[7] mas sim em torno da participação (market share) de cada faixa no total de reproduções da plataforma (pro-rata).[8] Nesse sistema, a participação da faixa no total de reproduções é usada como denominador para a distribuição dos pagamentos (GHEZZI; IDEA, 2021). O valor a ser pago pela música não é definido pelos titulares dos direitos autorais, pois depende de um cálculo pouco transparente sujeito ao modelo de negócio das techs e das grandes gravadoras (WALRAVEN, 2022).
A questão da concentração impõe-se quando colocamos em discussão os sistemas de recomendações algorítmicas da plataforma. Um dos critérios usados para a recomendação de músicas é a popularidade da faixa.[9] Dentro dos perfis de gosto previamente mapeados da audiência, os algoritmos recomendam as faixas mais populares. Se a remuneração é feita pela participação ou pela popularidade da faixa, e se o sistema de recomendação prioriza as faixas populares dentro do seu perfil de usuário, temos uma bola de neve que faz com que os artistas mais populares permaneçam ainda mais populares. As plataformas não são neutras e reforçam a popularidade dos que já são populares e contam com ações promocionais robustas. O modelo é estruturalmente concentrador, e acaba favorecendo catálogos ligados às chamadas gravadoras majors.
Da web 2.0 para a web 3.0
A concentração monopolística da indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985; GHEZZI, 2003) sempre foi um gargalo para a distribuição e a legitimação de bens simbólicos (BOURDIEU, 1998; GHEZZI, 2011). E, apesar da percepção de que a internet aproximou os produtores dos meios de difusão – o que não deixa de ser verdade, embora revele uma visão simplista –, o maior gargalo dos produtores culturais parece ter migrado do “acesso aos meios de produção e difusão” para o “acesso à audiência e a disputa pela atenção” (MULLIGAN, 2021) nesses meios, que depende, em grande medida, das recomendações algorítmicas.
Contudo, o desenvolvimento tecnológico, especialmente do blockchain,[10] tem permitido que se vislumbrem outras formas de relacionamento com os meios digitais além das recomendações algorítmicas. A web 3.0 tem mais a ver com uma nova forma de uso das tecnologias – que preconiza a descentralização como elemento principal de sua governança – do que com novos suportes ou dispositivos. Termos como “posse da identidade digital”, “descentralização do tráfego”, “governança distribuída”, “contratos inteligentes” (smart contracts), “transparência” e “comunidades digitais” ganham cada vez mais força, e se constituem como elementos centrais da web 3.0. O blockchain permite que usuários de internet tenham identidades (ou carteiras digitais) intransferíveis associadas aos seus perfis, geridas individualmente sem intermediários como o Google ou o Facebook, que monetizam dados pessoais, o que possibilita uma série de novos usos de nossa identidade digital na internet. Nesse sentido, a web 3.0 é uma reação ao modelo concentrado das redes sociais e das plataformas cuja governança altamente centralizada nos aparta da propriedade de nossas identidades digitais e nos impede de atribuir valor aos produtos tributários de nossa identidade digital.
A web 3.0 tem mais a ver com uma nova forma de uso das tecnologias – que preconiza a descentralização como elemento principal de sua governança – do que com novos suportes ou dispositivos. É uma reação ao modelo concentrado das redes sociais e das plataformas cuja governança altamente centralizada nos aparta da propriedade de nossas identidades digitais e nos impede de atribuir valor aos produtos tributários de nossa identidade digital
NFT é a sigla de non-fungible token, "token não fungível", em português. Não fungível significa não substituível. Uma nota de 10 reais é fungível, pois ela pode ser substituída por qualquer outra mantendo o seu valor. Já um objeto artístico original não pode ser substituído nem mesmo por sua cópia, portanto, seria não fungível. Quando há algum NFT associado a um bem digital original (como uma música, uma imagem, uma postagem em rede social ou um GIF), este se torna único e sua propriedade também. Isso porque a propriedade desse bem é associada a uma identidade digital por meio de blockchain, o que garante a exclusividade na posse desse bem originalíssimo. Assim, mesmo que haja cópias digitais, apenas quem detém o NFT associado ao bem original é o proprietário exclusivo, pois é dele o registro de originalidade da obra digital – que, por ser registrado em blockchain, é rastreável e praticamente impossível de ser fraudado.
É essa unicidade que explica o valor monetário que esses bens adquirem em leilões ou em plataformas de comercialização de NFT. Tais plataformas – como a brasileira Phonogramme –[11] associam NFT não só a músicas, mas a qualquer objeto ou experiência relacionada à música. Por exemplo, participação nos royalties de streaming (que transformam os compradores em acionistas do fonograma, havendo distribuição de benefícios econômicos por tracking), encontros com o autor (meet and greet), entradas especiais em shows etc. Essa forma de monetização da música e das experiências associadas a ela, em que os próprios artistas mensuram o valor econômico de suas obras, só é possível quando os usuários da internet compradores de NFT detêm a propriedade de sua identidade digital por meio de carteiras em blockchain. Dito de outra forma, sem a propriedade da identidade digital, não seria possível associar a posse de bens únicos a um determinado usuário da internet, tampouco comercializar tais bens.
Se na web 1.0 o login em plataformas e serviços exigia um nome de usuário e uma senha para cada serviço, e na web 2.0 os logins podem ser feitos com perfis individuais de propriedade das big techs, na web 3.0 o login se dá por meio da conexão de sua própria carteira digital em blockchain ao serviço desejado, sem que os dados de tráfego sejam transferidos ou monetizados por terceiros. A web 3.0 dá às pessoas direitos de propriedade, isto é, a capacidade de possuírem a propriedade de sua identidade na internet. A propriedade da identidade digital é um conceito fundamental, e seus usos estão apenas começando a se desenhar.
A web 3.0 dá às pessoas direitos de propriedade, isto é, a capacidade de possuírem a propriedade de sua identidade na internet
O futuro da música na internet e seus desafios
Os primeiros usos do blockchain e da web 3.0 que parecem ter ganhado alguma relevância foram as criptomoedas.[12] Durante o período mais crítico da pandemia de covid-19, entre 2020 e 2021, os NFT se multiplicaram, justamente por representarem uma possibilidade de renda alternativa para artistas e agentes culturais altamente impactados pelos bloqueios e quarentenas do período. O descontentamento de parte do meio musical com a economia da cultura altamente oligopolista das big techs – a despeito das previsões otimistas do relatório “Music in the air”, do banco de investimentos Goldman Sachs –[13] fez com que os NFT fossem vistos como algo maior do que uma alternativa temporária relacionada às restrições da pandemia. Os NFT passaram a ser considerados por muitos como elementos de monetização direct-to-fan, ou de uma governança descentralizada da monetização da música em ambiente digital, na qual o valor da obra é determinado por seu criador (WALRAVEN, 2022) tendo como base seus valores funcional, emocional ou como investimento. O valor pode ser atribuído por seu criador de acordo com critérios como raridade ou engajamento de sua base de fãs (fan base), e não por um cálculo pro-rata em que a música é elemento de captura de atenção para publicidade on-line, e sobre o qual o criador não tem o menor poder de decisão.
O descontentamento de parte do meio musical com a economia da cultura altamente oligopolista das big techs fez com que os NFT fossem vistos como algo maior do que uma alternativa temporária relacionada às restrições da pandemia. Os NFT passaram a ser considerados por muitos como elementos de monetização direct-to-fan, ou de uma governança descentralizada da monetização da música em ambiente digital, na qual o valor da obra é determinado por seu criador
A organização descentralizada autônoma (DAO, na sigla em inglês) Water and Music[14] tem realizado diversos levantamentos envolvendo NFT e música, pois entende que esse é o futuro dessa indústria, por possibilitar novas formas de remuneração a criadores e uma governança descentralizada. A DAO ajuda a indústria da música a repensar as abordagens tradicionais de criatividade, monetização e engajamento dos fãs. O seu objetivo é encorajar os membros da organização para obterem “uma nova compreensão do mercado, contextualizando seu posicionamento na Web3, mas também para agirem, concebendo novas estratégias para projetos Web3” (WATER AND MUSIC, 2022). O primeiro levantamento da DAO informa que, em 2021, o mercado de NFT musicais movimentou mais de 86 milhões de dólares, sendo que: os artistas independentes representaram a maioria (64%) das vendas, enquanto os artistas de grandes gravadoras representaram a minoria (36%); o gênero mais popular por participação na receita foi o eletrônico (65%), seguido do hip-hop (19%); e, entre fevereiro e dezembro de 2021, o preço médio por música NFT caiu 46%, de 18,8 mil para 10,2 mil dólares por unidade (WATER AND MUSIC, 2022). Um outro levantamento de NFT musicais está sendo realizado pela Futurx, DAO liderada por Nicolás Madoery, primeira comunidade latino-americana de aprendizagem e intercâmbio sobre música e tecnologia baseada na web 3.0.[15]
Apesar das perspectivas positivas, há inúmeros limites para a plena realização das potencialidades preconizadas pela web 3.0, pelo blockchain e pelos tokens únicos. Além da falta de um ambiente regulatório, com relação a direitos autorais ou ao consumo energético do blockchain, observa-se que os desafios vão mais no sentido da adoção do que propriamente de questões mais abrangentes, como a regulação. Haveria pelo menos cinco grandes desafios a serem superados para que a web 3.0 passe de promessa a realidade, descritos a seguir.
O primeiro deles seria uma mudança de mentalidade na forma como nos relacionamos com as nossas identidades digitais. Enquanto sociedade, temos uma fraca percepção de como as big techs usam os dados de tráfego associados à nossa identidade para a venda de publicidade on-line, e de como isso contribui para um modelo concentrador e unilateral do ambiente digital. A naturalização dessa lógica impede uma abertura para novas formas de pensar a identidade em ambiente digital, bem como para novos modelos de organização, participação e governança. E, se não nos abrimos para novas possibilidades e funcionalidades, nem sequer conseguimos perceber as vantagens dos novos usos das identidades tokenizadas, experimentadas apenas por um grupo de usuários interessados em novas tecnologias e soluções, os chamados early adopters.
As vantagens das identidades tokenizadas (únicas e validadas por blockchain) podem ser mais bem percebidas se pensarmos no exemplo dos dados médicos, cujo valor de uso parece ser mais visível que o dos dados de tráfego na internet. Ninguém seria favorável que planos de saúde ou convênios médicos usassem os seus dados médicos pessoais (como histórico de doenças, resultados de exames e medicações utilizadas) para cobrar mais caro por remédios e por serviços prestados a você. Substituam-se os planos de saúde pelas big techs e os dados médicos pelos dados de tráfego. Não costumamos nos importar quando essa apropriação de dados pessoais acontece com nosso comportamento individual na internet para que os anunciantes nos acessem. Estamos acostumados com a centralização operada pelas big techs, e não nos damos conta de que tudo o que envolve identidade no ambiente digital pode ser radicalmente transformado pela tokenização, no sentido de maior privacidade e transparência. Com as carteiras digitais em blockchains – como Ethereum,[16] Algorand,[17] Polygon,[18] Solana[19] e Cardano,[20] entre outras) –,[21] os aspectos comportamentais associados às nossas identidades digitais não são comercializados à nossa revelia, como acontece atualmente, pois as operações de troca de informações seriam rastreáveis e auditáveis. É necessário ter consciência do funcionamento e dos limites da web 2.0 para que novos modelos de governança possam emergir. Na conferência Da indústria ao ecossistema da música, ocorrida no Festival CoMA – consciência, música e arte em julho de 2022, Martin Giraldo fez uma contribuição importante para pensarmos na mudança de mindset na indústria da música. Para ele, são necessários alguns entendimentos e atitudes para se pensar em um novo ecossistema musical na web 3.0:
1. É necessário entender que o mundo tem novas regras do jogo; 2. É necessário adotar uma narrativa de progresso coletivo e não apenas de modelo de negócio, visto que a indústria não define o que é progresso; e 3. Diante das mudanças tecnológicas, é necessário utilizarmos a nova infraestrutura (de monetização direta, financiamento descentralizado, etc.) para promover as mudanças que queremos no ecossistema da música (GIRALDO, 2022).
O segundo grande desafio a ser superado está relacionado a informação, educação, dados e traduções para a adoção plena da web 3.0. É necessário haver um processo contínuo de educação para a adoção de novos modelos de organização do ambiente digital. Sem informação qualificada que oportunize a mudança de mentalidade e a adoção massiva das ferramentas da web 3.0 (carteiras blockchain, contratos inteligentes, NFT, DAO), não haverá uma mudança significativa em relação ao modelo atual. No caso brasileiro, traduções de materiais de referência[22] (quase todos em inglês) para a língua portuguesa – e que contemplem também nossas particularidades culturais – e outros tipos de mediações são absolutamente necessárias, pois as barreiras linguísticas e culturais impõem um nível adicional de dificuldade à questão de adoção e onboarding do ecossistema musical.
O terceiro desafio está relacionado a tecnologias mais gentis. É necessário que a tecnologia dialogue com o campo cultural de maneira mais horizontal, e não apenas de um ponto de vista tecnicista. Quanto mais simples melhor, pois criadores não deveriam ser especialistas em blockchain e contratos inteligentes a priori. Interseções entre ecossistemas tecnológicos e musicais não são fáceis, e sem um diálogo horizontal entre esses campos será difícil vislumbrar projetos musicais na web 3.0 que vão além dos NFT, pois a inovação não encontrará espaço para emergir. Tecnologias mais gentis contribuiriam para uma inovação no escopo dos projetos, e as universidades poderiam se envolver mais nessa área. Institutos de arte e/ou de ciências humanas poderiam criar linhas de pesquisa transdisciplinares que enfoquem a produção simbólica, e não apenas o desenvolvimento tecnológico em si.
O quarto desafio a ser enfrentado diz respeito à responsabilidade dos players da tecnologia em relação ao ecossistema musical. Na indústria fonográfica, a passagem do consumo de mídias físicas para o streaming (e a consolidação do Spotify) não considerou o impacto que a nova forma de remuneração por royalties de direitos autorais e conexos teria no pool de receitas dos compositores (ERIKSSON et al., 2019). O modelo de negócio pro-rata, as subscrições pagas por publicidade e o preço das assinaturas das plataformas foram pensados para o onboarding das pessoas a esse modelo, e não visando à sua sustentabilidade para as classes criativas. Os novos usos das tecnologias e as novas propostas de governança têm que necessariamente envolver artistas e seus ecossistemas enquanto stakeholders, no sentido de que a produção cultural é um bem público. Plataformas não podem usar a produção cultural apenas como commodity ou como instrumento a serviço da publicidade on-line, caso contrário, os erros da web 2.0 serão repetidos. Governança descentralizada, com diversos stakeholders, não significa que o modelo de negócio das big techs será inviabilizado. Significa apenas reconhecer que há vários interesses e direitos em jogo, e que uma governança multilateral, com responsabilidades compartilhadas, pode ser boa para todo o ecossistema. É necessário apenas chegar a bons termos, o que pode ser atingido com a mediação qualificada de políticas culturais para as tecnologias (GHEZZI; IDEA, 2021). A responsabilidade de se chegar a um sistema mais transparente e justo não deveria ser só dos artistas, mas também das indústrias culturais e das políticas públicas.
Finalmente, o quinto desafio está relacionado com escalabilidade. Um novo ecossistema digital, centrado na governança descentralizada e na propriedade das identidades, requer adoção em massa para que seus benefícios possam ser usufruídos por todo o ecossistema. Embora deva haver a convivência dos modelos web 2.0 e web 3.0, sem escala na adoção, o primeiro deles vai prevalecer sobre as possibilidades do segundo. Nesse sentido, a plataforma que proporcionar um melhor processo de onboarding vai ter lugar central no mercado.
Como citar este artigo
GHEZZI, Daniela R. Música nas webs 2.0 e 3.0: do streaming aos tokens. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 35, 2023.
Daniela Ribas Ghezzi
Historiadora formada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestra e doutora em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em gestão e políticas culturais pela parceria entre a Universidade de Girona, na Espanha, e o Observatório Itaú Cultural. Foi consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Mercosul Cultural, além de pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Presta consultoria para instituições como o Centre National de la Musique (CNM), da França, e o Ministério de Cultura e Juventude da Costa Rica. É diretora da Sonar Cultural e professora de music business em diversas instituições e iniciativas.
Referências
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CHIOCCARELLO, Rafael. A “era do artista influencer” e suas consequências na música independente. Hits Perdidos, 3 dez. 2020. Disponível em: https://hitsperdidos.com/2020/12/03/a-era-do-artista-influencer-musica-independente/. Acesso em: 29 out. 2022.
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GHEZZI, Daniela Ribas. Música em transe: o momento crítico da emergência da MPB (1958-1968). 2011. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/Acervo/Detalhe/787379. Acesso em: 29 out. 2022.
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ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução: George Schlesinger. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2021.
[1] Costuma-se dizer que a web 1.0 era a internet estática e sem interatividade do início dos anos 1990, em que o login em plataformas e serviços exigia um nome de usuário e uma senha para cada serviço. Já a web 2.0 é o momento seguinte da internet, em que o acesso se dá principalmente por aplicativos de grandes corporações que controlam o tráfego na rede e os dados de navegação dos internautas, sendo que o login em qualquer plataforma pode ser feito usando o perfil do usuário nessas corporações (Google, Facebook etc.). Esse é o modelo atual da internet, muito suscetível às recomendações algorítmicas realizadas a partir da captura de dados de tráfego. Voltaremos ao assunto mais adiante.
[2] Empresas de tecnologia geralmente localizadas no Vale do Silício, nos Estados Unidos, que criaram serviços inovadores apoiadas em um modelo de negócios escalável, dinâmico e ágil. Também são conhecidas como as big five: Apple, Amazon, Alphabet (controladora do Google), Microsoft e Facebook (agora Meta).
[3] Segundo estatísticas do grupo Meta, o Instagram atingiu 2 bilhões de contas ativas mensais em todo o mundo, diminuindo a distância em relação ao Facebook, do mesmo grupo, que é a maior rede social do mundo, com 2,96 bilhões de usuários ativos mensais (MENDES, 2022). Segundo o relatório “Digital AdSpend 2021”, do IAB Brasil (associação que representa o mercado de publicidade digital no país), foram investidos 30,2 bilhões de reais em publicidade digital no Brasil entre 2020 e o primeiro semestre de 2021. O estudo também revela que mais da metade (54%) do total do investimento publicitário no mesmo período se destinou às plataformas de mídias sociais.
[4] A principal plataforma de streaming da atualidade é o Spotify, que globalmente tem 195 milhões de assinantes pagos e 456 milhões de usuários ativos mensais, número que combina usuários pagantes e usuários sustentados por anúncios (INGHAN, 2022).
[5] Em português, “gráfico social”, diagrama que ilustra as interconexões entre pessoas, grupos e organizações em uma rede social.
[6] Dados da International Federation of Phonograph Industry (IFPI) afirmam que o streaming foi responsável por 65% das receitas globais de música gravada em 2021, totalizando 16,9 bilhões de dólares (IFPI, 2022).
[7] Sobre os impactos da adoção do modelo de pagamento user-centric, ver: CENTRE NATIONAL DE LA MUSIQUE (CNM). Le CNM évalue l’impact d’un changement éventuel de mode de rémunération par les plateformes de streaming. CNM, Paris, 27 jan. 2021. Disponível em: https://cnm.fr/le-cnm-evalue-limpact-dun-changement-eventuel-de-mode-de-remuneration-par-les-plateformes-de-streaming/. Acesso em: 29 out. 2022.
[8] Pro-rata é sinônimo de rateio: tudo que é arrecadado é dividido entre todas as músicas que foram reproduzidas. Seria como colocar todos os pagamentos numa caixa, contabilizar todas as faixas reproduzidas em outra caixa e dividir a receita pelos plays, chegando-se então ao valor por play (ou per-play). O cálculo é refeito a cada mês de acordo com tudo o que foi pago e reproduzido, e por isso o valor por play não é fixo. As faixas mais tocadas são as que mais vão receber pagamentos em royalties, que abrigam, além da margem de 30% da plataforma, direitos autorais (cerca de 12%) e direitos conexos de produtores, intérpretes e músicos (cerca de 58%).
[9] Popularidade da faixa: número entre zero e cem atribuído a cada faixa de acordo com o seu nível de popularidade isoladamente no Spotify, sendo cem o mais popular. É calculada por algoritmo e baseada, na maior parte, no número total de reproduções que a faixa teve e quão recentes são essas reproduções. Todas as faixas da plataforma têm um número atribuído nesse intervalo, portanto, a popularidade não é um ranking, mas um índice calculado pela própria plataforma que leva em consideração o número de vezes que a faixa foi tocada e quando (músicas executadas com mais frequência hoje recebem valores maiores do que se fossem somente sucessos do passado) (SONAR CULTURAL; FIMS, 2021).
[10] Blockchain (“cadeia de blocos”, em tradução livre) é uma tecnologia utilizada para registros de transações na internet. O blockchain armazena informações de transações em lotes, chamados de blocos, organizados em uma rede distribuída. Esses blocos recebem uma espécie de impressão digital única – um código matemático chamado hash – e são interligados. A rede distribuída ou descentralizada favorece a validação da informação por toda a cadeia, e não por apenas um agente, o que contribui para a segurança do sistema. O conjunto de blocos se organiza em ordem cronológica, formando uma linha contínua, daí o termo chain, ou “corrente”. Desse modo, os registros de informações são protegidos por criptografia e conectados uns aos outros, não podendo ser alterados ou excluídos depois de sua verificação. Caso haja tentativa de alteração da informação contida nos blocos, a informação não é reescrita, é criada uma nova transação, que será analisada pela rede descentralizada e incluída em um novo bloco de informações após o bloco original. Dessa forma, é possível rastrear e auditar toda a sequência de informações, mas não é possível adulterá-la.
[12] Criptomoedas são qualquer forma de moeda digital/virtual que usa criptografia blockchain para garantir a realização e a verificação de transações.
[13] O relatório anual “Music in the air” é feito com base em cifras de arrecadação de direitos autorais, vendas de discos, números do streaming e receitas com shows, entre outras fontes de receita. Segundo o relatório de 2022, a previsão é que o mercado musical chegue a um faturamento de 131 bilhões de dólares em 2030, dos quais 40% (52,3 bilhões) seriam capturados apenas pela indústria fonográfica (streaming e venda de discos). No relatório anterior, de 2021, a previsão para a indústria fonográfica em 2030 era menor, de “apenas” 45 bilhões de dólares em receitas. Considerando que o relatório anual da IFPI computou receita de 26 bilhões de dólares em 2021, a previsão do Goldman Sachs para 2030 representa o dobro do faturamento atual dessa indústria. Segundo o banco, haverá um crescimento contínuo do mercado musical nos próximos oito anos, tornando-o atrativo para aportes oriundos de fundos de investimento. Tal potencial explicaria a recente onda de compra de catálogos musicais consagrados (os de Bob Dylan, por exemplo), e também a movimentação em torno da compra e venda de NFT. Contudo, a despeito de tais previsões otimistas, persistem problemas antigos que prejudicam a remuneração de artistas, como a falta de pagamento de direitos conexos a intérpretes e músicos acompanhantes no streaming; problemas na identificação de fonogramas e créditos retidos; e remuneração mais alta a autores no streaming (atualmente na casa dos 12%), entre outros.
[14] Uma DAO é mais uma aplicação da web 3.0, possível graças à posse da identidade digital em blockchain e à tokenização. Nesse caso, a DAO Water and Music, liderada por Cherie Hu, se organiza em torno do propósito comum de ser uma “rede de pesquisa e inteligência para o novo negócio da música. Nossa missão é tornar a indústria da música mais inovadora, cooperativa e transparente. Conseguimos isso por meio de uma abordagem social para a troca de conhecimento, construindo sistemas colaborativos para que profissionais da música criem, distribuam e discutam insights acionáveis e líderes do setor”. A governança das decisões é descentralizada e as responsabilidades são compartilhadas entre os membros: “Adotamos uma abordagem coletiva para operações e tomada de decisões, capacitando os membros de nossa comunidade a satisfazer suas próprias curiosidades inatas e buscar suas próprias agendas de aprendizado e projetos de pesquisa autodirigidos. Por meio desse processo, esperamos elevar a compreensão mais ampla de nossos membros sobre o cenário da indústria da música e equipá-los com as ferramentas e mentalidades para navegar com sucesso”. Disponível em: https://www.waterandmusic.com/start-here/. Acesso em: 19 maio 2023.
[22] A DAO Water and Music realizou traduções colaborativas de seus relatórios para o espanhol, mas ainda não para o português. Em espanhol, ver: WATER AND MUSIC. Informe $stream temporada 1. Water and Music, [s. d.]. Disponível em: https://stream.waterandmusic.com/s1-es/. Acesso em: 19 maio 2023.