Revista Observatório 33 | Ensaios de Fruição com o Grupo Magiluth: relato de uma experiência qualitativa de pesquisa-ação de mediação e criação artística, por Julia Fontes e Maria Carolina Vasconcelos Oliveira
As pesquisadoras, a partir de prática qualitativa de avaliação e análise, investigam as experiências de artes cênicas, de modo a aproximar mais o público dos processos de criação e investigação de fruição
Publicado em 12/09/2022
Atualizado às 16:15 de 07/12/2022
por Júlia Fontes e Maria Carolina Vasconcelos Oliveira
“[A emancipação] começa quando abrimos mão da oposição entre olhar e agir e entendemos que a partilha do visível é, em si, algo que faz parte da configuração da dominação e da sujeição. A emancipação começa quando percebemos que o olhar é também uma ação [uma prática ativa] que confirma ou modifica essa partilha, e que 'interpretar o mundo' já é, em si, um meio de transformá-lo e reconfigurá-lo. O espectador é ativo, assim como o estudante ou o cientista: ele observa, seleciona, compara, interpreta. Ele conecta o que vê com muitas outras coisas que já viu em outros palcos e em outros tipos de espaço.”
(Jacques Rancière, 2007, tradução nossa)
Apresentação
Ensaios de fruição é um programa conduzido pelo Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural (IC) que tem como objetivo aproximar espectadores dos processos de criação de espetáculos, abrindo a sala de ensaio – o que vem sendo feito a partir de diferentes metodologias.
Entre setembro e outubro de 2021, durante o isolamento imposto pela pandemia de covid-19, o Núcleo de Artes Cênicas propôs uma edição do programa para acompanhar o trabalho do Grupo Magiluth, do Recife, formado por ex-alunos da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), e que atua de modo bastante autoral dentro da cena contemporânea de teatro de grupo. Naquele período, eles estavam elaborando um trabalho sobre o poeta Miró da Muribeca.
Para essa edição, nós – Júlia Fontes e Maria Carolina Oliveira, pesquisadoras, arte-educadoras e realizadoras cênicas – fomos convidadas para conduzir uma prática qualitativa de avaliação/análise da experiência vivenciada pelos espectadores que acompanhariam virtualmente alguns dos ensaios do Grupo Magiluth.
Propusemos que essa atividade fosse expandida como um experimento que, ao mesmo tempo, i) captasse a experiência como pesquisa, mas também sugerindo um caminho de mediação em si – enunciando caminhos possíveis para a própria construção de sentidos sobre a experiência artística –; e ii) estivesse alinhado aos procedimentos utilizados no próprio processo de criação do grupo de teatro. Dessa maneira, o projeto foi desenhado na forma de uma pesquisa-ação, ou pesquisa-projeto de mediação, já que o que estava em jogo era menos a pretensão de captar informações sobre a experiência dos participantes de forma supostamente neutra, objetiva e distanciada, e mais a proposta de partilhar ferramentas e caminhos para que eles construíssem formulações sobre suas experiências – o que, em si e por si, qualifica o exercício de construção e expressão de percepções. Ainda assim, por um lado mais objetivo, o projeto resultou em depoimentos e registros de percepção dos participantes sobre a experiência que não só consistem em material para uma análise qualitativa do programa, mas também geram insights para refletirmos sobre o tema dos processos artístico-pedagógicos de forma mais ampla, assim como para dialogarmos com a literatura já produzida, cumprindo também o papel de pesquisa.
Como buscaremos mostrar no item a seguir, a metodologia do projeto foi pensada de forma a assumir e valorizar algumas zonas de fricção: não somente entre pesquisa e ação, mas também entre espectadores e criadores, e entre processos de fruição e de criação. Essa escolha decorre das nossas próprias trajetórias de práticas e estudos sobre mediação artística e processos artístico-pedagógicos. A metodologia do projeto foi pensada de forma a assumir e valorizar algumas zonas de fricção: não somente entre pesquisa e ação, mas também entre espectadores e criadores, e entre processos de fruição e de criação.
A metodologia do projeto foi pensada de forma a assumir e valorizar algumas zonas de fricção: não somente entre pesquisa e ação, mas também entre espectadores e criadores, e entre processos de fruição e de criação
Os participantes do experimento, um grupo de cinco pessoas selecionadas pelo Núcleo de Artes Cênicas do IC, contemplavam distintas regiões do Brasil, ocupações e faixas etárias. Esses espectadores-participantes já tinham tido a oportunidade de acompanhar outros processos de criação no âmbito do Ensaios de fruição, mas em experiências bastante diferentes em termos de proposta de encenação, de políticas e poéticas de construção de cena, e de mediação.
O Grupo Magiluth, em suas formas de fazer, pensar e ser teatro, flerta com práticas mais performativas e valoriza a poética do próprio processo de criação. Em seus trabalhos, o modo de fazer e a obra resultante estão profundamente entrelaçados, e muitas vezes a dramaturgia se desvela a partir de jogos, programas e encontros com pessoas, inclusive nas "fricções" com seus públicos. Isso estava alinhado às nossas próprias concepções sobre os processos artístico-pedagógicos, que entendemos como atos criativos em si, que incluem processos e dispositivos muito semelhantes aos da criação artística dita profissional. Por causa disso, propusemos um programa de práticas de mediação que serviram para experimentar e vivenciar alguns tipos de dispositivos utilizados pelos artistas na criação da obra – o que, em termos de processos artístico-pedagógicos, significaria partilhar os códigos. Além disso, essas práticas também consistiam, em si e por si, em práticas de construção de sentidos e de formulação da experiência sensível – ou seja, possibilitavam que os participantes formalizassem suas percepções sobre a experiência vivenciada (um processo de mediação), além de terem gerado material de registro para fins de pesquisa. Uma vez que o Grupo Magiluth enxerga nesses encontros substância para a elaboração teatral, os procedimentos ainda produziram insumos de criação para o próprio grupo.
O experimento aconteceu na forma de quatro encontros on-line com duas horas de duração cada, ocorridos em setembro de 2021. Na sala de ensaio virtual, estivemos reunidas com os cinco participantes, o Grupo Magiluth e integrantes da equipe do Núcleo de Artes Cênicas do IC. Além disso, foram realizadas discussões e propusemos algumas práticas por meio de um grupo de WhatsApp compartilhado com os espectadores-participantes. Por fim, fizemos uma entrevista em profundidade com cada um deles. O roteiro dos encontros dos espectadores-participantes com o Grupo Magiluth (as salas de ensaio) foi planejado previamente e validado pelos artistas, de modo que pudéssemos ter, além das suas apresentações de cenas e de jogos, um espaço para partilhas diversas e para a realização de algumas práticas artístico-pedagógicas.
Mapeando alguns territórios, especialmente nos campos da arte, da educação e da cultura, iniciamos este nosso mapa-cartografia-texto com uma síntese do trajeto que fizemos ao mediar a edição do Ensaios de fruição com o grupo recifense – experiência que resultará também em outra publicação, um caderno de processo a ser lançado ainda em 2022, com a nossa organização.
O evento foi composto da transversalidade de muitos processos, entre os quais destacamos três: o de criação teatral, sobre os versos e o universo de Miró da Muribeca; o artístico-pedagógico, ou de mediação artística, envolvendo os espectadores-participantes para os quais a sala de ensaio foi aberta; e o de pesquisa-ação, pelo qual esses foram estimulados a criar e a formalizar e expressar suas percepções sobre a experiência, gerando um material que alimentou o próprio processo de criação dos artistas.
Caminhos percorridos e instrumentos
A partir de uma ideia surgida numa das primeiras conversas com o Grupo Magiluth – ao falarem do seu processo e, especificamente, do começo de tudo –, propusemos a construção de cartografias afetivas individuais, em todos os encontros, como prática mais estruturante do experimento. Apostamos que seria uma boa maneira de capturar as percepções dos espectadores-participantes e também de ajudá-los a situar suas experiências. Buscamos, assim, investir na produção de uma obra processual que se relatasse por meio de recursos textuais, visuais e corporais.
O desenho de processos existenciais como mapas tem sido comumente usado como um modelo de organização por quem tem interesse em registrar caminhos de produção traçando o passo a passo de sua realização, como nos conhecidos mapas mentais. Diferentemente desses, a cartografia é considerada um registro em movimento por meio do qual, inclusive, é possível registrar as vivências e os seus afetos como paisagens psicossociais, como sugere a cartografia sentimental proposta por Suely Rolnik (2011). Pensando na investigação dos territórios menos ou nada palpáveis da vida, as cartografias sentimentais ou afetivas parecem cumprir melhor o papel de registro vivo dos processos humanos, pelas suas múltiplas possibilidades simbólicas e expressivas. Usando de nossa criatividade ao relacionar as geografias humanas às físicas, podemos imprimir alma aos nossos deslocamentos por meio de cores, texturas e formas expressas, tal qual a vida vivida nos faz sentir. No mais, os mapas e as cartografias servem não apenas de orientação para a localização do presente ou para o planejamento do futuro, mas também de documentação dos movimentos do passado. Se nos localizam, impulsionam e reconectam, ao revisitar mapas e cartografias, poderemos ser convocados a atualizar os caminhos, presentificando-os com os pés do agora, calçados com os aprendizados e as tantas fricções das trilhas já traçadas.
A escolha desse procedimento artístico-pedagógico costurou todos os encontros, sendo combinado às entrevistas individuais e às práticas de coleta e formulação de percepções menos racionalizadas (como escrita automática; tempestades de perguntas; criação de enunciado para construção e narração de uma experiência no entorno; construção de depoimentos coletivos baseada em livre associação; e formulações utilizadas pelo Grupo Magiluth para levantar material cênico). Nos exercícios cartográficos, buscamos refletir a experiência vivida durante os Ensaios de fruição no espaço de uma folha de papel, na qual foram marcadas as paradas, os trajetos e suas múltiplas percepções. Projetando o vivido na materialidade, o instrumento escolhido como registro foi também um facilitador da ampliação dessas percepções, ao se transformar em plataforma de diálogo entre cartografia e cartógrafo por meio da expressão, elaboração e comunicação de suas formas e dos conteúdos emergidos. Nessa prática, nós nos apoiamos em certos códigos cartográficos que faziam sentido para a questão artística que estava sendo trabalhada pelo grupo de teatro, tratando especialmente da relação entre centro e periferia, mas passando também pelas relações entre espaço e tempo, marcos geográficos e simbólicos, trajetos e derivas, memória e imaginação.
O trajeto percorrido nos quatro dias de encontro está descrito de forma mais objetiva na imagem a seguir, e foi pensado para contemplar o repertório e os objetivos dos processos de criação do Grupo Magiluth, dos espectadores-participantes e das mediadoras. Sabíamos como começar: apresentando-nos e trazendo notícias sobre o ponto de que estávamos partindo. Refletimos sobre planejar os ensaios mantendo uma qualidade viva e porosa diante dos fenômenos que pudessem mudar a nossa rota, mas insistindo num roteiro que nos servisse de bússola. As conversas prévias, tanto com os artistas quanto com os espectadores-participantes, foram definidoras para organizar os encontros de maneira a compartilhar os códigos comuns do processo e garantir espaço e voz para todas as pessoas.
O primeiro dia de ensaio seria dedicado aos começos, às devidas apresentações, ao iniciar da caminhada; no segundo e no quarto dia, o Grupo Magiluth mostrou o seu material cênico, dramatúrgico e audiovisual, antes e depois de receberem os insumos vindos desses encontros; entre o segundo e o terceiro dia, propusemos aos espectadores-participantes uma prática fora do ambiente controlado da sala virtual, elaborando um enunciado com inspiração em outros já utilizados pelo grupo de teatro, o que resultou numa pequena criação de cada um dos participantes; e, no quarto dia, além da última apreciação da cena realizada pelo Grupo Magiluth, houve também a finalização do processo, a partilha dos trajetos e uma apresentação breve dos mapas afetivos.
Alguns pontos de partida e justificativas
Para desenhar a abordagem posta em prática nesses Ensaios de fruição, partimos de ideias e conceitos que orientam nossas trajetórias como pesquisadoras e orientadoras de processos artístico-pedagógicos. Antes de tudo, trabalhamos com a ideia de que a fruição/experiência artística e as transformações que desencadeia ocorrem na zona de intersecção entre aquilo que se vê/experimenta e aquilo que se pode dizer/nomear, como proposto por Rancière (2007, 2007). Partimos ainda da prerrogativa de que essas duas capacidades ou potencialidades, a de vivenciar experiências sensíveis a partir do encontro com uma obra artística, e a de formular esse processo, não são inatas, ou seja, não se trata de um tipo de dom – como bem mostra a tradição da sociologia das práticas culturais iniciada por Pierre Bourdieu e seus colaboradores –, mas de habilidades que se aprimoram. Aqui, estamos numa zona de intersecção entre a sociologia da cultura e o próprio campo de estudos da arte-educação e das pedagogias artísticas. Podemos mencionar estudos produzidos por pesquisadores-artistas como Fayga Ostrower, que discute a importância da criação para desenvolver processos de elaboração e de comunicação entre os indivíduos.
Daí decorreram também duas posturas de partida: não hierarquizar as práticas artísticas mais legitimadas como superiores e, sobretudo, não enxergar essas expressões como monopólio das classes socialmente reconhecidas como artísticas – o que nos leva a observar que todo indivíduo tem potencial criativo e expressivo, que desenvolve de forma mais ou menos profunda de acordo com as ferramentas que lhe são apresentadas e com as oportunidades que tem de praticá-lo e aprimorá-lo. Essa abordagem é bastante alinhada à própria política do Grupo Magiluth, que também busca nas experiências cotidianas e no mundo ampliado – ou seja, não restrito à sala de ensaio nem às esferas de produção artística – os insumos para sua criação.
A compreensão da vivência da experiência e, sobretudo, da sua formulação como atos de criação em si, nos levou a propor caminhos e metodologias possíveis para esses processos. Utilizamos práticas que orientaram os participantes a formalizar suas percepções, acreditando também que a parte fundamental do processo de fruição artística tem a ver com as narrativas que criamos. Afinal, a formulação de percepções é um ato criativo, e que pressupõe um caminho que pode ser bastante semelhante ao da própria criação artística. Nos termos de Jorge Larrosa Bondía (2002), as palavras produzem sentido, criam realidades e funcionam como mecanismos de subjetivação das experiências. Essas práticas e esses caminhos que propusemos consistiam em programas para pequenas criações-depoimentos que envolviam palavras, mas também representações gráficas, corporais e audiovisuais.
Dessa forma, o projeto se definiu como uma pesquisa, na medida em que produzimos relatos e análises sobre a experiência dos participantes e insights sobre os processos de mediação. Ao mesmo tempo, foi também um projeto de mediação e um projeto artístico-pedagógico, já que os instrumentos utilizados para propor um caminho para a formulação dos participantes constituíam, em si, caminhos de criação.
Com isso, questionávamos também a concepção da pesquisa como algo que registra a percepção de determinada experiência a partir de fora, com um distanciamento às vezes apresentado até em termos de ruptura entre pesquisador e objeto. Vale apontar, pegando novamente carona com Rancière, que isso também tem a ver com certo tipo de partilha do saber que é, ao mesmo tempo, política e estética. O que propusemos para os encontros, ao contrário, não foi uma maneira passiva de captar os dados de uma experiência e analisar seus impactos, mas uma abordagem que assume sua capacidade de agenciamento na sua própria construção – o que, ao fim e ao cabo, talvez aconteça em todo e qualquer tipo de pesquisa, uma vez que os objetos e os dados, nas ciências humanas, são sempre construções; mas aqui optamos por assumir deliberadamente esse objetivo e pensar estratégias para trabalhá-lo. Portanto, os procedimentos propostos buscaram, ao menos em parte, constituir a própria experiência, já que estimularam a construção de narrativas sobre ela e sobre seus desdobramentos – o que, como apontamos, quando se trata de material sensível, é um ato de criação.
Portanto, os procedimentos propostos buscaram, ao menos em parte, constituir a própria experiência, já que estimularam a construção de narrativas sobre ela e sobre seus desdobramentos – o que, como apontamos, quando se trata de material sensível, é um ato de criação.
Partimos ainda da ideia, presente ao menos desde as vertentes artísticas modernas da virada para o século XX, de que não somente a obra final, mas sobretudo o seu processo de criação, são considerados experiências estéticas e políticas. Dessa forma, optamos por estimular a formulação de depoimentos e percepções por parte dos espectadores-participantes não somente por meio de entrevistas e dos grupos focais que ocorriam após a fruição, mas principalmente durante o próprio acompanhamento dos ensaios, como parte da experiência em si. Na prática, isso significa que, durante os ensaios abertos, destinamos um tempo para que os espectadores-participantes elaborassem material sobre o que estavam vivenciando, por meio de depoimentos diretos ou de jogos diversos, o que também não deixa de ser uma forma de criação.
Seguindo esse caminho, os procedimentos colocados em prática nos ensaios incluíram enunciados para a construção de autonarrativas e para a formulação de sensações e sentidos, mesclando-se ferramentas mais reconhecidas como científicas no campo da pesquisa em ciências sociais (como entrevistas e observação) com procedimentos de criação e de construção de experiências sensíveis mais frequentemente utilizados em processos artísticos ou artístico-pedagógicos. O quadro a seguir sintetiza as ideias fundamentais para o projeto de pesquisa-ação proposto.
3. A poeira levantada
A produção de arte e cultura reflete, ao mesmo tempo, épocas e processos de socialização específicos – os sujeitos, seus fazeres e seus códigos –, e também o estilo singular de quem a concebe como forma expressiva que comunica, elabora e propõe visões e intersecções de mundos. Se pudéssemos atribuir alguma utilidade primordial à arte e à cultura, talvez fosse a de nos tirar dos estreitos caminhos do que já está dado, concebido e formalizado. Instigando, assim, uma tradução do vivido expandida pelos sentidos, essas dimensões imaginativas e memoriais buscam conectar a forma e o conteúdo da experiência humana, configurando espaço e tempo pelas vias do sensível. Tanto o fazer artístico quanto o exercício de fruição envolvem processos de mediação específicos, já que neles estão implícitos processos de criação. Ao abordar esses processos pelo viés da arte-educação, Ana Mae Barbosa (2009) assume que, quando exercidas pela práxis libertária, as práticas artístico-pedagógicas promovem autonomia, aprendizagem e criticidade, combatendo a visão alienadora das intervenções com público fundadas em modelos padronizados, pouco reflexivos e menos participativos.
Como resultado dos procedimentos realizados – ou a poeira levantada –, formalizamos algumas habilidades que percebemos, por meio das práticas de coleta de depoimentos e das entrevistas, que foram aprendidas ou potencializadas ao longo do processo. De maneiras diferentes, as dez habilidades que entendemos como desdobramentos do projeto foram nomeadas pelos cinco participantes. Escolhemos destacá-las pelo fato de extrapolarem o objetivo restrito da formação de públicos: são aprendizados que favorecem uma formação mais ampla dos espectadores-criadores-indivíduos, uma formação cidadã, sensível e política, e não somente estética. Com esse horizonte mais largo, sugerimos que o desenvolvimento relacional, vinculativo, crítico e reflexivo dos espectadores-participantes foram habilidades fomentadas durante o Ensaios de fruição.
Desdobramentos: habilidades desenvolvidas e aprimoradas pelos participantes
Podemos tecer algumas considerações sobre o que expusemos na imagem. Primeiramente, a ideia de que essas habilidades não são dons, talentos ou inclinações, mas aprendizados que se adquirem e se aprimoram com a prática. É o caso do exercício de identificar, nomear e expressar percepções, sentimentos e pensamentos em relação a conteúdos artísticos/intelectuais, ou de formulação e expressão. Do mesmo modo é também o poder ser escutado, que desencadeia o sentimento de pertencimento e de autoestima, que retroalimentam, por sua vez, a própria capacidade de formular e expressar. Para além de habilidades associadas à fruição/expressão artística e cultural, são aprendizados que se utilizam em muitas outras situações de convívio social e político. Poder ser escutado é um estímulo positivo que favorece também a prática da escuta dos outros, outra habilidade que pode ser aprimorada ao longo da vida. E, associadas, essas duas práticas ampliam a sensação de ser parte e de conectar-se a um todo, seja ele uma comunidade, um grupo ou um microcosmo qualquer. São essas as bases de uma abertura para novas perspectivas e novos olhares, o que desencadeia uma ampliação de repertórios que, novamente, são estéticos e também culturais e políticos.
Ademais, a vivência artístico-pedagógica conduzida no Ensaios de fruição junto ao Grupo Magiluth, num sentido mais estrito, potencializa o exercício da capacidade poética, algo que também se aprimora e se pratica, mais uma vez contrariando as ideias românticas de que seja uma espécie de dom. Treinar o olhar para enxergar poesia no cotidiano, nas frestas mais improváveis ou no convívio com o outro é algo que certamente favorece a criação e a fruição artística, mas que também desenvolve uma habilidade fundamental para a vida social e política: a de criar narrativas, sentidos, ficções e memórias. Ou seja, a habilidade de intervir na realidade, de imaginar futuros possíveis. Vislumbrar, transformar e acreditar são práticas que não podem estar restritas a grupos sociais específicos.
Meu Deus, que coisa mais linda, eu nunca pensei no que [as outras] pessoas estão olhando e enxergando! E eu não estou enxergando do jeito que elas enxergam, mas eu enxergo do meu jeito! Então, isso foi abrindo a minha mentalidade, os meus sentimentos, a minha observação, para captar a essência das coisas, da linguagem teatral. Lindo! Eu tenho muito a agradecer a vocês, sabe, que ampliaram a minha compreensão, a minha visão nesses dias. Foi muito aprendizado (Depoimento de um participante do Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth).
Consideramos que um marco importante dessa experiência foi o fato de ter acontecido on-line, durante o segundo ano da pandemia de covid-19, quando muitos dos participantes já estavam de alguma maneira habituados à fruição nesse formato, embora ainda como espectadores "clássicos”. O aumento do uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC) na produção de arte e cultura, assim como o crescimento do acesso da população à internet e o desenvolvimento de novas estratégias de interação para fins artísticos e pedagógicos, tende a abrir novas possibilidades também para o tema específico dos processos de mediação. Nesse Ensaios de fruição, contamos com duas plataformas de interação cujo uso já é relativamente disseminado, o Zoom e o WhatsApp. Por se tratar de um grupo relativamente pequeno, com exceção das poucas falhas de conexão de internet e das necessidades pontuais de orientação para a ativação da câmera e do microfone, não foram encontradas grandes dificuldades na condução das atividades no meio virtual.
Se, de um lado, tivemos de abrir mão de algumas práticas de trabalho em grupo por exigirem a presença num mesmo tempo-espaço, a realização do projeto no ambiente on-line possibilitou o encontro, por um período relativamente longo (ao todo, o grupo permaneceu mobilizado por cerca de um mês), de pessoas sediadas em diferentes localidades do Brasil, como Recife, São Paulo, Belém do Pará, Rio Branco e Rio de Janeiro. Um projeto nesse formato em modalidade presencial provavelmente seria inviável, em razão dos custos ou mesmo da disponibilidade dos participantes, já que envolveria necessariamente deslocamentos longos dentro do país. Sair do lugar comum, do conhecido, do esperado e de um perfil determinado de pessoas é algo que promove encontros e aprendizados humanos importantes. A sensação de ser quase um estrangeiro fazendo viagens – mesmo que virtuais – pelo Brasil afora gerou curiosidade e motivação entre os participantes. Além disso, em um país enorme e diverso como o nosso, possibilidades como essa apontam para novas perspectivas de encontros e de trocas.A manutenção do contato entre os participantes também parece ter se dado de uma forma mais sistemática do que costuma ocorrer nas trocas presenciais. Para além dos encontros síncronos pelo Zoom, o contato contínuo possibilitado principalmente pelo grupo criado no WhatsApp desencadeou uma série de trocas de percepções.
Como argumentamos na publicação resultante do projeto, o CadernoEnsaios de fruição [e outras frições], cada constelação de grupo se desdobra num microcosmo específico, no qual é possível construir um espaço de segurança para partilhar códigos comuns e também revelar singularidades. Quando o grupo percorre um caminho junto, seus participantes vão se apropriando daquela atmosfera, encontrando um ritmo próprio e uníssono, se motivando e se estimulando mutuamente, e construindo saberes que emergem desse encontro único. É uma alma grupal, um pacto coletivo de criação que se instaura e que produz seus próprios insumos. Na vivência on-line, essa rede se dá à sua própria maneira, com seus próprios tempos, com outros mecanismos de conectividade e novas possibilidades de vinculação e afeto.
Por fim, mas não menos importante, todos os participantes relataram a importância de vivenciar algo tão significativo no contexto da pandemia. Após quase dois anos de isolamento e de falta de presença, para muitos, essa experiência possibilitou uma qualidade de conexão singular, promovendo uma ponte firme de vínculo e motivação – prova disso é que o grupo permanece ativo e conectado até os dias de hoje, passados quase oito meses do momento em que se deram os encontros.
Dialogar com um grupo de pessoas que não conheço, participar de um processo de criação, pesquisa e construção de novos saberes, trouxe para mim o vigor de estar na ativa sem julgamentos e com estado de atenção e disposição para participar de um projeto. Neste sistema virtual no qual estamos desde o início da pandemia, tenho constatado como foram poucas as vezes que consegui estar assim, inspirada e sentindo-me como parte de algo. A dificuldade de construir vínculo nesse espaço é para mim uma complexidade de variados aspectos, pois não se trata apenas de acessar o link e entrar na sala virtual, mas de lidar com instabilidades de conexão de internet e de pessoas. No meu ponto de vista, um dos aspectos que auxiliam na construção de vínculo, seja no on-line ou no presencial, é o planejamento, essa elaboração faz toda a diferença tanto para quem propõe como para quem está ali para assistir/participar. A proximidade que a internet nos propõe convive com o distanciamento mensurável e imensurável, dessa forma, assim como no modo presencial, precisamos nos programar para estar presentes (Depoimento de uma participante do Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth). Parece que a gente está com saudades da vida. A vida não é só um ponto de vista, ela acontece (Depoimento de um participante do Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth).
Parece que a gente está com saudades da vida. A vida não é só um ponto de vista, ela acontece (Depoimento de um participante do Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth)
Uma última consideração diz respeito às estratégias de mensuração e apreensão de processos de mediação artístico-culturais e artístico-pedagógicos. Pontuamos, novamente, a importância de refletirmos sobre instrumentos de pesquisa/apreensão da experiência que se atentem para o fato de que os processos de fruição e criação ocorrem na zona de intersecção entre aquilo que se vivencia na esfera do sensível e aquilo que se pode formular/sistematizar dessas vivências, de modo que esses processos de formulação já envolvem processos de mediação. Assim, a construção de instrumentos de pesquisa que possam ajudar a compreender as diferentes etapas desse processo – somadas, ainda, à etapa de poder prestar um depoimento ao pesquisador, o que envolve ainda outros processos de mediação – é uma tarefa bastante instigante. Além disso, consideramos fundamental ter em mente que, se qualquer tipo de pesquisa em ciências humanas (e sobretudo as de natureza qualitativa) possui certa capacidade de agência no sentido de influenciar as formulações que o informante constrói do objeto/tema pesquisado, isso ocorre de maneira ainda mais intensa quando o assunto é a fruição e a criação. Pensando em projetos como o Ensaios de fruição, que tem a intenção de gerar transformações, e não somente de compreender processos (menos ainda de compreendê-los a partir de um lugar de suposta neutralidade), essa sobreposição pode ser aproveitada como uma potencialidade, sobretudo se for assumida como estratégica e se nos dispusermos a pensar em instrumentos de pesquisa que, em si mesmos, organizem caminhos para a elaboração de sentidos e de narrativas.
Como citar
FONTES, Júlia; VASCONCELOS OLIVEIRA, Maria Carolina. Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth: relato de uma experiência qualitativa de pesquisa-ação de mediação e de criação artística. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. Doi: https://www.doi.org/10.53343/100521.33-9
Júlia Fontes é artista da cena, arte-educadora, arteterapeuta e pesquisadora de tendências em comportamento e consumo. Atua com indivíduos, grupos e instituições facilitando processos de criação para o desenvolvimento humano com o objetivo artístico, pedagógico e/ou terapêutico.
Maria Carolina Vasconcelos Oliveira é artista circense, docente e pesquisadora em cultura e artes, com pós-doutorado em andamento no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA/Unesp). Integra o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o Instituto Cultura e Democracia.
Referências bibliográficas
BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão (org.). Arte/educação como mediação cultural e social. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira da Educação. Rio de Janeiro: Anped, n. 19, jan.-abr. 2002.
BOURDIEU, Pierre. A distinção. Crítica social do julgamento. Tradução: Daniela Kern; Guilherme J.F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007 [1979].
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alan. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público.São Paulo: Edusp, 2003 [1969].
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.
RANCIÈRE, Jacques. The emancipated spectator. Artforum, Nova York, v. 45, n. 7, mar. 2007.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011.
VASCONCELOS OLIVEIRA, Maria Carolina; FONTES, Júlia (org.). Ensaios de fruição [e outras fricções].São Paulo: Itaú Cultural. No prelo.