Revista Observatório 33 | Relative Values: apreendendo o valor da cultura, por Gustavo Möller, Karina Ruíz, Leandro Valiati, Natália Nunes Aguiar e Paul Heritage
Nesse artigo é apresentado Relative Values, metodologia proposta pelo People’s Palace Projects, a relação entre os objetivos do trabalho e a importância do seu caráter colaborativo, reforçado a cada edição
Publicado em 12/09/2022
Atualizado às 16:14 de 07/12/2022
por Gustavo Möller, Karina Ruíz, Leandro Valiati, Natália Nunes Aguiar e Paul Heritage
Resumo: O artigo apresenta a relative values, metodologia proposta pelo People’s Palace Projects, centro de pesquisa em artes com sede em Londres. Explicitam-se a relação entre os objetivos do trabalho e a importância do seu caráter colaborativo, reforçado a cada edição. Além de um breve histórico e de alguns dos resultados verificados, são apresentados os instrumentos que estruturam a metodologia e garantem sua multidimensionalidade, utilizada para evidenciar os diferentes impactos socioeconômicos das atividades artísticas e culturais analisadas.
Qual é o valor da cultura? Além das convencionais, quais medidas podemos utilizar para expressar o valor das artes e da cultura que sejam capazes também de evidenciar o impacto dessas sobre o desenvolvimento social? Nesse sentido, que histórias as organizações artísticas e culturais podem e desejam compartilhar sobre o valor de seu trabalho? Essas foram nossas principais inquietações para propor uma metodologia multidimensional de mensuração do valor da cultura em diferentes contextos, que chamamos de relative values, para dar a ideia de que o valor nunca é intrínseco, mas sempre referente às relações humanas.
que sejam capazes também de evidenciar o impacto dessas sobre o desenvolvimento social?
Como David Throsby (2001), entendemos que o valor não é estático, e sim algo definido por meio de trocas e relações sociais. Nossa proposta, contudo, utiliza uma outra lente para pensar o valor cultural e buscar compreender como as artes e a cultura fazem a diferença para as pessoas. Com a metodologia relative values, analisamos o valor cultural a partir da perspectiva daqueles que se engajam em atividades artísticas e culturais nos mais diferentes contextos.
Em conjunto com organizações culturais, a metodologia desenvolve instrumentos analíticos capazes de evidenciar os diferentes impactos socioeconômicos de atividades artísticas e culturais. O objetivo é propor métricas que expressem o valor das artes e da cultura para além de contribuições monetárias, sem, contudo, desconsiderar sua dimensão econômica. Além disso, o caráter colaborativo é central nessa metodologia. Por um lado, trabalhar junto às organizações em todas as etapas da pesquisa contribui para o desenvolvimento de instrumentos de análise válidos. Por outro, entendemos que uma dinâmica horizontalizada de condução da pesquisa democratiza o processo e permite que se estabeleça uma cultura de pesquisa por meio do estímulo e da ativação das capacidades analíticas dos agentes criativos parceiros.
Compreender métodos de pesquisa e saber coletar dados que demonstrem o valor do trabalho criativo é essencial para que as próprias organizações culturais possam identificar, avaliar e divulgar o impacto socioeconômico de sua atuação. Com isso, podem aprimorar e reforçar essa atuação, bem como ter bases sólidas que subsidiem o diálogo e a articulação com suas comunidades e com demais agentes culturais, instituições, tomadores de decisões e atores relevantes para suas práticas.
Breve histórico
A primeira aplicação da metodologia ocorreu em 2016 e 2017, com o projeto“Relative values I”. Na ocasião, buscamos investigar o impacto de organizações artísticas que atuam em territórios urbanos socioeconomicamente vulneráveis do Brasil e do Reino Unido. Para isso, firmamos uma parceria com quatro organizações: a Agência de Redes para Juventude e o Centro de Artes da Maré, do Rio de Janeiro (RJ), o Battersea Arts Centre, de Londres, e o Contact Theatre, de Manchester (Inglaterra).
Posteriormente, adaptamos a metodologia para que pudesse ser aplicada por artistas e produtores culturais, e não apenas por grandes organizações. Por meio de uma parceria com a Redes da Maré e a Agência de Redes para Juventude, em 2019, iniciamos o projeto “Beyond exchange (relative values II)”. Essa edição da pesquisa consistiu em um programa de aprendizado compartilhado envolvendo jovens atuantes em projetos culturais e artísticos de periferias e favelas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
A terceira edição da pesquisa, realizada em parceria com o programa Rumos, do Itaú Cultural, aplicou a metodologia em colaboração com cinco projetos brasileiros: a Editora Gráfica Heliópolis, o Grupo Ninho de Teatro, o Hip-hop caboclo, o verdeVEZ e o Retratistas do morro. Com isso, o escopo da pesquisa foi ampliado para o nível nacional, tornando possível empregar a metodologia em novos contextos.
Finalmente, a mais recente aplicação compreendeu o projeto “Raízes de resiliência”, que, em parceria com o instituto Inhotim, estruturou uma rede de colaboração entre cinco organizações do Quadrilátero Ferrífero, de Minas Gerais: a Corporação Musical Banda São Sebastião, a Casa Quilombê, o Clube Osquindô, a Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade e o Grupo Atrás do Pano. Essa edição, especificamente, abordou as relações socioeconômicas entre as organizações participantes e seu público, seus membros e seu território/comunidade, de um lado; e, de outro, a atividade minerária, tão presente na região. Dessa forma, a temática da percepção de riscos potenciais ao patrimônio cultural da região também foi dimensionada. Em razão do contexto sanitário dos anos 2020 e 2021, também foi avaliado o impacto da atuação dessas organizações sobre a saúde mental de seu público e de seus membros, bem como os efeitos da suspensão de suas atividades.
Atualmente, uma nova parceria entre o People’s Palace Projects e o Rumos está em desenvolvimento. Procurando consolidar a transversalidade da metodologia, assim como seu potencial de promover informações comparáveis, a pesquisa em andamento abrange 19 projetos desenvolvidos em todo o Brasil. Transitando entre o geral e o específico, essa experiência tem trabalhado com um volume maior de dados e projetos, sem, entretanto, perder de vista as singularidades de cada experiência e contexto. Temos buscado minimizar as limitações e potencializar as vantagens tanto das análises mais gerais quanto das mais aprofundadas, combinando metodologias e lançando mão do conhecimento e das vivências dos nossos parceiros responsáveis pelos projetos envolvidos no estudo.
O valor da cultura: detalhando a metodologia relative values
Organizações culturais, por meio de seus projetos e de suas práticas criativas, tornam-se agentes capazes de afetar a realidade em que atuam. Entendemos que essas organizações e esses projetos podem ter efeitos positivos diretos ou indiretos sobre os indivíduos, os grupos sociais e os territórios com os quais interagem. Para captar esses diferentes impactos, propomos uma metodologia que combina métodos quantitativos e qualitativos por meio da construção de uma série de indicadores relativos ao desenvolvimento socioeconômico, à relação entre os indivíduos e sua comunidade, à autoconfiança, à democracia cultural, ao engajamento social e ao desenvolvimento de habilidades.
Indicadores são ferramentas analíticas que sistematizam informações variadas utilizando, para isso, códigos geralmente numéricos. Essas informações, que muitas vezes são conceitos abstratos, são organizadas como variáveis e compõem um banco de dados. Esse processo nos possibilita atribuir valor a essas informações, de maneira que nossos indicadores funcionem como medidas de um ou outro conceito. Por exemplo, indicadores do conceito “qualidade de vida” podem ser expressos por meio de taxas, de proporções ou de índices, calculados a partir de uma só variável ou de uma combinação de variáveis (JANNUZZI, 2001). Dessa forma, podemos gerar dados consistentes e comparáveis relativos ao valor do trabalho das organizações artísticas e ao seu impacto sobre o desenvolvimento social e econômico.
Indicadores são ferramentas analíticas que sistematizam informações variadas utilizando, para isso, códigos geralmente numéricos
Visando desenvolver indicadores válidos e coerentes, bem como procurando oferecer dados e análises para além dessas medidas, estruturamos nossa metodologia em três eixos interconectados, que variam de acordo com a fonte de evidências correspondente a cada um. O primeiro eixo abarca o contexto no qual os projetos parceiros atuam. Nesse sentido, fazemos uso de dados secundários para caracterizar os territórios onde os projetos são desenvolvidos. O segundo eixo, por sua vez, enfoca a atuação dos agentes criativose sua relação com as comunidades e o seu entorno. Dessa forma, buscamos acessar as trajetórias dessas pessoas e dos seus projetos, dando voz às suas narrativas e aos seus saberes. Para tanto, esta etapa aplica a metodologia qualitativa de pesquisa e conta com a condução de entrevistas em profundidade com os responsáveis pelos projetos.
Finalmente, o terceiro eixo volta-se para os impactos socioeconômicos dos projetos sobre o seu público e/ou sobre a rede de pessoas envolvida na sua estruturação. Para cumprir esse objetivo, fazemos uso da metodologia quantitativa de pesquisa, aplicando questionários estruturados a dezenas (e até centenas) de pessoas que possam ter sido impactadas pela atuação dos projetos analisados. Em conjunto com os agentes criativos responsáveis pelos projetos e as organizações parceiras, definimos seis linhas temáticas a serem abordadas nos questionários, para além das questões sociodemográficas (gênero, raça, escolaridade, renda e local de moradia), a saber:
I. acesso à cultura: partindo da compreensão de que os processos de democratização e dinamização cultural devem respeitar as práticas locais e suas referências, esta temática envolve indicadores relacionados às características dos participantes, à sua frequência de participação e à sua percepção sobre as atividades e práticas culturais realizadas;
II. redes de contato e convívio: temática relacionada aos impactos dos projetos sobre as relações sociais dos indivíduos, a geração de novas redes e a presença de artistas e de outros profissionais da cultura nessas redes;
III. autoconfiança: pelo caráter subjetivo da temática, esta linha mapeia a percepção dos indivíduos sobre si mesmos após a participação e/ou o contato com os projetos;
IV. identidade cultural: temática transversal aos projetos com os quais trabalhamos que analisa o impacto das atividades realizadas sobre as identidades e as memórias dos grupos sociais envolvidos;
V. vínculo com seu território e sua comunidade: considerando a conexão entre as ações culturais e os repertórios das comunidades em que ocorrem, esta temática mapeia os impactos dos projetos sobre a relação entre os indivíduos envolvidos e os territórios abarcados, como mudanças na sua sensação de pertencimento a esses lugares;
VI. engajamento social: avalia como – ou se – os projetos fomentaram reflexões de cunho político-social e ações propositivas por parte dos colaboradores.
Dessa forma, a pesquisa cobre uma gama de aspectos sociais e econômicos que podem ser afetados pelo envolvimento entre as pessoas entrevistadas e as organizações e os projetos culturais e artísticos analisados. Temos percebido que o vínculo com esses projetos promove o desenvolvimento de novas habilidades ligadas às artes e à criatividade, além de ampliar o contato das pessoas com várias formas de manifestação cultural. Nesse sentido, os indivíduos também expandem suas redes de relações sociais e profissionais, encontrando no campo cultural novas alternativas de atuação profissional. Além disso, esse público tem manifestado sentir-se mais confiante para desenvolver variadas atividades profissionais, sociais, educativas, culturais e políticas. Outro tipo de impacto recorrente é o estabelecimento ou o reforço da conexão entre essas pessoas e as práticas culturais de suas comunidades e de seus territórios – o que muitas vezes estimula seu engajamento em ações que tenham como foco esses lugares.
buscamos acessar as trajetórias dessas pessoas e dos seus projetos, dando voz às suas narrativas e aos seus saberes.
Muitos desses resultados são antecipadamente percebidos pelos agentes criativos, que estão em contínuo envolvimento com o público afetado por seu trabalho. A pesquisa cumpre, então, o papel de levantar os dados que evidenciam esses resultados. Assim, mais do que intuídas, essas informações podem ser acessadas e compartilhadas. Isso é relevante tanto para a dinâmica interna das organizações, que têm uma base para se planejar e identificar suas fragilidades e qualidades, quanto para as suas relações externas com potenciais investidores, com o poder público e com seus pares. Demais resultados, ainda que não antecipados, também informam e embasam o funcionamento desses projetos, afetando essas mesmas dinâmicas.
O mais importante, podemos dizer, é que o envolvimento e a prática com a pesquisa se mantêm, deixando um legado de experiências e de conhecimentos que servirão para futuros empreendimentos dos colaboradores. A partir de uma abordagem de pesquisa inclusiva, além de promover trocas de aprendizagem entre a nossa equipe e os agentes criativos, conseguimos promover também suas vozes e suas próprias narrativas sobre si e seu trabalho. A criação de redes entre os participantes e a linguagem comum adquirida ao apresentarem seus projetos durante as sessões de treinamento estimulam também um sentido de unidade no desenvolvimento das avaliações.
Compreender o valor da cultura: um desafio constante
Pesquisar é um ato de percepção, mas também de expressão. Nesse sentido, nós nos comprometemos com o desafio de propor novas abordagens às avaliações de impacto das artes e da cultura, envolvendo diferentes perspectivas e trajetórias. Ao mesmo tempo, para compreender o valor multidimensional do trabalho criativo, é preciso ouvir e aprender com aqueles que fazem arte e que por ela são afetados. Por isso, propomos uma metodologia experimental, colaborativa e em constante desenvolvimento conjunto com as organizações e os projetos parceiros, a partir da qual fornecemos ferramentas para que esses agentes possam coletar e interpretar os dados relativos ao valor socioeconômico de seu trabalho.
Esperamos colaborar para a democratização da produção de conhecimento, essencial para amplificar as vozes daqueles que no dia a dia constroem e vivenciam as artes e a cultura.
Desde a sua elaboração, em 2016, a metodologia relative values tem permitido que nossos parceiros produzam evidências sobre os impactos de sua atuação, construindo narrativas diversas e significativas. No contexto da pandemia de covid-19, os dados da aplicação da metodologia no projeto “Raízes de resiliência”[1] indicaram que a atuação das organizações culturais tem um impacto positivo sobre a saúde mental das pessoas, e que a suspensão de suas atividades foi sentida pelo público. Esse tipo de evidência corrobora a importância da arte e da cultura e dá força e parâmetro para que as organizações continuem seu trabalho. Com isso, esperamos que nosso trabalho permita a disseminação de dados capazes de informar políticas públicas de fomento à arte e à cultura que reconheçam seu papel fundamental nas várias áreas da vida social. E, principalmente, esperamos colaborar para a democratização da produção de conhecimento, essencial para amplificar as vozes daqueles que no dia a dia constroem e vivenciam as artes e a cultura.
Como citar
MÖLLER, Gustavo. et al. Relative values: apreendendo o valor da cultura. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. Doi: https://www.doi.org/10.53343/100521.33-6
Gustavo Möller é bacharel em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre e doutorando em estudos estratégicos internacionais na mesma instituição. Atua como consultor na área de economia criativa e da cultura desde 2014. É assistente de pesquisa e gerente de projetos no People’s Palace Projects.
Karina Ruíz é bacharela em relações internacionais e mestra em políticas públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde 2017, atua como pesquisadora em economia criativa. É assistente de pesquisa no People's Palace Projects.
Leandro Valiati é economista e ph.D. em desenvolvimento econômico, com pós-doutorado em indústrias criativas pela Universidade Sorbonne Paris 13 (França). Atua como professor titular de indústrias criativas e economia da cultura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e como professor visitante e pesquisador na Universidade Queen Mary de Londres (Reino Unido) e na Universidade Sorbonne Paris 13. É conselheiro, na área de indústrias culturais e criativas, do Ministério da Cultura (MinC), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da Organização de Estados Ibero-Americanos (OEI). Criou o Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura da UFRGS (Neccult/UFRGS), tendo liderado, por quatro anos, 6 acordos internacionais (Brasil-Europa), 20 projetos de pesquisa em larga escala e 7 conferências internacionais.
Natália Nunes Aguiar é bacharela em ciências sociais pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestra e doutoranda em ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua como pesquisadora no People’s Palace Projects.
Paul Heritage é professor de teatro e artes performáticas na Queen Mary University of London e diretor do People's Palace Projects. Entre 1992 e 2005, criou uma série de programas de arte em prisões de 12 estados do Brasil e dirigiu produções de William Shakespeare com alguns dos principais atores do país. Desde 2006, tem estabelecido colaborações de pesquisa e intercâmbio cultural entre organizações artísticas do Reino Unido e do Brasil. Em 2004, foi condecorado com a Ordem de Rio Branco por seus serviços à cultura brasileira.
Referências bibliográficas
JANNUZZI, Paulo de Martino. Indicadores sociais no Brasil. Campinas: Alínea, 2001.
THROSBY, David. Economics and culture. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.