Revista Observatório 32 | Desigualdades raciais no setor criativo
Este artigo ressalta a importância da análise de dados quantitativos com desagregação racial no setor criativo brasileiro, caracterizado por uma grande desigualdade racial
Publicado em 14/06/2022
Atualizado às 10:10 de 15/08/2022
por Larissa Couto da Silva e Marcelo Henrique Romano Tragtenberg
Resumo: Este artigo ressalta a importância da análise de dados quantitativos com desagregação racial no setor criativo brasileiro, caracterizado por uma grande desigualdade racial. Os indicadores de renda e de formalidade no trabalho criativo são abordados com recorte racial e exemplificam esse panorama de desequilíbrio.
O Brasil é um país com enormes desigualdades econômicas, isso é unânime entre pesquisadores e leigos. Em 2020, a renda de 1% da população mais rica no país era semelhante à dos 50% mais pobres.[1] Usando o índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, em 2019, o Brasil era o nono país com maior concentração de renda do mundo[2] os 193 países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU). No mesmo ano, as 15 famílias mais ricas do país tinham[3] um patrimônio que valia cerca de 13 vezes a renda de 14 milhões de famílias beneficiárias do Bolsa Família, programa de transferência de renda recentemente extinto.
Durante muito tempo, no entanto, o profundo contraste entre brancos e negros (pretos e pardos) era desconhecido de grande parcela da população. Desde a década de 1930, o movimento negro (em particular, a Frente Negra Brasileira) vem denunciando esse desequilíbrio. Nas décadas de 1940 e 1950, isso se deu também por meio do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias Nascimento – que, eleito deputado federal em 1983, chegou a propor um projeto de lei contendo ações afirmativas para negros.[4] A partir dos anos 1970, estudos quantitativos tornaram pública essa desigualdade racial: o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg, por exemplo, demonstrou o papel central da discriminação na reprodução dessa iniquidade em tese de doutorado pela Universidade da Califórnia (UCLA), nos Estados Unidos, publicada em 1979. Paralelamente, em 1978, o Movimento Negro Unificado havia ressignificado a categoria “negro” com o agrupamento de pretos e pardos, grupos com indicadores sociais próximos.
Mais recentemente, nos anos 2000, Marcelo Paixão mostrou a abrangência dessa situação por meio de estudos e relatórios sobre a desigualdade racial no Brasil. Nessa mesma década, a discussão sobre a adoção de cotas para negros no ingresso no Ensino Superior trouxe de forma mais consistente a temática do racismo e suas consequências na criação da discrepância entre negros e brancos. Parte desse ocultamento pode ser explicado pela prevalência do mito da democracia racial e pelo sentimento de que, como afirmava o sociólogo Florestan Fernandes, “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito”.
O diagnóstico quantitativo dessa desigualdade é importantíssimo para desvelá-la. Por outro lado, a construção de indicadores pertinentes a esse recorte racial é um insumo fundamental para a elaboração e a avaliação de políticas públicas, além de fornecer um retrato da evolução das injustiças raciais no país. Com esse propósito, o artigo pretende discutir o recorte setorial para a avaliação de como as características estruturais do segmento cultural e criativo influenciam, acentuando ou atenuando, o processo de desigualdade racial. Para tanto, utiliza-se a definição do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural para agregar as ocupações pertencentes ao segmento criativo: são 57 reunidas em dez segmentos.[5]
Para fundamentar a discussão sobre a relevância do recorte de cor e raça na construção de indicadores quantitativos, este artigo foi estruturado em quatro seções, incluindo esta breve introdução. A segunda seção busca apresentar uma síntese argumentativa da importância da utilização desses indicadores e quais seriam seu potencial e suas limitações. A terceira mostra alguns indicadores próprios do setor cultural e criativo, explicitando a relevância do recorte de cor e raça para o debate da desigualdade e apresentando o panorama geral do setor sob essa desagregação. Por fim, as considerações finais estão sintetizadas na última seção do artigo.
A relevância do recorte de cor e raça na construção de indicadores quantitativos
Indicadores quantitativos são amplamente utilizados no campo das políticas públicas como mecanismo de fundamentação teórica para a promoção de políticas que visem à redução das desigualdades socioeconômicas. Nesse contexto, o recorte social por cor e raça,[6] há algum tempo, se tornou fundamental na construção de pesquisas e indicadores no Brasil, sendo recorrente o uso dessa desagregação nos estudos promovidos pelo IBGE. De acordo com um levantamento realizado pela instituição em 2019, o recorte racial se relaciona com as condições históricas do desenvolvimento brasileiro e as importantes diferenciações entre os grupos étnicos e raciais construídas ao longo do tempo. Desde o primeiro Censo demográfico, realizado em 1872, utiliza-se o recorte racial em pesquisas quantitativas (IBGE, 2011). Esse dado tem tanta importância que, durante parte do período da política de branqueamento (nos censos de 1900 e 1920) e no regime militar (censo de 1970), não foi recolhido.
Todavia tampouco são desprezíveis os avanços recentes conquistados no âmbito das políticas públicas voltadas para a redução da desigualdade socioeconômica, levando em consideração o fator racial como justificativa para a formulação das políticas e ações. Além do proposto pela própria Constituição de 1988, que reforça o componente antidiscriminatório das relações sociais e institui, inclusive, o racismo como crime inafiançável, outras conquistas recentes ocorreram no âmbito legal. Como destaque, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 2010) e a Lei de Cotas (Lei nº 12.711, de 2012), sendo esta última uma importante política de mobilidade social. Diretamente relacionados a isso estão asestatísticas e os indicadores quantitativos que revelam as vulnerabilidades sociais e raciais e que guiam a instituição de políticas públicas. Os resultados quantitativos são fundamentais para a percepção da influência do recorte de cor e raça na desigualdade social brasileira e necessários para a visualização das mudanças estruturais ocorridas ao longo do tempo.
Os reflexos da desigualdade socioeconômica: cor e raça como parâmetros das condições de trabalho no setor criativo brasileiro
A apresentação das estatísticas quantitativas reforça a importância da desagregação racial como um parâmetro nas pesquisas que investigam a realidade socioeconômica brasileira. Buscando ilustrar o mercado de trabalho do setor criativo[7] sob essa óptica, esta seção analisa alguns importantes indicadores desagregados pela classificação de cor e raça utilizada pelo IBGE. Conforme indicado pelo instituto (2019), a baixa representação de indígenas e amarelos na população brasileira dificulta a análise dos dados amostrais para esses grupos[8] e, por esse motivo, as informações serão apresentadas apenas para brancos, pardos e pretos, que constituem ampla maioria da população, além de 98% dos trabalhadores criativos em 2021.[9]
O Gráfico 1 revela a remuneração mensal média para brancos, pretos e pardos no quarto trimestre de cada ano. Ao longo do período de análise, há uma relativa estabilidade na remuneração de cada grupo, com quedas pontuais na dos brancos em 2013 e 2021. O ponto de destaque é a diferença nos salários de brancos e não brancos: ao longo da série, mantém-se um elevado patamar de discrepância entre os dois grupos, enquanto pardos e pretos conservam remunerações médias muito semelhantes. Essa é uma justificativa para unificar as categorias de pretos e pardos na categoria negro.
Outra forma de apresentar o nível da discrepância nos rendimentos de brancos, pretos e pardos é a partir da razão entre as remunerações médias, conforme a Tabela 1. Os dados mostram a porcentagem do salário de pardos e pretos em relação ao pagamento médio feito aos trabalhadores brancos. O ano de 2016 marca a menor razão da série, enquanto 2021 apresenta a maior, o que indica que este último período expõe maior convergência entre a remuneração de brancos e não brancos. Esse resultado, no entanto, foi motivado pela queda na remuneração média de brancos, e conserva ainda uma grande discrepância no padrão remuneratório por cor. Sobre as consequências da crise sanitária e financeira gerada pela pandemia de covid-19, observamos um impacto relativo maior nos proventos de pretos e pardos logo no início, conforme indica a queda substancial da razão entre 2019 e 2020.
À guisa de comparação, os negros apresentavam 57,5% da renda dos brancos na economia brasileira como um todo segundo a Pnad de 2018. A série histórica da Tabela 1 mostra que, de forma geral, a desigualdade de renda é maior no setor criativo do que na sociedade como um todo. O dado discrepante de 2021 merece um estudo mais cuidadoso.
Outros indicadores do mercado de trabalho também revelam uma maior vulnerabilidade social dos trabalhadores pardos e pretos. Em relação à formalidade,[10] em 2021, 64% dos trabalhadores brancos do setor criativo eram formais, índice que cai para 51% entre os pretos e apenas 46% entre os pardos. Ao longo da série histórica, essa condição teve flutuações, com a diferença relativa de formalidade variando entre 13 e 26 pontos porcentuais entre brancos e pretos, e entre 10 e 20 pontos porcentuais entre brancos e pardos.
além de uma média salarial inferior, as condições de seguridade social no mercado de trabalho também atendem em menor grau os trabalhadores pretos e pardos
Essa condição demonstra que, além de uma média salarial inferior, as condições de seguridade social no mercado de trabalho também atendem em menor grau os trabalhadores pretos e pardos. A Tabela 2 sumariza a relação de formalidade dos trabalhadores criativos entre 2015 e 2021. Destaca-se a tendência de aumento da formalidade entre trabalhadores pretos e pardos, movimento negativamente afetado pelo primeiro ano da pandemia. Outra tendência verificada é o aumento da informalidade no setor criativo de pretos em relação a pardos, com exceção do ano de 2021.
Podemos, à guisa de comparação, verificar a taxa de formalidade no conjunto da sociedade na Pnad contínua de 2018. Naquele ano, 65% dos brancos estavam em ocupações formais, enquanto entre os negros (pretos e pardos) essa relação era de 53%. De modo geral, a informalidade é maior no setor criativo.
Considerações finais
Este artigo se propôs analisar a importância da inclusão de desagregações raciais na construção de indicadores socioeconômicos. Debateu-se a necessidade de indicadores quantitativos para a implementação e a avaliação de políticas públicas, sendo importante a construção desses dados, portanto, na presença de vulnerabilidades sociais, a fim de atenuar as desigualdades. Partindo desse ponto, foi possível apresentar informações sobre o mercado de trabalho criativo e sua conjuntura desagregada por cor e raça. A renda média de pretos e pardos no período avaliado foi bem menor que a de brancos. A taxa de informalidade entre os brancos também foi sensivelmente maior que entre os pardos, e esta um pouco maior que entre os pretos. Verificou-se a existência de múltiplos indicadores que apontam a ausência de igualdade nas relações de trabalho entre brancos, pretos e pardos. As diferenças relativas no rendimento e na formalidade são persistentes ao longo da série histórica, e as pequenas variações positivas agregam resultados modestos para uma mudança no panorama geral de desigualdade persistente.
como citar este artigo
SILVA, Larissa Couto; TRAGTENBERG, Marcelo Henrique Romano. Desigualdades raciais no setor criativo. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. Disponível em: [url]. Acesso em: [data_atual]. DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.32/3
Larissa Couto da Silva é bacharela em ciências econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda em economia do desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Economia da instituição (PPGE/UFRGS). Atua como assistente de pesquisa no Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult) da UFRGS.
Marcelo Tragtenberg é doutor em Física pela Universidade de São Paulo, Professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina, membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (CEDRA).
Referências bibliográficas
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NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2016.
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PETRUCCELLI, José Luis. Raça, identidade, identificação: abordagem histórica conceitual. In: PETRUCCELLI, José Luis; SABOIA, Ana Lucia (org.). Características étnico-raciais da população: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013.
[1] Segundo dados da Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua (Pnad contínua) de 2020, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A multiplicação da renda média dos 50% mais pobres por 50 é igual à renda média do 1% mais rico. Leve-se em conta que a Pnad não captura rendimentos milionários ou grande patrimônio. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/ibge-metade-dos-mais-pobres-no-brasil-tem-renda-inferior-a-1-dos-mais-ricos/. Acesso em: 4 abr. 2022.
[5] Os segmentos incluem: publicidade e marketing; arquitetura; artesanato; design; filme, TV, vídeo, rádio e fotografia; TI, software e serviços de informática; editorial; museus, galerias e bibliotecas; música, artes cênicas e artes visuais; e gastronomia. Para consultar a listagem completa de ocupações, acesse: https://www.itaucultural.org.br/observatorio/paineldedados/pesquisa/trabalhadores-da-economia-criativa#. Acesso em: 26 maio 2022.
[6] Neste artigo, utiliza-se a nomenclatura proposta pelo IBGE de acordo com a Pnad contínua. Questionamentos e propostas acerca da nomenclatura e das definições utilizadas foram amplamente debatidos em diversos trabalhos, não sendo o foco do presente artigo. Para saber mais, ver: ARAUJO, 1987; OSORIO, 2013; IBGE, 2011; e PETRUCCELLI, 2013.
[7] O recorte setorial utilizado segue a metodologia do Observatório Itaú Cultural e pode ser consultado em seu Painel de Dados.
[8] Os dados apresentam alta variabilidade e possivelmente dificultam a consistência das análises.
[9] A saber: 59,9% brancos; 30,4% pardos; e 7,5% pretos.
[10] Foram considerados trabalhadores formais aqueles com carteira assinada, servidores públicos estatutários e pessoas jurídicas com CNPJ.