A fotógrafa Madalena Schwartz faria 100 anos neste dia 9 de outubro. Neste ensaio, o escritor João Silvério Trevisan homenageia a mulher que ele define como visionária
Publicado em 09/10/2021
Atualizado às 18:34 de 16/08/2022
Por João Silvério Trevisan
Na peça Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, a personagem Blanche Dubois, deslocada no mundo, entrega-se aos enfermeiros que vão levá-la num furgão para internamento manicomial e comenta, com pungente melancolia: “Eu sempre dependi da bondade de estranhos”. Essa cena inesquecível me ocorre a propósito de Madalena Schwartz, que eu conheci através do seu filho Jorge, quando moravam no Edifício Copan, em pleno centro da capital paulista. Acho que ela ainda mantinha sua lavanderia/tinturaria numa ruazinha próxima. Era uma mulher de baixa estatura, olhos apertados e brilhantes, detrás de óculos de grau, e um jeito peculiar de sorrir. Sem nunca perder o sotaque argentino, parecia oscilar entre o desejo de confiar e o receio de se entregar a estranhos, como se guardasse segredos inacessíveis a qualquer um. Acho que conheci suas fotos inicialmente através do próprio Jorge, em meados dos anos 1970. Ou talvez tenha sido no Lampião da esquina, jornal de que fui um dos editores.
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Diante daquela figura quase tímida, quase assustada, que só passou a se dedicar à fotografia após os 45 anos, eu não conseguia supor a capacidade visionária de captar climas paradoxais através da máquina fotográfica. À medida que conheci mais das suas fotos, essa percepção se ampliou – a ponto de continuar me instigando:
como era possível que uma senhora estrangeira de classe média, mãe de dois filhos e com costumes e vestes tão comedidos pudesse ocupar o posto profético de retratar uma época irretratável do Brasil, povoada de figuras avessas à banalidade, aparentemente distantes e até opostas ao estilo de vida dela?
Tanto quanto surpreendeu a mim, muita gente poderia suspeitar dessa capacidade de se comunicar com o Outro intrinsicamente diverso. Aos poucos, fui confirmando com surpresa crescente que aquela mulher em nada adequada aos padrões da maconha, do LSD, das roupas excêntricas e das noitadas devassas de fato estabelecera um canal de comunicação com personagens esdrúxulas em plena ditadura militar na qual vivíamos – chegando até a levá-las para o estúdio improvisado no seu apartamento. Acabei me dando conta de que havia uma coincidência nada sutil: essa mulher judia viera da Hungria, onde nazistas faziam experiências cruéis com prisioneiros de campos de extermínio. No passado de gente como Madalena ocultavam-se lembranças que podiam abalar qualquer primeira impressão mais óbvia. Um olhar superficial não conseguiria perceber o nervo da alma que, apesar de não exposto, latejava e doía. Tendo perdido parte da família no Holocausto perpetrado pelos nazistas, Madalena ganhou da vida esse nervo sensível ao humano em demasia. E isso a levou a se aproximar do que hoje chamaríamos de “cena queer”, povoada de figuras transgressoras aparentemente opostas ao seu estilo de vida.
Travestis, drag queens, homossexuais e personagens ambíguas abriam-se para as lentes dessa mulher com jeito de dona de casa, na cumplicidade de habitantes de um mesmo universo em que só cabia gente visionária. Não tenho dúvida de que o canal pelo qual transitava, em São Paulo, o povo da dissidência desejante se comunicava à perfeição com aquela selvageria que assombrava o passado húngaro de Madalena. Dois signos diferentes se encontravam em cada ponta – a do sujeito e a do objeto – para desabrochar em fotos que geravam sintomas semelhantes. Da beleza selvagem das margens à dor insuportável da barbárie, muito ficou registrado através dessa comunicação improvável.
Se, em relação ao Outro, Blanche Dubois reflete o lado da perplexidade, a face complementar me remete a outra personagem deslocada. Trata-se de Pearl do filme Interiores, injustamente esquecido no universo de Woody Allen. Em contraposição a Blanche, Pearl incorpora o Outro que chega de fora para salvar. Considerada simplória e cafona, ao cair de paraquedas numa família de intelectuais burgueses, Pearl ilumina, com sua riqueza humana, o universo sem esperança dessa gente. Talvez não haja coincidência no fato de Woody Allen também ser judeu. Estamos no mesmo universo diaspórico. Madalena Schwartz veio de fora da cena queer, que ela compreendeu e verteu com precisão porque conhecia o significado do não pertencimento, como mulher judia duas vezes exilada.
Se acolheu e foi acolhida pelas personagens de suas fotos, trata-se de uma solidariedade entre formas diversificadas de experiências de exílio.
Em tudo, resulta admirável o apelo que Madalena descobriu dentro de si para ser a intérprete legítima de pessoas que buscavam, através da invenção de si mesmas, sobreviver a um dos períodos mais sombrios da vida brasileira no século XX. Se essas figuras fora de foco adquirem identidades claras na imagem fixada em fotos, é porque a mulher de vida comum que as fotografou trazia dentro de si o mesmo estigma impresso na alma. Não por acaso, foi esse estigma-cicatriz que levou a estrangeira Madalena Schwartz a ocupar o posto de uma profetisa capaz de nos aproximar do enigma brasileiro.
João Silvério Trevisan é escritor de literatura ficcional e ensaística, tendo 12 livros publicados, entre ensaios, romances e contos. Por mais de 30 anos, vem coordenando oficinas de criação literária em todo o país. Ativista na área de direitos humanos, em 1978 fundou o Somos, primeiro grupo de liberação homossexual do Brasil, e em 1986 publicou Devassos no Paraíso, uma obra pioneira sobre a história da comunidade LGBT brasileira, hoje em 4ª edição atualizada. Atuou como assessor na exposição Madalena Schwartz: As metamorfoses - Travestis e transformistas na SP dos anos 70, que ficou em cartaz até setembro no Instituto Moreira Salles e segue agora para o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (MALBA).