O jornalista e curador de teatro Kil Abreu escreve sobre a segunda semana do Cena agora – humor: o riso como antídoto
Publicado em 30/09/2021
Atualizado às 17:45 de 17/08/2022
por Kil Abreu
Alguns dias depois da segunda semana de apresentações na mostra Cena agora – humor: o riso como antídoto, o Brasil viu, por graça do vazamento de algum traíra que sempre existe no meio da gente endinheirada, uma situação típica da grosseria de terno e gravata. Feita por um bobo da corte jovem, mas centenário (sim, eles são antigos), essa cena representa os que estão sempre de plantão para lamber as botas dos magnatas, entretendo a elite, que ri – dura, para não desengomar seus penteados cafonas – sempre que não se sente ameaçada. Porque é assim: a elite se diverte desde que esteja à vontade, desde que se sinta dona do jogo. Colunistas de semicelebridades, criminosos do colarinho branco, ex-presidentes golpistas, donos da mídia igualmente golpista, banqueiros mercenários, empresários cafajestes, todos aos risos com a imitação de um palhaço ruim, saído dos filmes de terror. Palhaço fake como tudo o que propaga, imitado por um humorista criado no arrivismo empreendedor, na servidão escolhida, na “otarice” rentável. Tudo em torno da grana que pode erguer, mas tem mais destruído do que construído coisas belas.
>> Também sobre Cena agora, acesse o texto de Fernando Pivotto
Essa introdução serve como comparativo a posteriori da raiz daninha das coisas brasileiras amainadas pelo riso fácil provocado por um profissional do humor. Ou, em outras palavras, serve para dizer que não há inocência no riso político e que os artistas que estão comprometidos com outro lado que não aquele têm de ter consciência disso. Então, evidentemente, já estamos pensando nas oito cenas apresentadas nesses dias. Os trabalhos (e, ufa, quanto trabalho, dava para ver!) se dividiram em pelo menos (é uma proposição, um esquema) dois grupos de videomontagens. O primeiro vou chamar, inspirado no que Alysson Lemos nos disse com sábio repertório e muita propriedade, de estética fuleiragem (“fulerage”, eu diria junto com ele, no português certo que a gente fala por ali). Experimentos urdidos na liberdade sem vergonha – como toda liberdade verdadeira –, em desobediências de linguagem que atravessam como peixeira afiada o caretismo conservador dos dias. E o segundo grupo, igualmente politizado, é porém mais próximo de, digamos, uma pedagogia pelo riso, inspirado na guerra de valores que vivemos. E entre os dois grupos está a cena do Cirquinho do Revirado, que trafega por eles talvez sem estar rigorosamente em nenhum, como Júlia e Palheta nas suas andanças sem rumo.
Empreendedorismo e glória
Os artistas do Ceará – As 10 Graças, Rodrigo Ferrera (Mulher Barbada) e Denis Lacerda (Deydianne Piaf) – nos lembram do quanto Tom Cavalcante, felizmente, envelheceu. Muito bom ver que o humor incorreto daquele que, durante anos, fez sorrir tantos de nós (suas próprias vítimas) com doses semanais de homofobia e contingenciamento da revolta não está mais aqui. Muito bom saber que aquilo definitivamente já não tem lugar no gosto de uma parte da população – que se politizou, sim, mesmo que a fórceps. Melhor ainda ver que uma nova geração de artistas vem do Ceará – está lá – com a vitalidade, o entusiasmo e a criatividade acesos, capaz de reinventar a cena popular em bases mais alentadoras sem cair na carolice. Muito pelo contrário.
Alysson Lemos (voltemos a ele), com muita precisão, falou sobre esse humor fuleiragem. Que se aproxima da liberdade carnavalesca (a de rua, não a disciplinada nos desfiles). Que não maquia a precariedade dos meios, mas a assume como motivo de riso, como o brincante que mostra a fantasia furada – que não é menos fantasia por isso e, ao contrário, ganha mais em graça e felicidade que o pierrô e a colombina, os engomadinhos. O negócio Foguete maravilha sobe sem subir a um céu fake, margeado por “defeitos especiais”, para colocar no trono as peripécias dos homens e das mulheres “de bens” do neopentecostalismo. Na paralela, vem a crítica explícita sobre as artimanhas de exploração da igreja no “céu é o limite” do capital. Max Weber não faria melhor. A antiética protestante e o espírito do capitalismo espraiam-se iluminando com promessas o sequestro de direitos no mundo do trabalho (ai, Brasil-Clown!). E os vândalos são os que quebram as vidraças de banco, não os que fundam os bancos, na linha do que pontua Brecht. Nem as igrejas, digo eu, entre um Jesus que (na fantasia, mas mais real que nunca) desautoriza seus seguidores e os batidões e as coreografias em nome do Senhor, queira Ele ou não. O baile segue.
Bald&ação, a cena das drags, antes de tudo, conta com o talento enorme de dois cômicos incríveis, Rodrigo Ferrera e Denis Lacerda. Um humor que se faz em movimentos discursivos rápidos e incisivos, muito bem aproveitados pela direção e pela edição de vídeo, que reitera, no ritmo ágil, a destreza dos argumentos e a mordacidade veloz da mise-en-scène. Mas não é só pela forma que o trabalho sobrevive: é pela inteligência do riso crítico que provoca em estratégias engenhosas de representação. A caricatura, aqui transmudada em “caricatismo”, articula-se em um mesmo movimento de identificação e inversão interessantíssimo. Mulher Barbada e Deydianne Piaf montam-se para o picadeiro digital da mimetização de influencers e personas conservadoras. Fazem a chacota da estupidez conservadora. São um show de invenção a cada dobra. Dão suporte, ao mesmo tempo, à crítica e ao comportamento criticado pela direita, no cavalo que são os corpos, as “corpas”. É um trabalho inatacável (a não ser por quem vai vestir a carapuça, certamente).
A Trupe Lona Preta apresentou, de São Paulo, as aventuras de um Superclown na mesma linha dos recursos precários que se potencializam ao demarcar ainda mais a precariedade dos meios. É gente de circo que sabe o que isso significa quanto ao efeito. E sabe também que não se trata de uma corrida pelo efeito. Esse palhaço das praças baldias, dos ônibus lotados, do apaziguamento das tretas é, simultaneamente, um Robin Hood dos Superpobres e o povão mesmo. Quando sonha. E é o sonho de um poder em princípio ingênuo, pautado na convivência em paz e na fantasia de menos sacrifício, de menos sacolejo no “busão”, mas que segue daí para o poder verdadeiro: o plano da consciência sobre o lugar de classe e os jogos de poder em torno do dinheiro. E, então, a compreensão dos movimentos do especulador em contraste com a vida dura das favelas gera os “jatos de consciência” que levam aonde deveriam levar: à antropofagia do capital, como em Coma um rico. Muito bom. Remete, em um país que nunca fez uma revolução popular consequente, aos franceses representados por Georg Büchner nos embates da França revolucionária (A morte de Danton). Ali a plebe conclamava todos a pedirem a cabeça dos que tinham roupas limpas, cama para dormir e sopa quente para matar a fome. Aqui, em contraste, o riso carrega o tempo todo, por inevitável, uma ponta de melancolia. Um dia chegaremos lá.
O grupo carioca de nome mais que sugestivo Arame Farpado nos chegou com mais alucinação. É mesmo preciso redobrar a dose em um país de realidades paralelas já suficientemente alucinadas. Vem na mesma linhagem de uma estética das consciências periféricas que, com razão, reclamam o centro sem precisar sair das bordas. Ninguém precisa morrer de si mesmo. Embrenhados em levantar a crítica no meio da mata selvagem da compra e da venda em que os artistas abrem veredas a cotoveladas, Lais e Pete (Lais Lage e Peterson Oliveira) contam com uma agente para as roubadas mais constrangedoras. Mas é do ato da casca de banana pisada que eles, como em uma entrada clássica de palhaços revivida agora no circo digital, tiram os motivos para uma aventura ferina em que não sobra pedra sobre pedra. Sem perder a ternura jamais. Da cena frontal para a câmera, no início, às provas para a série/novela de tema bíblico, impressiona a tranquilidade na desgraça – que só pode ser representada por artistas com a ossatura que eles têm, para dar conta desse trânsito entre a afetividade necessária, os perrengues da profissão, a mais que desenhada posição social (Niterói, Bangu, irmão!) e a consciência da sua condição de artistas negros. Não é pouco. Daí o escracho, porque sem uma cachaça e uma chuva de pica ninguém segura esse rojão. Mas a esculhambação não basta se não há talento. E ali tem. A sequência de um Moisés negro, um Marvel preto brasileiro e uma anja (deusa) que, aos poucos, vai conduzindo a narrativa bíblica para os caminhos da maledicência é outra inversão impagável. Os conservadores que lutem.
Nesse primeiro grupo sobressai, salvo engano, além dessas características, aquele sentido sempre presente de um popular desobediente, o que interessa muito em um país onde o poder é guiado, neste momento, pela tentativa de enquadração, patrulha e disciplinamento. Retomando aquela ideia do cômico brincante (que é antiga e eminentemente popular), a vivacidade humorística aqui vem junto com um tipo de performação especial, que representa (a representação também é performance) a ação mas, antes de tudo, se empenha em vivê-la mais do que descrevê-la. Ou melhor: mesmo quando se descreve, vive-se dentro do ato criativo, do chiste cômico. Como se o ator ou a atriz não fizesse esforço de distanciamento – a não ser quando interessa – porque há uma espécie de pertencimento no vivido que lhe é muito caro. Como naquela imagem do foguete que é, na verdade, uma Kombi furreca; ou nos voos imaginados que não passam de imagens projetadas no velho e manjado chroma key; ou na troca improvisada de uniforme do Superclown; ou ainda nas ágeis, mas assumidíssimas e delineadas mudanças de tom da Mulher Barbada. Todos esses são modos de performar não só na brincadeira. São atos em que se procura, de alguma maneira, ser o próprio brinquedo. E que eles nos venham com a consciência crítica apresentada é a melhor notícia possível.
Grotesco tragicômico, pedagogias identitárias
O Cirquinho do Revirado, de Criciúma (SC), é um grupo veterano e os bufões grotescos criados por Yonara Marques (Júlia) e Reveraldo Joaquim (Palheta) são conhecidos de longa data. Como pudemos ver, são personagens desconcertantes em um trabalho igualmente fora do esperado, pela qualidade das composições e pelo descentramento, antiaristotelismo total da dramaturgia. Confesso que, há alguns anos, quando os vi em cena nas ruas, fiquei em dúvida sobre a narrativa, a dialógica, que, mesmo na conta do vagar sem rumo que a justifica, me pareceu solta demais. Mas, desta vez, provavelmente porque no vídeo as coisas aparecem com bordas mais definidas, aceitei quase como uma necessidade essa forma distensa, em certo sentido, com que a ação (ou antiação) se dá. Não é fácil ter pernas quando se tem o mundo todo para andar e, ao mesmo tempo, nenhum lugar a que chegar. O dimensionamento disso nas figuras de uma andarilha “aleijada” (é assim que ela se autodefine) e de um andarilho, miserabilizados sabe-se lá em quais histórias do destino ou do sistema, ganha um sentido ainda mais profundo no contexto em que vivemos. O espelho grotesco tende a ser mais dolorido entre nós agora, quando a própria realidade, no liame entre vida e morte, dá razão à retórica das personagens e a reafirma na nossa convivência, no conforto ou não, com a ameaça do vírus. “Olhem, não somos nós, a realidade é que é deformada, ela é a própria deformação”, eles parecem nos dizer. Daí outra inversão notável que nos chega nesse trabalho: as bonitas cenas de paisagem do trajeto da dupla por praias, praças, alamedas, estradas e encostas, pelo dia e pela noite, desenham um percurso de flâneur que acende em nós a inveja de uma liberdade idealizada, agora impossível. Júlia e Palheta são, então, esta violência quase insuportável de ver que, paradoxalmente, nos faz sonhar com o que agora nos escapa. Que essas personagens saídas dos quadros de um Bruegel, de um Goya, para assaltar os nossos sentidos acabem, nas sequências finais, sujando a paisagem do templo maior da época – o shopping – não deixa de ser também uma espécie de vingança poética.
Passamos, então, ao conjunto de cenas que também foram concebidas como políticas ou sociais, mas já no sentido de projetos que se avizinham de algumas formas de didatismo. São três trabalhos cujos princípios de pensamento aparecem traduzidos em argumentações, para uma parte de nós, indiscutíveis na sua correção. Mas aqui há alguns pontos a levantar. Se, em geral, essas formas horizontais de defesa das ideias nos soam boas, elogiáveis, porque concordamos com os pontos de chegada do que se apresenta, é preciso verificar se isso basta. E se a cena se mantém viva, no sentido geral da vitalidade e no sentido particular do efeito cômico.
Em O contrato, a dupla Las Cabaças (Juliana Balsalobre e Marina Quinan) nos fala, com o background sonoro de guitarradas e carimbós (saudades do Pará!), sobre as implicações da grilagem de terra; os gatunos que roubam há mais de 500 anos; as estratégias usadas para enganar as gentes de lá; a exploração ilegal de madeira; e o estado de penúria a que estão submetidos os povos da floresta. Não há nada com que um cidadão minimamente politizado possa discordar. Está tudo certo e vamos juntos e juntas. No entanto, não há como deixar de observar – e, sobretudo, de sentir, de viver – que a teatralidade, antes mesmo da comicidade, perde para a preocupação com a “mensagem”. E que esta, enfim, por mais justa que seja, já é coisa assimilada por nós. Não bastasse o argumento genérico, pouco dialético, sobre essas coisas importantes, a cena também não consegue agarrar o humor.
As cenas de Aline Marques (Valdorf desabafa) e Circo di SóLadies (Chá de revelação, com Tatá Oliveira, Kelly Lima e Verônica Mello) trazem questão semelhante. Na primeira, a despeito da boa composição do personagem, há também uma forma de didatismo que não comporta efeito cômico que o viabilize com a potência teatral esperada. A narrativa do isolamento levada à fértil imaginação infantil é empática por condição, mas isso não sustenta o roteiro. Ainda que haja muito movimento, mudanças de plano etc., segue ausente a construção da permanente renovação da surpresa nas coisas batidas da vida, o que é parte da tradição cômica e uma das suas maravilhas. O circo tem isso, é um dos seus lugares mais comuns e, ao mesmo tempo, um dos seus trunfos mais antigos, a arte de fazer da modorra e da repetição cotidiana motivo de riso.
As mulheres do Circo di SóLadies são ótimas palhaças, mas também parecem ficar reféns de um projeto de propaganda. Útil e indiscutivelmente importante narrativa sobre a discussão de gênero assimilada nos conflitos da linguagem. Como sabemos, é tema central na disputa que vivemos hoje. É uma pedagogia necessária. Mas, convenhamos, também assimilada. Como, então, renová-la nos termos da teatralidade? Nós sabemos, conservadores ou não, ao que vamos aderir. Em que pese a importância da discussão, a forma parece um pouco pregação para convertidos. Resta aos dois trabalhos, talvez, a proximidade com as crianças. Sabemos que, no estado em que as coisas estão, dificilmente o dissenso não será instalado também entre elas, e isso pode tornar as coisas mais interessantes. No entanto, no contexto da mostra, soou apenas pueril.
Com o fim dessa segunda semana, e lembrando também as cenas apresentadas na primeira, há muito o que pensar ao olhar para os vários contextos em que estamos. Pensar nas formas como precisamos nos vender (nós também somos mercadorias), a partir da mesma necessidade de sobrevivência que move aquele humorista safado que este crítico apontou no início, mas com a esperança de que não precisemos chegar a ser ele. Para que continuemos em um combate útil e bonito não só porque encontra o melhor tom, a melhor solução teatral, o melhor efeito cômico – o que é sempre o esperado –, mas também porque se trata da busca pela gargalhada, pelo riso justo em um país historicamente afundado na injustiça. Para que nossa capacidade de alcançar a calma dura, assassina, daqueles magnatas deselegantes e canalhas esteja afiada à toda. Porque os fascistas com poder têm coração de ferro, mas nervos de papel. Os artistas do humor, da comédia, têm campos incríveis para virar pelo avesso. Pois, agora e com toda certeza, nos anos brasis (a madeira de brasa) adiante, a vida não será docinho de coco. Na verdade, para os andares de baixo nunca foi.