O músico e poeta Arnaldo Antunes homenageia a vida e a obra de Augusto de Campos. “Para os artistas da minha geração, o contato com a poesia concreta foi essencial”, diz
Publicado em 14/02/2021
Atualizado às 18:58 de 16/08/2022
por Arnaldo Antunes
É um privilégio para o Brasil ter um poeta-inventor da grandeza de Augusto de Campos. Podemos hoje considerá-lo um dos fundadores da nossa cultura – como me refiro a João Gilberto na canção “João”, parceria com Cezar Mendes em homenagem a João Gilberto: “São tantos e tão poucos têm noção / de como se inaugura uma nação / não é bem com monumentos / ou com balas de canhão”, mas com uma cultura original diante do mundo –, como Machado de Assis, Drummond, João Cabral, Guimarães Rosa ou como seus companheiros do grupo Noigandres, que deu origem à poesia concreta, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
Mais que isso: Augusto inseriu, com Haroldo e Décio (além de José Lino Grünewald, Ronaldo Azeredo e outros), o Brasil no mapa da poesia mundial; poesia de exportação como quis Oswald em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Introduziram uma nova modernidade, num período em que os modernistas de 22 vinham sendo desvalorizados pela onda regressiva da chamada geração de 45. E trouxe o melhor do mundo (Pound, Joyce, Mallarmé, Maiakovski, Gertrude Stein, Cummings, os provençais, Rimbaud e Rilke, entre tantos outros) para nós, através de ensaios e traduções criativas (transcriações, como as nomeou Haroldo, ou extraduções como Augusto as nomeia).
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Para os artistas da minha geração, o contato com a poesia concreta foi essencial, despertando-nos para a consciência do aspecto material da linguagem, das interações entre forma e conteúdo e entre o verbal e os outros códigos (música e artes visuais), revelando formas inéditas de abordagem construtiva da linguagem poética e desbravando novos territórios para a sensibilidade, com vigor e rigor.
Para mim, em particular, o contato com a obra de Augusto, primeiramente com Poemóbiles e Caixa Preta (os dois em parceria gráfica com Julio Plaza), foi uma revelação-revolução. Poesia que estimula a criação, como um dínamo gerando eletricidade ou, como nas palavras de Pound, nos “nutrindo de impulsos”. Era como se ficasse mais explícito para mim, ali, o cerne da linguagem poética; a natureza essencial do que faz da poesia poesia.
Além disso, havia dois outros polos de atração da minha atenção ainda adolescente, que convergiam para o trabalho de Augusto – a música popular que me formou na época, em especial a Tropicália (com seu Balanço da Bossa e o compacto de Caetano com Pulsar e Dias Dias Dias, inserido em Caixa Preta), e as revistas de poesia dos anos 1970 e 1980, que publicavam a produção dos poetas concretos junto a poetas mais jovens, dando continuidade à interação do verbal com a linguagem visual.
Essa conjunção de poesia, música e artes visuais (o termo verbivocovisual, de Joyce, tomado como síntese da proposta da poesia concreta) se apresentava muito viva em todas essas vias, despertando meu interesse desde muito jovem.
Tive a alegria de conhecer Augusto pessoalmente, no início dos 1980. Visitei pela primeira vez sua casa, na Rua Bocaina, em Perdizes, levado por seu filho Cid, com quem havia iniciado uma amizade e parceria, através de Paulo Miklos, ainda antes de formarmos os Titãs. Cid me incentivou a mostrar meus poemas para Augusto e lembro-me dele os ler com atenção e comentar generosamente. Depois veio nossa parceria gráfica em seu livro Rimbaud Livre, os projetos comuns envolvendo novas tecnologias como a projeção de poemas com raio laser na Avenida Paulista e as animações digitais no núcleo de computação na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), as saudosas apresentações do espetáculo Ouver, de que participamos, junto com Haroldo, Décio, Walter Silveira, Livio Tragtemberg e Alberto Marsicano, entre outros. Minha imensa admiração por seu trabalho (poético, artístico, ensaístico, tradutório) se estendeu ao convívio sempre estimulante e afetuoso, “em poesia e pessoa” (que era como Haroldo de Campos nos dedicava muitas vezes seus livros ao autografá-los).
É maravilhoso ver Augusto de Campos chegar aos 90 anos mantendo acesa sua produção, resistindo ativamente a estes tempos de destruição sócio-política-cultural-ambiental que estamos vivendo no Brasil; sem distender o arco de sua poética ética, de sua pesquisa incansável no campo da linguagem experimental e de sua invenção livre, em poesia e pessoa.