O artista Omar Salomão, filho do poeta Waly Salomão, escreve sobre o pai no dia em que ele completaria 80 anos
Publicado em 03/09/2023
Atualizado às 18:00 de 01/09/2023
por Omar Salomão
As datas e os dias se misturam e quando se percebe já se passou tanto tempo e ainda assim tudo permanece tão fresco. Termino este texto prestes a embarcar para Jequié (BA), terra natal do meu pai, o poeta Waly Salomão. No dia 3 de setembro ele faria 80 anos que serão comemorados nos três dias do Festival Literário de Jequié — que é chamado de forma maravilhosa de Felisquié. Atravessada pelo Rio de Contas, Jequié é uma cidade fronteiriça entre a mata e o sertão, apelidada de Cidade Sol. Esses dois pontos são marcantes na construção do pensamento do meu pai: a fronteira e o calor. Que também se misturam em um terceiro ponto de origem: a viagem, o nomadismo, marcado no nome e sangue — filho de pai sírio, que migrou jovem e foi fincar a sua tenda no interior da Bahia. O nome, semi-árabe: Waly Salomão. Seria Walid se o cartório não houvesse registrado errado: a partir do erro fez-se diferente.
Foi algo que meu pai me ensinou: tudo pode ser transformado em potência. Algo que ele deve ter entendido com suas leituras constantes de Nietzsche, Schopenhauer ou até mesmo com Hélio Oiticica, como descreveu no livro sobre o amigo, Hélio Oiticica - Qual é o Parangolé:
HO: Debruçado sobre a prancheta, HO teatralizava a profissão de fé do pai, José Oiticica Filho, grande fotógrafo avant-garde brasileiro, que sempre dizia: — Tudo pode ser feito. Não se prenda ao “não pode”.
É preciso aprender com a experiência direta e seguir em frente, abrindo caminho. Se formar, se desenvolver, se transformar no fazer, no produzir, no experimentar. Quando criança, eu pensava que Nietzsche também fosse algum amigo do meu pai, pela forma que ouvia ele falando volta e meia esse nome ao telefone: “Niti disse isso, Niti aquilo.” Só mais tarde fui entender que Niti e Nietzsche eram a mesma pessoa.
O que tento dizer aqui são duas coisas: meu pai queria estar sempre em movimento. Ele não gostava de olhar para o passado, de se prender ao passado, mas, inevitavelmente, mantê-lo vivo hoje, implica num gesto de olhar para trás no tempo. E talvez a chave de compreensão seja como olhar para o que se passou pensando sempre no futuro.
Agora, para mim, mais tempo já se passou sem meu pai do que com ele. E, claro, ainda assim ele permanece intensamente presente. Os amigos sempre se surpreendem quando percebem que já se passaram 20 anos de sua morte – porque os encontros parecem ainda tão vivos. Acho que em parte é isso, não se deter: “E a prisão, ver o sol nascer quadrado, eu repito essa metáfora gasta, representou para mim a liberação do escrever”*, disse certa vez sobre a sua prisão no Carandiru em 1970, onde escreveu seu primeiro livro Me segura qu’eu vou dar um troço. Na mesma fala disse: “Eu me pretendo sempre um míssil, nunca um fóssil”; ao argumentar contra tentativas de transformá-lo em objeto histórico, de museu.
Por isso trago também a história de Nietzsche e Hélio: sua forma de ler era do texto vivo e não da dissecação acadêmica: era do diálogo e da conversa: ou seja, a construção em conjunto e não de um lugar superior e frio: era com a mão enfiada na lama, o pé na jaca, para saber que cheiro tem.
Quando o Itaú Cultural me pediu um texto pela primeira vez, seria para a data de 5 de maio – que marcou 20 anos de sua morte. Expliquei que preferia comemorar os 80 de seu nascimento. Fazia mais sentido para mim. Fico alegre de viajar assim, celebrando a significação do que é vida: de quem fez algo que não morre. Ou melhor, como inseriu em um poema intitulado Post mortem, a frase de Ezra Pound: “O que amas de verdade permanece, o resto é escória”.
Omar Salomão é artista, poeta, designer e cenógrafo. Autor de Flutua sobre as ruínas, flutua, entre outros.