Espetáculos de Porto Velho e Porto Alegre carregam metáforas para pensar as artes da cena no país
Publicado em 07/05/2025
Atualizado às 13:05 de 07/05/2025
por Pollyanna Diniz
Quando se trabalha com arte no Brasil – especificamente com as artes da cena – partindo de lugares que não são aqueles considerados “eixo”, ou seja, São Paulo e Rio de Janeiro, no Sudeste do país, é preciso não se deixar enquadrar, mas mover-se oor dentro e por fora para instaurar as nossas próprias realidades. O Brasil é muito grande para caber num eixo só. Imaginar e percorrer os caminhos que podem ser traçados se mostra uma tarefa de liberdade e de resistência. E essa não é uma afirmação romântica ou que idealiza desigualdades e precariedades. Falo de uma operação cotidiana, repetitiva, trabalhosa, por vezes exaustiva, mas imprescindível quando lidamos não só com sobrevivência, mas com o que nos move. A vista nem alcança os caminhos reais e simbólicos que podem ser forjados, quais mapas desenhamos quando as miradas são ampliadas.
Fazendo perguntas que promovem esses deslocamentos de imaginário, o projeto Conexões Norte Sul, idealizado pelo Itaú Cultural em parceria com o Sesc Rio Grande do Sul e com curadoria de Jane Schoninger [de Porto Alegre (RS), coordenadora de artes cênicas e visuais e de arte-educação na instituição] e Andressa Batista [de Porto Velho (RO), artista, gestora e produtora cultural], promoveu espetáculos, conversas e debates entre os dias 6 e 16 de março deste ano.
Quais conexões podemos alinhavar entre os dois Portos, um no Norte e outro no Sul do país? Porto Velho, em Rondônia, estado criado oficialmente em 1982; Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, estado devastado por enchentes que mataram 183 pessoas e deixaram 27 desaparecidos no primeiro semestre de 2024. A distância entre as duas cidades, localizadas cada uma num extremo, reforça o quanto o Brasil é enorme e as dificuldades implicadas nessa obviedade.
Se a arte precisa circular, alcançar públicos diversos, ser colocada em fricção a partir do encontro com outras realidades, gerar relações, isso fica muito mais difícil quando levamos em consideração, por exemplo, o chamado custo amazônico, as despesas relacionadas a transporte e logística na região. Quando os investimentos já anunciados e provisionados por meio de políticas públicas atrasam meses ou mesmo nem chegam. Quando os orçamentos para a cultura no país são cortados pela inaptidão política para reconhecer a economia criativa como um motor de desenvolvimento nas diversas regiões do país. Quando produtores e artistas não encontram, na iniciativa privada, parceiros interessados em deslocar os seus investimentos do “eixo” que supostamente gera visibilidade. São muitos os “quandos”. Questões como essas foram abordadas na mesa “Modos de produção e seus operários”, com a participação das produtoras Luka Ibarra e Cynthia Margareth, a primeira de Porto Alegre e a segunda de São Paulo, e do ator Chicão Santos, de Porto Velho, com mediação do crítico Kil Abreu, de Belém do Pará, mas residente em São Paulo.
Na segunda mesa do evento, a discussão teve como tema “Curadorias, circulações”, com as curadoras Galiana Brasil, recifense que reside em São Paulo, e Jane Schoninger e Kil Abreu. A conversa propôs questionamentos que perpassam o poder que as curadorias exercem num país desigual e diverso como o Brasil. Quem são as pessoas que têm o poder de decidir quais artistas, grupos e trabalhos vão circular? Por quais lugares do país esses curadores se movem e estabelecem relações? E, mesmo que sejam curadores de lugares fora do “eixo”, quando levam trabalhos aos seus territórios, quais são as referências? Qual é o lugar do pensamento e da crítica na construção de uma cena que possa, de fato, ser chamada de brasileira? Qual é a repercussão dos festivais e das circulações para os artistas de uma cidade? Até que ponto as curadorias desenhadas no país – por curadores de instituições públicas e privadas ou independentes – podem ser consideradas instrumentos que questionam uma estrutura colonialista de pensamento e ação?
Espetáculos como metáforas
São, de fato, muitas perguntas. Parece que andamos em círculo quando falamos, por exemplo, sobre política cultural no Brasil. Nessa espiral, o que me interessa é imaginar outras possibilidades, tanto de questionamentos quanto de respostas. E os espetáculos que perpassam essa conexão entre Porto Velho e Porto Alegre são meios de estabelecer diálogo, dissenso, provocação, encantamento. De modo diverso, enxergo que cada um deles carrega metáforas que podem ser relacionadas às discussões que o projeto Conexões Norte Sul propõe.
No espetáculo Novos velhos corpos 50+, de Porto Alegre, estão em cena artistas da dança com trajetórias relevantes, todos com mais de 50, 60, 70 anos: Eduardo Severino, Eva Schul, Robson Lima Duarte, Monica Dantas e Suzi Weber, que assina a direção-geral do espetáculo. Os bailarinos são acompanhados por músicos que fazem a trilha sonora ao vivo: Dora Avila, Flavio Flu, Marcelo Fornazier e Vasco Piva.
A mais direta das metáforas entre o espetáculo e o Conexões Norte Sul diz respeito a permanecer criando arte ao longo do tempo, das décadas que se sucedem, a despeito das circunstâncias que possam se interpor nesse caminho. Continuidade, persistência, resistência. Na dança ocidental, os bailarinos carregavam em seus corpos – seus instrumentos de trabalho – um prazo de validade. De algum tempo para cá, brechas estão sendo abertas nesse cenário. Por que não permanecer em cena? Por que ser destituída do direito de criar com o próprio corpo? E aqui falo no feminino porque, como mulher, entendo que essa discussão, quando cruza o gênero, adquire contornos muito cruéis. E, se agregarmos classe, a questão fica ainda mais complexa, porque somos matéria-prima moída por uma indústria. As mulheres são cobradas a se enquadrarem em padrões estéticos irreais e que mudam o tempo inteiro no mundo capitalista do consumo. Somos nós, mulheres, que há pouco tempo perdíamos espaço radicalmente por causa da idade: desde o teatro e as produções audiovisuais, nos quais as mais velhas tinham papéis socialmente muito determinados, até o mercado de trabalho tradicional.
O corpo velho também está em cena em Meu amigo inglês, espetáculo de Rondônia com Chicão Santos e Flávia Diniz no elenco e texto e direção de Mário Zumba. Neste caso, é o corpo de um homem que lida com as consequências do mal de Parkinson. A temática é aderente por causa da sua amplitude e humanidade, dos impactos sociais que a doença acarreta nos âmbitos pessoal e familiar. A dramaturgia e a encenação esbarram, no entanto, na armadilha da reprodução do machismo, do sexismo e de violências simbólicas na relação que se estabelece entre os personagens, marido e mulher, ela muito mais nova do que ele. Num país tão plural como o Brasil, mas desigual, violento e misógino, as problematizações da nossa realidade e as revoluções de pensamento e atitude precisam acontecer, também no espaço da criação e da fruição artística, em cada canto do Brasil.
O ambiente universitário pode ser propulsor dessas revoluções. É do que nos lembra A cabeça de Tereza, também de Rondônia, com dramaturgia e atuação de Jam Soares e direção do professor Luiz Lerro. O espetáculo foi concebido no âmbito do curso de licenciatura em teatro da Universidade Federal de Rondônia (Unir), instituição criada em 1982. A academia tem papel fundamental no questionamento de conceitos e na elaboração e imaginação de novos saberes. Perguntas “antigas” precisam de respostas contínuas: como definimos, por exemplo, o que é centro e o que é periferia quando olhamos para o Brasil? Como determinamos o que é arte regional e o que é arte nacional? Como imaginar projetos que contemplem os nossos lugares de partida e os nossos desejos? Jam Soares, mulher jovem afro-amazônida, criou um espetáculo que é um manifesto pela memória de mulheres invisibilizadas na nossa história a partir da personagem ficcional Tereza Sankofa, uma homenagem a Tereza de Benguela, líder por cerca de 20 anos do maior quilombo do território que hoje é Mato Grosso.
Ensaio geral, espetáculo de teatro de rua de Klindson Cruz, manauara residente em Porto Velho, também é uma homenagem a uma mulher. Protagonizado pelo palhaço Pingo, o trabalho celebra a vida e a trajetória de Selma Bustamante, falecida em 2019, atriz do grupo Ventoforte (SP) que havia morado por bastante tempo no Amazonas. Embora artifícios dramatúrgicos e de encenação se desgastem ao longo das cenas – como a procura repetitiva por objetos em malas – e sejam perdidas possibilidades interessantes a partir da interação com os espectadores, o palhaço meio mal-humorado captura a atenção e a curiosidade do público. E o mote é tão importante para o espetáculo quanto para o projeto Conexões Norte Sul: o processo artístico, o ensaio, a transmissão de saberes entre os artistas, a celebração dos que vieram antes de nós.
O espetáculo Teatro dos seres imaginários, da Cia. Seres Imaginários, de Porto Alegre, que também foi apresentado na rua, mas com uma estrutura bastante específica, provoca encantamento no espectador, lembrando-nos de que o teatro é um exercício político de imaginação e criatividade. O Livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, é a obra que inspirou o espetáculo de bonecos que sai da cabeça do autor – que também é um boneco – para dividir o espaço cênico com a cabeça dos espectadores, fazendo as pessoas se moverem em volta de si mesmas para acompanhar aquelas criaturas intrigantes, assustadoras, curiosas. O público, de apenas 18 pessoas, coloca a cabeça numa espécie de caixa de tecido suspensa a 1,5 metro do chão, e o espetáculo de bonecos, com direção de arte e música primorosas, se desenrola dentro daquele espaço. A manipulação é feita pelos artistas Cacá Sena, Charles Kray, Elaine Regina e Silvia Regina Ferrare, com música de Sérgio Olive.
De volta ao palco, Trivial – um espetáculo de B-boys, com direção e coreografia de Driko Oliveira, de Porto Alegre, traz a cultura break como motor para um espetáculo que tem na dança sua força física e na palavra a exposição da vulnerabilidade que pode ser transformadora. Estão em cena os B-boys César RC, Daniel Carvalheiro, Deaf, Julinho RC e T2 e a B-girl Naju. Com os seus corpos, eles nos mostram o quanto a arte no Brasil é diversa. O break é da rua, do palco, do esporte, de qualquer lugar. Mas quando expõem por meio de relatos pessoais demandas de suas realidades, como a disparidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, a invisibilidade de jovens negros e as violências a que são submetidos, o espetáculo toma fôlego de mudança, de ruptura.
É esse fôlego, de artistas que se colocam em suas inteirezas e fragilidades, que precisamos tomar para continuar lidando com um cotidiano de diversidades e disparidades – aqui, especificamente nas artes da cena no Brasil. E para lembrar que não lutamos somente por nós, seja qual for a nossa circunstância. As reflexões e provocações do projeto Conexões Norte Sul nos levam ao entendimento de que a briga precisa ser coletiva e deve abarcar todas as realidades: os artistas que têm fome, que andam de metrô ou de avião, que estão começando, que estão na universidade, que possuem trajetórias consolidadas, que já conseguem circular pelo país por meios próprios, que sonham em ver o que criaram extrapolar limites. Artistas que, independentemente de suas situações específicas, se inquietam e desejam colocar na roda possibilidades coletivas de construir novas realidades.