O artista visual Kadu Xukuru compartilha suas memórias com a Copa do Mundo e a relação do futebol com os povos originários
Publicado em 28/11/2022
Atualizado às 14:12 de 12/12/2022
Durante a Copa do Mundo do Catar 2022, o Itaú Cultural publica A Copa é nossa, uma série de textos em que artistas compartilham suas relações e memórias com o futebol e o torneio.
por Kadu Xukuru*
Sempre falo daquelas lembranças que nós nunca esquecemos, lembranças de momentos tão incríveis que nosso cérebro as retém para sempre. O mesmo pode acontecer com traumas. No meu caso, felizmente, trarei uma memória muito boa para vocês, que se passa em 2002, o ano do pentacampeonato do Brasil.
Minha mãe migrou de sua cidade, Belém de Maria, Mata Sul pernambucana, por volta dos 14, 15 anos, me tendo em Recife com 17. Apesar de nascer longe da nossa terra, sempre tive essa relação com a cidade por estar lá presente com meus parentes.
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Em 2002, eu tinha 6 anos, passei a Copa em Belém, lembro de estar na casa da minha tia Ana assistindo ao jogo do Brasil. Nosso país venceu e veio toda aquela alegria em ser campeão e estar ali em harmonia na minha terra. A lembrança que nunca esqueço é a de quando acabou o segundo tempo: todos saíram de casa para comemorar a vitória e diversas crianças vieram com o topete do Ronaldo Fenômeno, em homenagem ao seu protagonismo na Copa e à sua contribuição na linda vitória.
Belém de Maria antes de tudo é território indígena, corresponde ao extinto aldeamento do Riacho do Mato, formado pela migração dos indígenas da Aldeia da Escada (atual cidade de Escada), de remanescentes da Guerra dos Cabanos e de fluxos de migração Xukuru para o trabalho na monocultura da cana-de-açúcar na Mata Sul pernambucana. Em 1860, formava-se às margens do Rio Panelas uma pequena aldeia, denominada Capoeira. Atribui-se a origem deste nome ao tupi ko'pwera (de ko: “roça” + pwera: "que já foi"). Outros consideram uma corruptela de cáa-poera, que significa “mata cortada, destruída para o plantio”. Outro significado é “roça extinta”, invadida pelo mato. Segundo o IBGE, o nome Capoeiras provém do vocábulo indígena Capoeirã (“mato frio”). Com o passar dos anos, houve o aumento da população e o surgimento de missões religiosas de frades capuchinhos, no qual se destaca a figura do Frei Ibiapina, que, por meio de mecanismos etnocidas, alterou o nome de Capoeira para Belém de Maria e deu o pontapé inicial nos processos de desestruturação étnica da população.
O futebol tem uma importância bem forte para muitos de nós, apesar de toda a guerra que vivemos, o genocídio, o etnocídio, a exclusão, o ser visto como uma parte improdutiva da sociedade. Em torno dele, todo o país se une em prol de algo. Inclusive, nós, povos indígenas, contribuímos muito nesse sentido, tendo diversos indígenas que compõem esses espaços. Posso citar aqui o grande Garrincha, de origem Fulni-ô, considerado por muitos como o mais célebre ponta-direita e o melhor driblador da história do futebol. Assim como Paulinho Xukuru, que jogou pela seleção brasileira na Copa de 2018, ou Iracã do povo Xukuru-Kariri, que ajudou o Timão a ganhar os campeonatos brasileiros de 1998 e 1999.
No meu trabalho, há uma homenagem a Garrincha. A obra Garrincha Tapuya surgiu do parente Dário Macaco, que me deu a ideia de produzi-la, com a intenção de visibilizar essas figuras com grande importância nacional que, porém, têm suas origens sempre apagadas. A imagem é criada a partir do conceito do futurismo indígena, um movimento que consiste em arte, literatura, quadrinhos, músicas e diversas perspectivas indígenas de representação do passado, presente e futuro; é uma forma de comunicação e expressão contemporânea. Parte da necessidade de romper com os paradigmas que carrega o corpo indígena, sempre associado ao passado, à extinção. Muito importante, tendo em vista que nós passamos muito tempo tendo nossas narrativas escritas e difundidas por outros, o futurismo indígena vem pra reescrever a história, protagonizada por nós, povos originários.
*Kadu Tapuya, 26 anos e de origem Xukuru, trabalha como produtor cultural e artista visual utilizando o conceito do futurismo indígena. É fotógrafo, técnico em multimídias pelo Núcleo Avançado em Educação (Nave) Recife, formado em design gráfico pelo Centro Universitário UniFBV – Wyden e, atualmente, cursa licenciatura em história na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), no qual compõe o Coletivo Boró, coletivo de estudantes indígenas da Unicap. Também é coordenador executivo do Movimento de Retomada Mata Sul Indígena.