Texto de Amilton Pinheiro sobre a atuação de Lima no cinema e sua relação com a TV
Publicado em 18/12/2020
Atualizado às 14:26 de 22/08/2022
por Amilton Pinheiro
Em 2006, precisamente em 18 de setembro, data da inauguração da televisão brasileira que foi ao ar nesse dia em 1950, Lima Duarte foi o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura. O convite tinha sido feito por dois motivos principais: Lima era um dos maiores atores da televisão brasileira – com inúmeras participações em novelas, séries, minisséries e casos especiais –, apresentador de programas e diretor, e um dos poucos artistas vivos presentes naquele longevo 18 de setembro de 1950, quando o magnata das comunicações Assis Chateaubriand, autoridades e parte do elenco da Rádio Tupi Difusora de São Paulo inauguraram o “veículo dos sonhos” no país.
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Fui um dos entrevistadores da bancada por ter feito a ponte entre Lima Duarte e a organização do programa e conhecer um pouco da carreira do artista, principalmente no cinema. O primeiro contato que tive com Lima se deu em 2001, quando o convidei para participar de um projeto de longa-metragem sobre o Cemitério da Consolação em São Paulo, que infelizmente nunca saiu do papel. Não perdi mais o contato com ele. Em 2002, fiz a curadoria de uma pequena mostra com cinco filmes que Lima Duarte havia participado até então, na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP), intitulada Lima Duarte, um Ator-Autor. Os filmes que passamos foram escolhidos pelo próprio Lima: Sargento Getúlio, de Hermano Penna, A Ostra e o Vento, de Walter Lima Júnior, Corpo em Delito, de Nuno César Abreu, e dois longas que ele fez em Portugal: Palavra e Utopia, de Manoel de Oliveira, e O Rio do Ouro, de Paulo Rocha.
Apesar de estarmos comemorando o nascimento da televisão brasileira naquele Roda Viva, não pensei em outra pergunta que não fosse a que fiz na ocasião:
“Lima, a gente está comemorando o aniversário da TV, e você, um ator que nunca saiu do veículo, fez muito cinema, por volta de 30 filmes [na verdade eram 29 até setembro de 2006]. Mas você sempre teve uma bronca em relação ao cinema. Você não se achava um ator de cinema. Tanto é que você só passou a se achar depois de Sargento Getúlio [filme de Hermano Penna, lançado em 1983, baseado no livro homônimo de João Ubaldo Ribeiro]. Só que você já havia feito alguns filmes interessantes, como Guerra Conjugal, de Joaquim Pedro de Andrade, de 1975 [baseado no livro de contos homônimo de Dalton Trevisan], um filme em Portugal, Kilas, o Mau da Fita [de 1980, do diretor José Fonseca e Costa], além de A Queda, de Ruy Guerra, em 1978. Por que você não se considerava um ator de cinema?”.
Ele, então, me respondeu: “Porque é outra sensibilidade, não é? Acho que você pode ser um bom ator, mas no teatro é uma sensibilidade, a televisão é outra que está se desenvolvendo agora. E cinema é outra sensibilidade. E minha sensibilidade bate bem com a televisão. Eu sei porque me considero da televisão. Pretendo ser fiel a essa gente, pretendo ser fiel a esses eventos tais que eu vivi e assim, sendo eu, falo para o povo mesmo. Eu falo com o pé na roça que cada um de nós tem cavado aí. Quando eu apareço, o povo já vem dizendo assim: ‘Ê, lá vem esse cara. Ele vai inventar alguma coisa’, entendeu? Porque eu invento mesmo. Eu sou um contador de causos. Eu conto os causos através dos personagens [faz uma imitação de um tipo popular]. Aí falam: ‘Ih, ele vai me enganar’. Eles olham para mim e riem. E no cinema não pode fazer isso, porque agora eu estou descobrindo que cada tecnologia nova que surge provoca uma alteração no drama, no âmago do drama e na interpretação também”.
Como já tinha assistido a quase todos os 29 filmes em que ele trabalhou como ator, achei aquela resposta de Lima Duarte muito injusta com ele mesmo, e não correspondia com o trabalho extraordinário que ele havia realizado para o cinema, não somente os longas que citei na minha pergunta no Roda Viva, ou seja, Guerra Conjugal, A Queda e Kilas, o Mau da Fita, mas outros filmes, como Corpo em Delito, de Nuno César Abreu, Palavra e Utopia, do diretor português Manoel de Oliveira, O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla, Os Sete Gatinhos, de Neville d’Almeida, Depois Daquele Baile, de Roberto Bomtempo, e os filmes sobre futebol de Ugo Giorgetti, Boleiros – Era Uma Vez o Futebel... e Boleiros 2 – Vencedores e Vencidos, sem citar os mais populares – O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, Eu Tu Eles, de Andrucha Waddington, e 2 Filhos de Francisco – a História de Zezé Di Camargo & Luciano, de Breno Silveira.
Desde que comecei a organizar eventos sobre a carreira de Lima Duarte, principalmente no cinema, gosto de citar esta frase: “Para um ator que nunca saiu da televisão brasileira desde sua inauguração, e que viveu personagens memoráveis, Lima Duarte construiu uma carreira extraordinária no cinema”.
O primeiro filme que o ator fez, é interessante observar, foi antes mesmo da inauguração da televisão brasileira. E, portanto, antes mesmo dos seus personagens que entrariam para a galeria memorialística da teledramaturgia brasileira, como Zeca Diabo, de O Bem-Amado (1973), Salviano Lisboa, de Pecado Capital (1975), Carijó, de Espelho Mágico (1977), Oscar, de Marrom-Glacê (1979-1980), Sinhozinho Malta, de Roque Santeiro (1985-1986), Sassá Mutema, de O Salvador da Pátria (1989), Dom Lázaro Venturini, de Meu Bem, Meu Mal (1990-1991), Murilo Pontes, de Pedra sobre Pedra (1992), Afonso Lambertini, de Da Cor do Pecado (2004), Shankar, de Caminhos das Índias (2009), Max Martinez, de Araguaia (2010-2011), Dom Peppino, de I Love Paraisópolis (2015), e Josafá Paraíso, de O Outro Lado do Paraíso (2017-2018).
Sem contar as pequenas participações em minisséries – O Tempo e o Vento (1985), Tendas dos Milagres (1986) e Agosto (1993), além do caso especial O Crime do Zé Bigorna (1974) – e a direção de novelas – O Direito de Amar (1964-1965), que fez ao lado de José Parisi e Henrique Martins, e Beto Rockfeller (1968-1969), que fez com Walter Avancini –, além da apresentação do programa O Som Brasil (1984-1989) e a série O Bem-Amado (1980-1984).
Nenhum outro ator ou atriz no Brasil tem uma carreira tão expressiva em quantidade e qualidade tanto na televisão – inclusive em várias funções: ator, diretor, autor de texto, apresentador e dublador – quanto no cinema. Ao longo dos mais de 70 anos de carreira e 90 anos de vida, Lima fez 43 filmes, entre longas, curtas e filmes-episódios. Lima participou com outros radioatores do longa Quase no Céu, de Oduvaldo Vianna, primeira oportunidade que teve como ator de cinema, vindo das radionovelas da TV Tupi Difusora.
Lima começou na rádio Tupi Difusora de São Paulo ligando as grandes válvulas que existiam na época para levar ao ar os programas matutinos de música caipira. Depois foi sonoplasta e radioator, oportunidade dada por Oduvaldo Vianna. No filme, lançado em 1949, tinha uma única frase, numa festa junina ao lado da atriz Norah Fontes no papel de um capiau, um caipira, roceiro. Com essa participação tímida e de uma frase só, ele iria construir personagens magistrais no cinema ao longo das décadas seguintes.
Mas na sua primeira fase no cinema as participações eram em projetos de diretores de rádio, que depois foram trabalhar na televisão, e que queriam experimentar atividades no cinema também. Dessa primeira fase na carreira de Lima no cinema ele fez O Sobrado (1956), de Walter George Dürst e Cassiano Gabus Mendes, baseado na trilogia de Érico Veríssimo; O Tempo e o Vento, Paixão de Gaúcho (1957), de Walter George Dürst, baseado no romance O Gaúcho, de José de Alencar; e Chão Bruto (1958), de Dionísio Azevedo, baseado no romance homônimo de Hernâni Donato. Filmes que tentavam copiar o padrão da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que por sua vez tentava imitar o estilo clássico das produções de Hollywood da época.
Lima Duarte estava ainda tateando seus primeiros passos como ator. Experiência iniciada como radioator, estendida como ator de novelas da TV Tupi Difusora de São Paulo, durante os anos 1950, inclusive com as inúmeras peças que participava na TV de Vanguarda, projeto ambicioso da TV Tupi Difusora de São Paulo que levava ao vivo, para sua programação, peças clássicas de autores estrangeiros e alguns de autoria de brasileiros. Mas a maneira peculiar de compor personagens genuinamente brasileiros, personagens comuns, Lima aprenderia, como mesmo ele gosta de falar, nos anos que trabalhou no Teatro de Arena ao lado de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Chico de Assis, entre 1961 e 1971.
Em 1968, Lima participaria do seu primeiro filme com um diretor já com uma sólida e destacada carreira no cinema, Luís Sérgio Person, que tinha na bagagem dois excelentes longas: Sociedade Anônima (1965) e O Caso dos Irmãos Nave (1967). Seria um dos episódios da Trilogia do Terror, no caso, Procissão dos Mortos. Mas ainda não seria um trabalho que iria cooptar o ator para a sétima arte e tampouco o destacava na crítica especializada como um ator de cinema, o que só iria acontecer em Guerra Conjugal, de Joaquim Pedro de Andrade, de 1975, outro diretor respeitado pelos seus projetos ousados e elaborados.
Em Guerra Conjugal, baseado no livro de contos homônimo de Dalton Trevisan, Lima Duarte teria seu primeiro trabalho como ator principal, fazendo o papel de um advogado mulherengo incorrigível, Osíris, inaugurando o que chamo de segunda fase do ator no cinema, com trabalhos de protagonistas em filmes de diretores expressivos e respeitados, prêmios e reconhecimento da crítica. Da segunda fase podemos destacar O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla (1977), baseado no livro de contos Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio, em que interpreta o alquebrado Malagueta, jogador de sinuca e boêmio.
O diretor, Maurice Capovilla, e o próprio autor do livro, João Antônio, ficariam bastante impressionados com a composição que Lima Duarte deu ao personagem, com o entendimento que tinha de Malagueta, que para Lima representava a terceira fase da vida de um mesmo personagem – Malagueta, Perus e Bacanaço.
A Queda (1978), de Ruy Guerra e Nelson Xavier, era a continuação de um já clássico do cinema brasileiro, Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra. Ambos os filmes ganharam o Urso de Prata de direção no prestigiado Festival de Berlim, na Alemanha. Lima conseguiu empreender uma força vocabular excepcional ao personagem Salatiel, mestre de obras que vive em conflito com a filha (Isabel Ribeiro) e tenta trazer como aliado o cunhado (Nelson Xavier), que trabalha na construção do metrô do Rio de Janeiro, mas muito menos ambicioso que Salatiel. Ruy Guerra só tinha as marcações das cenas e as situações que os atores iriam passar. Os diálogos eram quase todos construídos pelos atores, que traziam suas bagagens e compreensões dos personagens.
Dentro do universo do dramaturgo Nelson Rodrigues, Lima iria trabalhar na adaptação da peça Os Sete Gatinhos, realizada pelo diretor Neville d’Almeida em 1980, no papel de um contínuo, Seu Noronha, casado e pai de sete filhas. Grande admirador de Nelson Rodrigues, Lima diria que seria um de seus trabalhos mais difíceis de realizar por causa da participação do dramaturgo nos sets de filmagens – que ficava observando com seu olhar arguto a maneira como os atores interpretavam os personagens criados por ele. Lima achava um tormento nas filmagens dar voz e gestos ao Seu Noronha diante do criador da personagem, o grande Nelson Rodrigues.
Lima tinha um entendimento do personagem diferente do diretor, mas não seria a primeira vez nem a última que ele discordaria da visão de um diretor em um filme que trabalhou, seria recorrente esse descompasso entre o ator e o diretor em relação ao personagem e ao resultado final do filme. Já havia acontecido em O Crime do Zé Bigorna, de Anselmo Duarte (1977), e em O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla. E aconteceria com outros personagens. Essa insatisfação, que o ator sentia no resultado final do que iria ver depois do filme pronto, seria um dos motivos pelos quais ele não se achava um ator de cinema. Foram inúmeras discordâncias com os diretores, ainda mais se o personagem fosse oriundo de uma adaptação literária.
Lima Duarte forjou no cinema personagens contraditórios, atormentados, poderosos, pobres e trabalhadores, todos genuinamente brasileiros que vieram, assim como ele, dos rincões deste Brasil com suas inúmeras injustiças sociais. O ator tentou traduzir através desses personagens a riqueza do seu povo e as facetas contraditórias de um país que vive até hoje o dilema de excluir grande parte da população das benesses de suas riquezas, legando-as a uma pequena minoria.
Amilton Pinheiro, jornalista e economista, é cocurador da Ocupação Lima Duarte. Colabora no Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo, e no site Esquina da Cultura. É curador do Fest Aruanda, festival de cinema que acontece em João Pessoa (PB) e membro da Associação Paulista de Críticos e Arte (APCA) em literatura e da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Autor de textos para livros sobre filmes brasileiros editados pela Abraccine, de um roteiro sobre o memorialista Pedro Nava, não filmado, Um Tiro na Memória, e de um livro de contos não publicados Lugares Sepulcros. Foi terceiro assistente do curta A Volta pra Casa, de Diegos Freitas, protagonizado por Lima Duarte.
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Este texto foi publicado originalmente no site da Ocupação Lima Duarte. Lá você encontra outros materiais inéditos, além de entrevistas exclusivas e fotografias que contam a história do homenageado.