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Mekukradjá: ver com ouvidos atentos

Uma cobertura do Mekukradjá 2018: a importância da oralidade; saber acadêmico sobre o indígena versus saber acadêmico do indígena; e o uso das tecnologias para defender a cultura

Publicado em 18/12/2018

Atualizado às 14:40 de 13/07/2022

por João Cezar de Castro Rocha

 

Um círculo é um círculo é um círculo

“Mekukradjá”, informa o Itaú Cultural na página que divulga o primeiro encontro, realizado em 2016, “é uma palavra caiapó – etnia que ocupa o Mato Grosso e o Pará – e significa ‘sabedoria’, ‘transmissão de conhecimentos’”.

Duas noções que adquiriram materialidade na forma de convivência adotada como método do evento: o círculo.

Eis a figura que define o encontro!

Cada roda de conversa principiou pela formação de um círculo, no qual convidadas e convidados se cumprimentavam e se apresentavam ao público, gerando novos círculos, sempre a partir da palavra matriz. Portanto, círculo como metáfora da oralidade e como metonímia de uma visão do mundo que reconhece “sabedoria” precisamente na “transmissão de conhecimentos” ancestrais.

Como em toda roda de conversa, muitos temas foram abordados nos dois dias do encontro. No entanto, alguns tópicos se destacaram em diversas falas e em muitas reflexões, sugerindo as preocupações mais urgentes das culturas indígenas na contemporaneidade.

Escutemos.

A oralidade e suas astúcias

Nas culturas indígenas, a oralidade não deve ser compreendida como oposição simples à escrita. Pelo contrário, a oralidade deve ser entendida como a forma mais palpável da concepção integral das cosmovisões indígenas. (E o plural, aqui, é um conselho de prudência – como veremos adiante.)

Em termos diretos: oralidade não se reduz a uma função predominantemente literária, pelo contrário, é eixo articulador das tradições originárias. A oralidade concentra múltiplas funções, como contar as histórias ancestrais, narrar os acontecimentos cotidianos, transmitir conhecimentos práticos, estabelecer elos afetivos e preservar a tradição por meio de sua transmissão, como recordou Darlene Yaminalo Taukane.

(Numa palavra: Mekukradjá.)

A associação redutora e exclusiva entre oralidade e escrita somente se sustenta na pressuposição de uma ausência; nesse caso, quando se diz “oralidade”, escuta-se “cultura ágrafa” – e o prefixo de negação vale por todo um ensaio. Ora, pelo avesso, por que não imaginar os trançados de materiais diversos, os grafismos e as diversas formas de inscrição das culturas indígenas como modalidades de escrita? Por certo, não se tratam de um código fonético, traduzível num alfabeto, mas não deixam de representar um sistema codificado de registro, como se discutiu no primeiro círculo de conversa. Desse modo, evitaríamos a associação automática entre culturas originárias e culturas ágrafas; automatismo que equivale a uma constrangedora “arqueologia da ausência” – narcisismo cultural que não pode senão reduzir o outro à imagem especular.

Essa discussão ilumina o papel da literatura nas culturas indígenas, pois ela não se diferencia de outras formas de manifestação: o canto, a contação de histórias, a transmissão de sabedoria, a música, a dança, os grafismos corporais, a transferência de conhecimentos. Vale dizer: na relação do círculo como metáfora e metonímia, as ações se integram no todo da cultura.

No entanto, ainda assim, a literatura indígena ganha cada vez mais destaque, assumindo um espaço inédito no cenário contemporâneo. Não se trata, claro está, de um afastamento da tradição, porém, de uma aproximação estratégica com o conjunto da sociedade brasileira.

Questão, aliás, que retornou em mais de uma roda de conversa.

Índio ou indígena?

“Índio é erro de português”, na formulação incisiva de Luciano Ariabo Kezo. Um poema célebre de Oswald de Andrade, “Erro de Português”, vem de imediato ao ouvido:

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português
.

O equívoco também afetou o poeta antropófago! Afinal – e este ponto foi reiterado em diversas ocasiões –, não existe o “índio”, categoria genérica neste universalismo exotizante, mas múltiplas culturas indígenas, e que se assinale a força desse plural incontornável.

Na derradeira roda de conversa, Daniel Munduruku explicitou a divergência: índio é uma denominação errônea desde a sua origem. Cristóvão Colombo julgou ter chegado às Índias em 1492, daí a denominação que atribuiu aos habitantes das terras que invadiu. Por isso, Munduruku propôs que se empregasse o termo “indígena”, que remete às culturas originárias.

Impor ao eu o outro

Preocupação que tem estimulado um movimento de grande importância, qual seja, a inserção de indígenas no circuito “oficial” de conhecimento por meio da obtenção de títulos universitários e da participação no circuito das artes.

O êxito, inclusive internacional, do artista plástico e intelectual Macuxi, Jaider Esbell, amplia consideravelmente o raio de ação das culturas originárias. Ele exerce um “pensar extrapolado”, que assegura ao “artista indígena” um lugar único, que desde sempre é transnacional e transtemporal, pois não se limita à noção de nação e não obedece a periodizações rígidas. Por isso, em suas palavras, “a arte indígena se encaixa na arte global, mas com ela não se funde nem confunde”.

Outro exemplo notável é o de Nanblá Gakran: bacharel em ciências sociais, mestre em linguística pela Universidade de Campinas (Unicamp) e doutor pela Universidade de Brasília (UnB). Neste momento, realiza um pós-doutorado em políticas indígenas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Gakran produziu os únicos estudos sobre a língua xokleng, assim, o saber oficial é tornado meio propício para a preservação da cultura.

De igual modo, o orgulho pela sabedoria ancestral exige o resgate do idioma próprio. Destaca-se aqui o trabalho de autêntico arqueólogo de uma língua (quase) perdida realizado por Ajuru Pataxó. Graças a seu esforço, foi possível recuperar a fala patxohã, que hoje se encontra presente em 36 aldeias na Bahia e no Mato Grosso. A partir de 2003, o estudo dela tornou-se uma disciplina regular nas escolas indígenas da região.

Fabiane Medina da Cruz, formada em ciências políticas em Mato Grosso do Sul, desenvolveu uma importante reflexão. Nas suas palavras: “A universidade é o eu do Ocidente”; daí a importância da presença crescente de indígenas na universidade, pois assim se impõe a esse “eu” o “outro” por ele reduzido a classificações alheias à dinâmica das culturas, e isso, claro, sem necessariamente um entendimento de sua complexidade e pluralidade.

Recorde-se, então, a experiência de Graciliana Selestino Wakanã, graduada em filosofia. Por meio do ensino universitário, ela pôde entender melhor sua ancestralidade, ao reconhecer o caráter propriamente filosófico da cosmovisão de seu povo, Xucuru Kariri.

Marcos Terena acrescentou um elemento-chave a esse horizonte. Ele principiou sua participação falando em Terena, a fim de assinalar uma diferença decisiva: os indígenas em geral são bilíngues, ou seja, se expressam em seus idiomas e em português.

Paulinho Payakan radicalizou a questão, trazendo à baila uma crítica pertinente do saber acadêmico. Ele começou assertivamente: “Não usarei o vocabulário de antropólogos, mas o conhecimento Caiapó!”. Em sua opinião, os antropólogos não escrevem sobre o “índio”, porém, mais modestamente, sobre os grupos com que porventura tenham entrado em contato. Em sua frase-travessia, com sabor roseano, “índios, ninguém não conhece”.

Estamos diante de um problema mencionado por muitos: via de regra, o antropólogo não domina de fato o idioma do grupo que, no entanto, estuda e sobre o qual se converte em “autoridade”. Já esse mesmo grupo, via de regra, domina o português... Tema pouco ou mesmo nunca discutido, mas que surgiu em inúmeras falas durante o encontro. Para dimensionar a extensão do problema, recupero a ressalva de um dos mais importantes antropólogos da atualidade – e isso em qualquer latitude. Escutemos a lhaneza com que Eduardo Viveiros de Castro reconheceu a dificuldade em Araweté: os Deuses Canibais:

Meu trabalho entre os Araweté, assim, além de relativamente pouco demorado, foi acidentado e intermitente. Isto pesou sobretudo sobre meu aprendizado da língua Araweté. Os Araweté são praticamente monolíngues [...] tudo o que posso dizer é que, se cheguei a compreender a fala cotidiana dos Araweté – sobretudo, obviamente, quando eles falavam comigo – e se dispunha de recursos metalinguísticos para “aprender a aprender”, não era capaz de entender os cantos xamanísticos sem o auxílio de glosas e repetições em ralenti. De um modo geral, não posso fornecer traduções detalhadas de períodos ou frases mais extensas; há um vasto conjunto de morfemas, aspectos verbais e marcadores retóricos cujo significado desconheço.

Naturalmente, não se trata de simplificar uma questão complexa, mas torná-la tópico necessário em futuras rodas de conversa é um passo fundamental até mesmo para valorizar o saber indígena.

Paulinho Payakan rematou sua crítica com uma advertência que foi escutada com ouvidos atentos, sobretudo pelos mais jovens:

Mekukradjá: para falar de mim, eu tenho de prestar atenção na fala do meu tio, na fala da minha tia, na fala do meu avô, da minha avó.

Advertência que sugere uma tensão que merece ser aprofundada.

Os meios e as mensagens (da tradição)

Além de ingressar na universidade, as gerações mais jovens lançam mão, com grande desenvoltura, tanto de recursos audiovisuais quanto das possibilidades de comunicação propiciadas pelas redes sociais e pelo universo digital. Um atrito novo se introduziu assim nas culturas indígenas, entre a adesão ao contemporâneo e a preservação da ancestralidade.

Nesse sentido, Álvaro Doéthiro Tukano defendeu a criação de uma universidade indígena na qual não somente se preservasse a cultura ancestral, mas também se ministrassem as disciplinas nos idiomas igualmente ancestrais.

Um cuidado fundamental, contudo, foi levantado na fala de Severiá Idioriê. Aos sete anos, ela saiu de sua comunidade Karajá para fixar-se em Goiânia, onde terminou a Faculdade de Letras Modernas na Universidade Católica de Goiás. Em consequência, perdeu o domínio do idioma de seu grupo. A partir dessa experiência-limite, ela ponderou que a língua é parte da identidade, mas a identidade indígena não se reduz ao idioma. Ademais, como muitas culturas foram impedidas de se expressar em suas línguas, a questão da identidade torna-se muito mais complexa.

Marina Terena, na companhia de “outros acadêmicos indígenas”, criou o projeto Índio Educa. Uma vertente desse projeto pretende introduzir a informática nas aldeias, e, de outro lado, educar a sociedade sobre as culturas originárias.

Repare-se que a iniciativa se denomina Índio Educa, numa apropriação que subverte o “erro de português”, transformando o “objeto” a ser estudado pelo “eu” do Ocidente – a universidade, já se sabe – em sujeito da produção de conhecimento. O dilema se esclarece: como equilibrar o resgate da tradição por meio – e não apesar – tanto de novos meios de comunicação quanto de instituições da sociedade?

Impasse delineado por Nanblá Gakran: o uso da tecnologia da informação é muito importante, porém, ao mesmo tempo, interfere no cotidiano das aldeias. A internet afeta especialmente os mais jovens, que podem inclusive negligenciar o círculo de conversas com os mais velhos, pois muitas vezes as redes sociais passam a ser a fonte de narrativas, em lugar do tradicional circuito da oralidade.

Contudo, aspectos positivos também devem ser sublinhados: conferir visibilidade inédita às questões indígenas; criar redes que associem os povos originários; registrar tradições que de outra maneira poderiam desaparecer.

Nesse cenário, os meios audiovisuais e o universo digital se revelam aliados indispensáveis.

Graci Guarani sintomaticamente iniciou sua fala por meio de imagens, mostrou documentários por ela produzidos acerca da concepção indígena do tempo: Mensageiros do Futuro e Tempo Circular. O audiovisual é uma forma original de se relacionar com a oralidade, entendida como elemento estruturador da visão do mundo. Nas suas palavras: “O cinema indígena tem um poder transformador”, já que se trata de “um cinema provocativo, um cinema reflexivo”. As produções indígenas compõem um “cinema urgente, de guerrilha”, que dá a ver os problemas mais graves das comunidades originárias: o estupro de mulheres por fazendeiros, disputas de terra, assassinatos de lideranças.

A experiência do “repórter indígena” Kamikia Kisedje é iluminadora. Ele não somente transmite reportagens ao vivo das aldeias, como também ministra oficinas de audiovisual para jovens indígenas. A reverberação das câmeras no dia a dia das culturas possui efeitos muito ricos. Destaquemos o exemplo da comunidade Kisedje. A disponibilidade de recursos audiovisuais estimulou a retomada de uma festa tradicional, com o objetivo de perpetuar a tradição por meio de seu registro. De igual modo, lideranças de vários grupos solicitam que seus testemunhos sejam gravados, para formar um repertório cultural a ser preservado para as futuras gerações.

Pois é: o meio não é mesmo a mensagem, tampouco molda necessariamente a recepção. Ora, qualquer meio pode ser utilizado para transmitir a sabedoria ancestral.

Numa palavra (e também através de imagens): Mekukradjá.

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