Responsável pela promoção da leitura e das bibliotecas no país africano, professor comenta sobre a presença da literatura brasileira por lá e indica autores moçambicanos de destaque
Publicado em 18/09/2019
Atualizado às 15:14 de 19/09/2019
por Felipe Lindoso
Nataniel Ngomane, professor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), na cidade de Maputo, em Moçambique, conversou com o Itaú Cultural por e-mail sobre as proximidades e as distâncias entre o Brasil e os países africanos falantes de português no que se refere à literatura. Doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa (FBLP) – órgão encarregado da promoção da leitura e das bibliotecas no país africano –, Ngomane é um dos mapeados do Conexões Itaú Cultural, programa que constrói um panorama de quem trabalha com a produção literária nacional no exterior.
Na UEM, além de dar cursos na graduação e pós-graduação na área de literatura comparada e literatura brasileira, foi diretor da Escola de Comunicação e Artes. Nesse período, procurou estabelecer parceria com instituições semelhantes de outros países, como é o caso da USP. Entre as ações desenvolvidas, o professor destaca os projetos Ecarte-Jazz: Oficina Musical Semanal, que promovia encontros entre alunos e professores de música com artistas populares moçambicanos, e Ecarteatro, nos mesmos moldes, mas centrado no curso de teatro.
Brasil em Moçambique
Sobre a presença de livros de autores brasileiros em Moçambique, Ngomane constata: “Ainda se situa num nível muito baixo, aquém do desejado. Sobretudo de literatura. É como se ainda não existisse um ‘corredor’ desses livros e autores entre os dois países. Machado de Assis é, de certo modo, conhecido. Drummond também. Mas são apenas isso, conhecidos; é muito difícil, quase impossível, encontrar os seus livros à venda nas livrarias. Isso para não falar de um João Cabral de Melo Neto. São autores mais conhecidos das gerações mais velhas. Dificilmente os leitores moçambicanos identificam nomes como João Guimarães Rosa, Clarice Lispector ou, ainda, João Ubaldo Ribeiro. Esporadicamente, alguns novos autores brasileiros têm vindo a Moçambique por programas e projetos de intercâmbio. Seria interessante estabelecer pontes mais sólidas, para se darem a conhecer mutuamente essas duas literaturas”.
O professor declarou que programas de apoio à difusão do livro brasileiro no exterior seriam muito importantes. Os intercâmbios entre Moçambique e Brasil nessa área são, entretanto, praticamente inexistentes: “Tudo depende de algumas (pouquíssimas) livrarias que, vez ou outra, trazem livros de autores brasileiros, de acordo com os seus interesses comerciais. Parcerias entre editoras brasileiras e moçambicanas – que permitissem a edição e a publicação de autores brasileiros em Moçambique e de moçambicanos no Brasil – seriam uma boa saída, do meu ponto de vista. E o Fundo Bibliográfico, que tem contato permanente com as editoras e os livreiros moçambicanos, poderia mediar esse tipo de parceria”.
O FBLP administra um Protocolo de Cooperação entre Portugal e Moçambique. Com o Brasil, entretanto, as iniciativas são mais esporádicas. Em 2018, por meio da Embaixada do Brasil em Moçambique, uma parceria com o Museu da Língua Portuguesa de São Paulo possibilitou a instalação da exposição itinerante A Língua Portuguesa em Nós, que teve curadoria do professor Ngomane e foi instalada em Maputo, no Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM). Ele comenta: “Como o FBLP, gostaríamos que várias parcerias fossem estabelecidas com o Brasil, tendo em conta o seu percurso e experiência como nação, e o que isso pode significar para Moçambique do ponto de vista do desenvolvimento de políticas e práticas associadas à promoção do livro e da leitura em língua portuguesa”.
O plurilíngue Moçambique
Como os demais países de língua oficial portuguesa na África, Moçambique é um país plurilíngue. Ngomane deu algumas informações importantes sobre essa situação e sobre as publicações bilíngues.
“A população moçambicana usa cotidianamente pelo menos 20 línguas bantu, as línguas vernáculas dessa região da África. Por certo, a escolha do português como língua oficial está a contribuir para a formação de uma comunidade mais ampla. Só para se ter uma ideia, em 1980, 98,8% da população moçambicana tinham como língua materna uma língua bantu e apenas 1,2% tinha o português. Em 1997, essa proporção passou para 93% e 6%, respectivamente, e, em 2007, chega a 85,2% e 10,7%. Claramente, há uma tendência de crescimento da população moçambicana que tem o português como língua materna, numa relação inversamente proporcional com a população que tem uma língua bantu como a materna. Esse fenômeno está aliado ao fato de um número cada vez mais crescente de crianças moçambicanas estar a ser socializada nessa língua. No sistema escolar moçambicano, até bem pouco tempo atrás, a língua do ensino, tal como da administração pública e da mídia, entre outras áreas, era apenas o português; porém, com a introdução do ensino bilíngue (muito recentemente), as escolas passaram a lecionar em português e em pelo menos mais uma língua bantu (normalmente, a língua da região onde se localiza a escola). Obviamente, com o crescimento vertiginoso da população moçambicana – de 20 milhões de habitantes, em 1997, para cerca de 30 milhões em 2017 –, a proporção desses dados vai oscilando, mas sempre com uma tendência global de crescimento da população falante de português. Em 2007, 50,4% da população moçambicana afirmaram, no censo do ano, saber falar português, contra 48,7% que não sabiam.”
Esses dados conformam uma grande dificuldade para a expansão da literatura em língua portuguesa, problema que vem sendo enfrentado por autores moçambicanos por meio da produção de livros bilíngues, como explica Ngomane:
“Há indicadores de textos literários publicados em línguas maternas bantu. O professor Bento Sitoe é uma referência nesse sentido, pois, além de ter publicado novelas e romances em changana, língua nativa do sul de Moçambique, um desses seus livros, Zabela – uma Juventude Desperdiçada (1983), foi reeditado em 2013 em versão bilíngue changana-português. Ademais, o professor Sitoe também publicou os dicionários Changana-Português (2011) e, mais recentemente, Português-Changana (2017), num projeto de valorização das línguas bantu de Moçambique. A escritora infanto-juvenil Fátima Langa – infelizmente, falecida – publicava regularmente versões bilíngues de suas obras, em português-xicope (pronuncia-se “xitchôpe”). Deve-se à Associação Progresso a promoção de publicações bilíngue (português e uma língua bantu), sobretudo na região norte do país, abrangendo três províncias: Niassa, Cabo Delgado e Nampula. Além da Associação Progresso, a JV Editores, de Maputo, também introduziu e aposta na publicação bilíngue. Apesar desses sinais, como disse, a ação ainda está aquém do desejado.”
Quais moçambicanos ler?
Dois autores moçambicanos, Mia Couto e José Craveirinha, já receberam o Prêmio Camões, iniciativa de promover a literatura em português que inclui a África lusófona. Ngomane assinala outros nomes que merecem uma divulgação mais ampla no panorama editorial brasileiro. “Ungulani Ba Ka Khosa, Paulina Chiziane, João Paulo Borges Coelho e Aldino Muianga deveriam mesmo ser mais conhecidos, por aquilo que representam na literatura moçambicana do ponto de vista das suas linhas temáticas e de seus estilos de escrita. Digamos que são autores representativos e com uma vasta obra. Ainda no campo da ficção narrativa, Lília Momplé, Lucílio Manjate e Virgília Ferrão. Já na poesia, Noémia de Sousa – contemporânea de Craveirinha e praticamente mãe da poesia moçambicana –, Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, Armando Artur e Juvenal Bucuane. Também é possível incluir nesse campo alguns escritores mais jovens, como Mbate Pedro, Sangari Okapi, Sónia Sultuane, Hirondina Joshua e Álvaro Taruma, entre outros.”
Alguns desses autores já foram publicados no Brasil. A presença da literatura brasileira em Moçambique e em outros países da África lusófona depende, em grande medida, de políticas públicas continuadas de promoção da nossa cultura e literatura no exterior.
Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura.