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Vãos e vens

O jornalista Valmir Santos fala sobre os espetáculos da segunda semana do projeto “Conexões Norte Sul”

Publicado em 08/04/2025

Atualizado às 14:30 de 08/04/2025

por Valmir Santos

Nos últimos dias, a memória reacendeu imagens dilacerantes geradas pela pandemia de coronavírus, que causou mais de 7 milhões de óbitos no planeta desde março de 2020. O distanciamento social foi uma das medidas mais adotadas por governos não negacionistas, diferentemente da gestão do Ministério da Saúde no Brasil, sob governo civil militarizado. Como se sabe, nos períodos mais críticos antes da chegada das vacinas, a medida visava restringir a interação entre pessoas para diminuir a velocidade de transmissão.

As reminiscências daquele olho de furacão sanitário podem ser percebidas em outras chaves, segundo o corpo sócio-histórico de diferentes formas de lonjura e proximidade, o vai e vem que cruzou espetáculos e ações de Rondônia e Rio Grande do Sul durante a segunda e última semana do projeto Conexões Norte Sul, organizado pelo Sesc gaúcho e pelo Itaú Cultural (IC), de 6 a 16 de março, na sede da instituição paulista, em simultaneidade aos cinco anos do princípio da covid-19.

Perto do final de uma apresentação de Trivial – um espetáculo de b-boys, seus protagonistas, inclusive uma b-girl, se expressaram em palavras para além do já potencializado via texto corporal. Um deles disse, em tom de frustração: “Estou cansado”. Minutos antes, em cena de interação direta com o público, quando seus pares também desceram do palco para conversar com a plateia, ele ficou parado próximo a um dos corredores da sala, estendeu a mão por um tempo, mas ninguém se levantou para cumprimentá-lo. Daí o desabafo que tocou na baixa qualidade da atenção ao outro na sociedade, a começar pelo entorno imediato do cotidiano, um dos assuntos abordados pelo coletivo.  

No início de uma sessão de A cabeça de Tereza, solo escrito e atuado por Jam Soares, mulher afroamazônida, moradora de Porto Velho (RO), ela surge do fundo da plateia cantando e apertando a mão da maioria das espectadoras e dos espectadores. Por cerca de dez minutos de saudação, circulando entre as fileiras e subindo ao palco, que também acolheu pessoas em cadeiras nas laterais, a artista entoa os versos: “Eu venho aqui cantar pra chamar meus companheiros / Eu venho aqui cantar pra chamar minhas companheiras / Recebam o meu afeto que a luta é todo dia / Recebam o meu afeto que só se vence com energia”. Em seguida, ela se disse cansada do país dividido em dois. Não se referindo à mal definida polarização política (o que está em xeque é a democracia), mas, sim, às desigualdades de renda, de classe, de gênero e de raça que afetam a população há séculos. De um lado, ricos cada vez mais ricos. De outro, “corpos empilhados”, existências “devoradas pelos grandes tubarões brancos”.

Se a distância significa o espaço entre dois pontos, os dois espetáculos a materializam desde o plano simbólico, que, por sua vez, ecoa as realidades e as materialidades de que tratam/falam.

Na imagem uma mulher está com as mãos para cima
Peça A cabeça de Tereza (imagem: Olga Lysloff)

Formas de lutar

O sexteto dançante de Trivial subverte a mera transposição de um dos elementos fundamentais da cultura hip-hop, o breaking, e o elabora em cena enquanto coreografia e pensamento tributários dos bairros periféricos, por vezes centrais mesmo, em que a juventude (e aqui não vai régua etária, mas leva-se em conta o espírito) pratica os fundamentos corporais e os recria também como exercício de escuta. Há silêncios veementes nessa criação. Ela promove dobras de uma dramaturgia do movimento a gritar estilos de vida e formas de indignar-se.

A brincadeira e a ligeireza dos corpos corais, duetos ou individuais compõem saliências poéticas no tablado, em tese, vazio, que se expande pelo desenho de luz ou circunscrito por irônicos separadores de fila única. Constrói-se uma paisagem humana extraordinária, no sentido do que escapa ao universo popular urbano propriamente dito.

Três homens negros estão na imagem. O primeiro está semiabaixado, o do meio está dando um pulo e foi pego de cabeça para baixo, e o terceiro está com um joelho no chão e outro dobrado. Todos usam roupas claras.
Uma dança de break parte da peça Trivial – um espetáculo de B-boys (imagem: Nando Espinosa)

Assim como a pesquisa e o processo criativo de b-girl e b-boys emanaram de si e do território em que estabeleceram vínculo, na fricção com seu diretor, A cabeça de Tereza é fruto essencialmente da história de vida e do lugar em que vive Jam Soares. Cada projeto artístico encara a batalha a seu modo.

O caráter autoral fica patente na presença de Soares na idealização e concepção oriundas de sua formação em licenciatura em teatro pela Universidade Federal de Rondônia (Unir), na qual o diretor Luiz Lerro leciona. Presença que lembra relatos históricos da recepção acerca dos primeiros passos da cantora Maria Bethânia nos palcos, aos 18 anos, no show-manifesto Opinião, no Rio de Janeiro, há exatos 60 anos, sob a direção de Augusto Boal. Em poucos minutos, a atuante de Porto Velho envolve o público como aliado na narrativa e na condição de parceiro na defesa do esconderijo em que sua protagonista, Tereza Sankofa, se posiciona com firmeza contra injustiças de toda ordem.

A partir dessa situação de esquiva, vêm à tona contextos sobre Tereza de Benguela, a escrava de África que virou rainha e liderou um quilombo de negros e indígenas por 20 anos na área onde atualmente fica o Mato Grosso. Em admiração a ela, Soares fia-se em críticas aos alarmantes índices de violência contra a mulher em Rondônia e às contradições do setor de agronegócio, assim como evoca direitos fundamentais na “Constituição” da República Federativa do Brasil, não levados ao pé da letra por governantes e parlamentares. Causas candentes nos dias de hoje, mas a ação se passa em 2035, no que a atuante parece assumir o conceito de afrofuturismo para conceber a sua heroína e depositar tudo de ruim no Estado Fundador, obviamente autoritário e maniqueísta, à maneira da distopia do escritor inglês George Orwell em 1984. Não é pouco para quem está se iniciando no ofício.

 A imaginação no poder

Um terceiro espetáculo na derradeira semana de programação, Teatro dos seres imaginários, da Cia. Seres Imaginários, de Porto Alegre (RS), opera outro tipo de distanciamento para mover o público do chão ao céu das infinitas possibilidades na plataforma ficcional. Pés e cabeças dão-se as mãos, por assim dizer, quando os sentidos são aguçados, quando cada pessoa participante coloca a cabeça em um dos buracos na base da caixa preta de tecido situada a 1 metro e meio do piso, no Bulevar do Rádio. A experiência imersiva entre as sensações do dentro e do fora arrebata os instintos mais lúdicos. O balé de bonecos, manipulados em suspenso, atiça a livre associação fabular com suas texturas mil, sob aval da inspiração no Livro dos seres imaginários (1957), escrito pela dupla argentina Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero. Um mergulho universalizante a reboque de criaturas artesanais no microespaço-tempo de dez minutos por turno, de até 18 pessoas respirando o mesmo ar encantatório.

Na imagem um ser rosa com antenas cabeça e tem uma asa
Peça Teatro dos seres imaginários (imagem: Rique Barbo)

Ponderações

As apresentações de sala foram seguidas por Pulsações, como chamados os bate-papos mediados entre artistas e o público, pela jornalista e crítica teatral Pollyanna Diniz (do site Satisfeita, Yolanda?) e pelo jornalista e crítico Kil Abreu (Cena Aberta). Reflexões também impulsionaram mesas igualmente noturnas. Modos de produção e seus operários envolveu o ator e produtor Chicão Santos, do grupo O Imaginário, de Porto Velho, a produtora independente Luka Ibarra, de Porto Alegre, e a atriz e produtora Cynthia Margareth, de São Paulo, com mediação de Abreu. Já Curadorias, circulações partilhou relatos de Abreu, que dirigiu o departamento de teatros na Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo nos anos 2000, e da gestora cultural Galiana Brasil, que trabalhou no Sesc/PE, em Recife, e é gerente do Núcleo de Curadorias e Programação Artística do IC, diálogo que teve mediação da também gestora cultural Jane Schoninger, coordenadora de Artes Cênicas do Sesc/RS.

Seja no campo da linguagem, seja nas políticas públicas ou institucionais, houve margem nessas intervenções para ponderações em níveis poéticos, críticos e afetivos. Com alguns diagnósticos agravantes – e não poderia deixar de ser–, quando o próprio Ministério da Cultura foi extinto na gestão de Bolsonaro, em 2019, após tentativa de Temer, no período anterior, de convertê-lo no antigo Ministério da Educação e Cultura, medida refutada por atores políticos, setores culturais e pela sociedade civil, que se organizaram no movimento Ocupa MinC, gerando recriação da pasta. Felizmente, o governo Lula retomou o ministério.

Não sem razão ainda, outros tópicos perpassaram distintos pontos de vista: reestruturação pós-desmonte na esfera nacional, processo de despolitização em curso na sociedade, a falsa moralidade mandando as cartas em níveis municipal, estadual e federal, inclusive no âmbito de instituições privadas, despotencialização de festivais, a dependência de editais, a democratização dos modos de produção, as pautas sobre direitos sociais e seus impasses, as curadorias das ausências (acerca de projetos não selecionados em determinados certames e como cada agente pode implicar-se mais em relação a suplências e que tais).

De fato, foram diversas, por vezes produtivamente divergentes, as linhas de força do Conexões Norte Sul. Como a constatar que, afinal de contas, “a cabeça pensa onde os pés pisam”, como afirmou Brasil, lembrando a máxima que o frade dominicano, escritor e jornalista Frei Betto costuma difundir em suas falas.

*Texto escrito como uma das ações do projeto Conexões Norte Sul, a convite do Itaú Cultural e do Sesc/RS.

 Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena (teatrojornal.com.br).

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