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“Prece”, de Luiza Brina: coragem e fé na construção de uma música grandiosa

O jornalista Jorge LZ comenta o disco que considera um dos mais impressionantes dos últimos anos

Publicado em 21/05/2024

Atualizado às 16:25 de 23/08/2024

Por Jorge LZ

Em 2012, no Geleia moderna (programa que eu apresentava na Rádio Roquette-Pinto, no Rio de Janeiro), recebi como convidado o cantor e compositor mineiro Luizga (Luiz Gabriel Lopes). Um dos assuntos de que tratamos foi a riqueza e a constante renovação da música de Minas Gerais. Impressionado com o seu trabalho, teci elogios e ele, entre algumas indicações, enfatizou: “Você precisa conhecer Luiza Brina. Ela é maravilhosa!”. Fui conferir e ele estava coberto de razão. Naquele mesmo ano, Luiza foi a atração da edição de aniversário do programa, fazendo uma apresentação solo ao vivo no auditório da rádio.

Passados 12 anos, a cantora, compositora, multi-instrumentista e produtora mineira lança Prece (2024), acrescentando mais uma joia à sua discografia, constituída de A toada vem é pelo vento (2011), Tão tá (2017), Tenho saudade mas já passou (2019) e A toada vem é pelo vento (deluxe edition) (2022).

Luiza Brina está deitada, nua. Ela é uma mulher branca, com cabelo preto e encaracolado.
Capa do disco Prece, de Luiza Brina | imagem: Daniela Paoliello


Lançado pelo selo Dobra Discos, com patrocínio da Natura Musical, Prece é um álbum audacioso, em que Luiza apresenta 11 faixas, sendo dez de sua autoria – incluindo parcerias com Julia Branco, Vovô Bebê, Sérgio Pererê, Iara Rennó, Thiago Amud e Luizga – e um interlúdio, “Rainha Belinha entoa velhos de coroa”, de Pererê. O trabalho dialoga com o documentário A tecnologia da canção – investigações e conversas de Luiza Brina (divulgado em junho de 2023 no cinema e na internet, com direção de Vitor Souza Lima e idealização e roteiro de Luiza e Julianna Sá) e com a “videoração” (conceito desenvolvido por Julianna Sá, com direção de Virgínia Pitzer), na qual a artista recria os arranjos de suas orações e registra em vídeo, em um misto de clipe e gravação musical. 

Compostas desde 2010, as canções chamadas de “orações” fazem jus ao termo, já que se apresentam como preces ao amor, à solidão, à natureza e à fé, nas quais a artista faz as suas composições e busca o sagrado. O universo musical pode ser descrito como um projeto sinfônico “afro-mineiro”. Ou melhor: afro-brasileiro, em sincronia com a América Latina. Os ousados caminhos harmônicos, que se bifurcam para depois se reencontrar, sempre de forma surpreendente, são desbravados por cordas, madeiras e metais em comunhão com a força da percussão, orgânica ou eletrônica. Fica difícil não estabelecer um paralelo com Coisas, do maestro Moacir Santos. Assim como Luiza batizou suas canções de “Oração 1” e “Oração 2”, Moacir as chamou de “Coisa 1” e “Coisa 2”. A semelhança entre as duas obras se prolonga naquilo que as distingue: a criatividade e a personalidade de cada uma delas.

Luiza Brina aparece perto de águas. Ela está nua e olha séria para a câmera. A artista tem cabelo encaracolado. A imagem trabalha com sombras e falta de luz.
Luiza Brina | imagem: Daniela Paoliello


Luiza assina todos os arranjos,
 tanto das percussões do músico chileno José Izquierdo quanto dos 22 instrumentos de uma orquestra composta de 19 mulheres, integrantes da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e da Orquestra Ouro Preto. A direção musical também está em suas mãos e a produção é dividida com Charles Tixier (conhecido por seu trabalho com as bandas Charlie e os Marretas e Holger, além da parceria com Luiza Lian). Músico e produtor de extrema competência, Charles também se encarrega das intervenções eletrônicas, demonstrando uma perfeita sintonia com Luiza e com o conceito do álbum, a exemplo da faixa “Oração 18 (pra viver junto)”, em que a sua base eletrônica potencializa o deslumbramento produzido pelo arranjo da orquestra, fazendo com que a sutileza da primeira parte dê lugar à grandiosidade da segunda, além de enfatizar o texto, que propõe o autoconhecimento para que amor a dois seja pleno.

Na sua proposta de “novena”, Luiza dialoga com outras personas artísticas. A cantora mexicana Silvana Estrada aparece em “Oração 2”, composição em parceria com Julia Branco que teve uma versão gravada no álbum Tão tá. Já o interlúdio “Rainha Belinha entoa velhos de coroa”, de Sérgio Pererê, é cantado à capela pela mestra griô mineira rainha Isabel Casimira, conhecida como Rainha Belinha, com gravação feita em frente ao terreiro 13 de Maio, um terreiro de congado. O interlúdio leva à “Oração 13 (coração candongueiro)”, parceria com Pererê. Luiza e esse artista mineiro impressionante dividem as vozes nessa faixa, que tem como destaque a percussão comandada por José Izquierdo.

Iara Rennó, talentosa artista paulista, participa de “Oração 19 (oração pra Oxum)”, parceria sua com Luiza; um belo entrelaçar das flautas com a percussão, tocada para a orixá dos rios, numa das faixas mais bonitas do álbum. “Oração 15 (oração à Cobra Grande)” é uma parceria com o carioca Thiago Amud, com a participação de Maurício Tizumba. Assim como estamos acompanhando a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul face à falta de cuidado com o meio ambiente, Minas Gerais, terra de Luiza, já passou pelo mesmo descaso, que ocasionou o desastre em Mariana e Brumadinho. A faixa celebra a lenda amazônica da Boiúna (Cobra Grande) e pede proteção aos rios.

Luiza Brina está nua, ajoelhada na areia. Ela é uma mulher branca, com cabelo preto e encaracolado. A artista segura bolas de gude.
Luiza Brina | imagem: Daniela Paoliello

“Oração 16 (dios/adiós)” traz a participação da cantora argentina LvRod (Lucía Rodríguez). Inspirada na obra Os frutos da terra, do escritor francês André Gide, um texto poético que aborda a relação com a matéria e com os elementos naturais, criando um entusiasmo pela vida. Por meio de uma melodia sublime, em que se evidenciam as cordas e os sopros em diálogo com a percussão, as duas versam sobre a figura de Deus como um ser terreno, presente no que está vivo, e também sobre a sua negação, que seria a morte.

Luiza Brina está nua, ajoelhada nas águas. Ela é branca e tem o cabelo preto e encaracolado.
Luiza Brina | imagem: Daniela Paoliello


Desde o seu primeiro trabalho, em 2011, Luiza chamou a atenção pela exuberância de suas composições. Verdadeira ourives da canção (não negando suas raízes musicais mineiras), acostumou-se a privilegiar as harmonias, trabalhando-as de forma notável e sutil e fazendo disso uma das principais características da sua obra, ao lado da coragem de experimentar e correr riscos, sem cair em armadilhas ou imposições plantadas pelo lugar-comum que tomou conta da produção musical atual. Como é bem-dito nos versos de “Oração 17 (risco)”, parceria com Luizga: “coragem faz a luz crescer [...] / arriscar, fazer o risco, percorrer, correr o risco”.

Não é por acaso que Prece, um dos discos mais impressionantes dos últimos anos, alça Luiza ao ponto mais alto de sua trajetória até o momento, reafirmando a sua enorme importância no cenário musical contemporâneo.

Coluna escrita por:

 Jorge LZ

Jorge LZ

Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto.

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