Projeto radicado em Aracaju visa ao acesso ao cinema sergipano e pode ser replicado para outros locais e realidades
Publicado em 19/05/2022
Atualizado às 11:46 de 19/05/2022
por André Felipe de Medeiros
Se, como dizem, a necessidade é a mãe da invenção, o projeto Cinemáquina: memória em movimento nasce de uma grande lacuna na preservação do audiovisual brasileiro – a inexistência de aparelhos de digitalização de filmes em super-8 fora da Região Sudeste. Vem então a proposta de criação de uma máquina de telecinagem de baixo custo que pode ser replicada por instituições em todo o país, especialmente as da Região Nordeste, onde o projeto foi desenvolvido.
Contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020, Cinemáquina nasceu “do desejo de ter uma máquina em Aracaju”, conta Moema Pascoini, uma das idealizadoras do projeto, que continua: “O intuito é digitalizar filmes em super-8, principalmente realizados entre as décadas de 1970 e 1980, que foi o boom do movimento superoitista aqui no Brasil. Venho há algum tempo trabalhando com a historiografia do cinema sergipano, e um dos grandes entraves era justamente não termos acesso a esses filmes. Às vezes, até encontramos o material, mas não conseguimos de fato assistir [às produções]. Às vezes, nosso acesso ao conteúdo era através de fichas de festivais ou da descrição de memória de alguém que assistira àquele filme naquele período. Nós, pesquisadores e artistas, queríamos vê-los, mas também trazê-los ao público”.
Segundo Moema, há grande carência de “uma aproximação da sociedade sergipana com esse cinema, que é desconhecido e foi soterrado ao longo do tempo. Fizemos o Cinemáquina pensando nisso. Inicialmente, o projeto tem o propósito de digitalizar filmes sergipanos e, depois, abrir para outros filmes da Região Nordeste – e, posteriormente, de todas as regiões do Brasil”.
Ao lado dela está Ж (lê-se “Kaká”), coidealizador da ação, que cita Torquato Neto e sua visão de “ocupação dos espaços” ao explicar um pouco do pensamento que norteia seus planos.
“Existe um espaço que talvez estejamos ocupando, ou criando, que é o ‘lugar social do artista’, no qual ele produz condições para outros artistas”, conta o pesquisador. “Trazemos essa tradição para o Brasil e para o Nordeste. [Torquato] estava escrevendo música, escrevendo coluna e também filmando em super-8, e [com isso] movimentando Teresina. Então, estamos fazendo isso agora, com uma geração posterior e em um trabalho que envolve um hackeamento mais técnico.”
A criação de novas oportunidades e novos acessos é, ao lado da preservação da história do cinema, o grande norte do projeto. “No Brasil, não temos uma cultura de políticas de Estado, só de políticas de governo – e o que um governo faz, o outro desfaz”, comenta Moema. “Quando começamos a ter [ações de incentivo à cultura e sua preservação], foi tudo muito centralizado no eixo Rio-São Paulo, com muita ênfase em São Paulo. Quando houve o início de uma descentralização, ela estava muito ligada à produção. Então, começa-se a ter editais de produção de filmes nos quais havia a obrigatoriedade de depositar seu filme na Cinemateca Brasileira [CB]. Ela começa a ficar sobrecarregada, com tantos filmes sendo depositados lá, mas sem um incentivo financeiro para dar conta dessa demanda extra.”
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Preservação e precariedade
Cinemáquina chega ao mundo no mesmo mês em que a Cinemateca Brasileira reabre suas portas após mais de dois anos sem atividades para o público em sua sede, em São Paulo, período também que testemunhou a destruição de parte de seu acervo em um incêndio. “O objetivo da Cinemateca Brasileira é a salvaguarda do cinema nacional, o que é uma coisa grandiosa”, comenta a pesquisadora, que aponta o “sucateamento dessa instituição que é central no Brasil. Se todo o cinema do país está lá, quando essa instituição ruir, porque não há estabilidade, todo o cinema nacional entra em risco. Quando você centraliza [seu acervo] em um lugar que não recebe estabilidade – ou seja, [não há] uma política de Estado que seja sólida para segurar as instituições –, o risco é iminente”.
“É por isso que eu faço uma grande defesa da regionalização”, continua Moema. “Sou sergipana, e em Sergipe não há nenhum Museu da Imagem e do Som, por exemplo, e há apenas três cinematecas no Nordeste (a potiguar, a pernambucana e a baiana), mas são muito recentes e sem uma grande estrutura como a CB. Mesmo dentro de suas proporções, elas não têm estrutura suficiente para uma salvaguarda do acervo de seus próprios estados. Quando pensamos no Cinemáquina, pensamos desde o ponto de vista da precariedade, ou seja, do ponto de vista de quem não tem nada. Precisamos estabelecer uma metodologia de trabalho para nós dentro desse lugar, para também termos acesso à preservação – porque senão não teremos nunca.”
Moema e Ж contam que, para a idealização do projeto, foram emprestados conceitos de tecnologia social e, dentro dela, especificamente o da apropriação: “Como dentro desse eixo precarizado podemos conseguir ter acesso também a cultura, preservação da memória, empoderamento de identidades, enfim, várias coisas que trazem agência para você de volta”, conta Moema, “você pode se ver, sim, como artista sendo sergipano, pode se entender como cineasta, como realizador”.
“Nessa precariedade, também criamos relações e tentamos tecer agências com instituições que têm muito mais solidez e consistências, como a ABPA [Associação Brasileira de Preservação Audiovisual] e a Universidade Federal de Sergipe [UFS], que está fazendo uma ligação com seu alunado”, explica Ж. “A estudantada está animada para aprender isso, para se apropriar da máquina e disputar a narrativa dessa memória. Existe uma geração formada em cinema que já produz talvez até antes de entrar [na faculdade], e essa geração quer entrar para a história, disputar essa memória e criar suas próprias referências – territorializadas e desterritorializadas. Não queremos também canonizar ninguém ou nenhuma prática, mas tornar possível a disputa desse futuro, a memória como projeção.”
Uma máquina com vida própria
Os idealizadores e todas as instituições parceiras que possibilitaram o nascimento de Cinemáquina poderão observar o projeto crescer para atender às necessidades primeiro do Sergipe, de seus estados vizinhos no Nordeste e, depois, do país e além, até por sua natureza de baixo orçamento com intenção de ser replicada – ou, como Moema define, “simplificada em sua construção, e para essa apropriação da preservação”. “Quando você estuda preservação, os conceitos não são nem pensados para o Brasil ou para a América do Sul, certamente não para Sergipe ou para o Nordeste, porque são conceitos que estão no campo do ideal”, conta ela. “E não vivemos no campo do ideal, por isso buscamos essa coisa da precarização. Estamos em outro lugar e, a partir dele, devemos entender como nos movimentar.”
Moema usa a palavra sonho ao contar sobre seu desejo de “ver essa máquina realmente sendo apropriada por várias pessoas”, e que possam entendê-la “como ferramenta de ‘acesso a’ – e isso pode ser a muitas coisas: acesso à preservação como um todo, a essas obras especificamente, a uma autodescoberta como artista e, com ela, trazer a noção do ‘ser capaz’, que é muito apagada em alguns locais”. Ela complementa: “Penso muito na minha história de vida, de ser sergipana, nordestina, de trabalhar com cinema hoje e, durante muitos anos, nem sequer pensar que isso seria possível, porque olhava para o lado e não via cinema aqui, não sabia nem que havia filmes aqui. O impacto de você não ter uma referência, ou algo para consultar, é grande”.
Os idealizadores – que, além de pesquisadores, são artistas – fazem questão de não estarem atrelados ao projeto para sempre, justamente para que outros possam se apropriar da máquina para seus usos. “Não significa não ter responsabilidade, mas tentar trabalhar de um jeito que possibilite essa articulação de baixo para cima de todas as coisas”, esclarece Ж. “Estamos dando alternativa, estamos prototipando uma máquina e prototipando um tipo de política pública também.”
“Conhecemos a fragilidade dos acervos ao ponto de podermos falar que, para essa situação atual, é a melhor máquina do mundo, porque é a melhor máquina que existe”, conta ele. “Essa prototipia de mundos assim é um pouco uma forma de sonhar e de lutar ao mesmo tempo, de sonhar com os elementos que se têm à mão.” Sobre a reprodução de Cinemáquina em outros locais e suas respectivas realidades, Ж incentiva “não o do it yourself (“faça você mesmo”) do punk, mas o do it with others (“faça com os outros”). E esse outros pode ser outras pessoas ou, ainda, outros equipamentos”.
Oficina de capacitação
Junto com o equipamento alojado na Biblioteca Pública Epiphânio Dória, em Aracaju, Cinemáquina promove também uma oficina de capacitação para a utilização do aparelho. Ela acontece em dois cursos, um on-line e outro no Museu da Gente Sergipana. As vagas estão esgotadas.
Nos dias 19 e 20 de maio, haverá o curso on-line, com Lila Foster, diretora de relações institucionais da ABPA. Sob o tema “Introdução à preservação audiovisual”, as aulas acontecerão das 14h20 às 16 horas.
Já na semana seguinte, nos dias 24, 25 e 26, Moema e Ж estarão no museu para três dias de curso, das 10 às 17 horas, nos quais o projeto será explicado desde sua concepção e os alunos poderão também praticar a digitalização na Cinemáquina.
Haverá, ainda, tutorial em vídeo e um e-book (em PDF) que explicam como montar a máquina, assim como os materiais necessários para a montagem.
Acesse o perfil do Instagram do projeto: instagram.com/cinemaquina_.