O projeto, que acontece na região do Parque Nacional de Superagui, no litoral norte do Paraná, aborda a necessidade de preservar a sabedoria e os conhecimentos das curandeiras locais, repassados de geração para geração
Publicado em 07/06/2019
Atualizado às 11:56 de 19/08/2019
por Jessica Orlandi
Um conhecimento milenar. Tão antigo quanto o aparecimento do homem. Difícil precisar quando começou. Tanto que não se pode dizer que ele tem donos – mas sim herdeiros. Um conhecimento que vem sendo passado de civilização para civilização, mundo afora, até chegar aos dias de hoje: o uso da natureza e de seus infinitos recursos (muitos deles ainda desconhecidos) como forma de cura.
Apesar de a natureza estar à nossa disposição com inúmeros elementos medicinais que atuam de forma positiva em nosso organismo (desde que utilizados de forma correta), a transmissão de sua “sabedoria”, antes passada naturalmente de geração para geração, vem se perdendo com o tempo. Com isso, muitas das memórias, dos ensinamentos e do intercâmbio desses saberes – e dos mantenedores dessa sabedoria – também desaparecem, assim como alguns dos próprios recursos naturais.
Na tentativa de fazer um resgate de alguns desses conhecimentos, trazer à tona a importância de nossos ancestrais na sua propagação, contextualizar historicamente os processos de cura e tratar da relação do ser humano com a própria natureza, a proponente Bianca Magalhães Sevciuc inscreveu no Rumos Itaú Cultural o projeto Eu Mais Velha – Cura, Fé e Ancestralidade.
Naturoterapeuta, ela conta que devido à profissão passou a se interessar e a pesquisar ainda mais as propriedades curativas das plantas e a revisitar a própria história de vida e suas memórias da infância nesse processo. Durante essa busca pessoal para tentar entender o ser humano como parte da natureza, e vice-versa, ela teve a ideia do projeto.
“Convivi muito com a minha avó materna, que tinha em casa um quintal medicinal e essa cultura do cultivo das plantas e do ensinamento da medicina natural, que veio das antepassadas dela”, conta Bianca. “Revisitando esse passado, descobri que minha bisavó (também materna) era benzedeira. E fui me interessando cada vez mais por esse lugar das plantas medicinais e por esses conhecimentos advindos dos mais velhos”, diz. “Infelizmente, percebi que eles vêm se perdendo. Então, surgiu a vontade de falar sobre tudo isso antes mesmo de definir uma região para desenvolver o projeto.”
O lugar escolhido por Bianca para fazer o resgate e a documentação dos saberes foi o Parque Nacional de Superagui, localizado no litoral norte do Paraná, no município de Guaraqueçaba. Criado em 1989, é considerado Sítio do Patrimônio Natural (Unesco, 1999), Reserva da Biosfera (Unesco, 1991) e Patrimônio Natural e Histórico do Paraná (1970). Formado por ilhas isoladas, o parque é composto de amostras diversas de ecossistemas – como floresta atlântica, manguezais, praias e dunas. Como essas ilhas são de difícil acesso (o barco a motor é o principal meio de transporte) e quase sem infraestrutura, já que existem restrições à caça, à pesca e ao plantio, os seus habitantes dependem, muitas vezes, de doações para sobreviver. Na região existem senhoras exercendo diferentes processos de cura por meio de plantas e outros elementos da natureza, e há anos elas passam esses conhecimentos de geração para geração.
“Em 2015 já estava com essa vontade de falar sobre os mais velhos, do lugar da cura e das plantas medicinais, quando conheci uma expedição que existe na região das ilhas do Parque Nacional de Superagui. Tive contato com o Renato Pereira de Siqueira, estudioso local, nativo e interlocutor das pessoas do lugar, que há 20 anos faz travessias de canoa pelo parque auxiliando os moradores dali”, diz Bianca. “Ele contou que existiam várias curandeiras e benzedeiras na região e, percebendo a necessidade de valorizar esse conhecimento, já vinha fazendo um trabalho de pesquisa e mapeamento delas há alguns anos. A partir daí, despertou em mim o desejo de documentar os saberes dessas senhoras, recebidos de seus antepassados, e de vivenciar e resgatar com elas aquilo que dominam como cura por meio do uso da natureza. Para interligar e contextualizar essas histórias, como dispositivo narrativo, decidi abordar a fé e a ancestralidade presentes na região.”
O resgate e a valorização da sabedoria dos mais velhos
O projeto Eu Mais Velha – Cura, Fé e Ancestralidade [do qual participam, além de Bianca e Renato, Carol Melo (produção-executiva), Laís Araújo (pesquisa de campo e produção de texto), Laís Melo (registro de imagens), Dilma Nascimento (ilustração botânica), Audrey Farah (editora e conselheira) e Nina Zambiassi (design gráfico)] foi iniciado no final de 2018 e acontece em etapas. Primeiro, a do contato e da vivência in loco da equipe com as senhoras escolhidas para participar (sete, no total), que se tornarão as personagens principais de um livro, a ser produzido durante e após essa vivência e pesquisas de campo, contendo as histórias de vida dessas mulheres e da relação delas com a natureza. Depois, a etapa da contextualização histórica do processo de cura da região do Parque Nacional de Superagui e da troca de saberes entre as gerações locais – que se dará por meio da criação de quintais medicinais (sete, no total), construídos na expectativa de fazer um intercâmbio com os mais jovens da região e de tentar despertar neles o interesse, o resgate e a preservação desses conhecimentos dos mais velhos.
“Cada uma das sete curandeiras escolhidas tem uma especificidade. Uma trata de picadas de animais peçonhentos (com plantas, pó de ostra e banha de animais, além de outros elementos da natureza); outra guarda conhecimentos para fazer partos e/ou ainda o uso de ervas, por exemplo. Elas foram selecionadas, entre tantas mapeadas pelo Renato, levando-se em conta essa diversidade de saberes”, explica Bianca. “Aceitaram participar do projeto pelo fato de a nossa equipe ser formada por jovens e por elas terem interesse em passar esses conhecimentos adiante, já que as novas gerações das comunidades estão num processo de descrença disso. Preferem tomar medicação industrializada, fazer parto em hospital etc. A própria tecnologia tira o interesse dessas gerações.”
Bianca acrescenta que, com o processo de evangelização ocorrido nos últimos anos na região do parque, algumas dessas senhoras acabam não se dizendo mais curandeiras e /ou benzedeiras, uma vez que esses “termos” e a “profissão” não são bem-vistos. “Por isso esse trabalho de valorização e resgate é tão importante”, fala. Ela também explica que, para essas mulheres, o processo de cura depende, na verdade, de cada um e vem de dentro para fora, independentemente de qualquer medicamento, seja ele natural ou industrializado. “Elas não falam que curam as pessoas, mas sim que ensinam a fazer remédios. Isso está relacionado à sabedoria de que não se pode curar ninguém de fato. Esse ‘alguém cura a si mesmo ao acessar o potencial de autocura inerente a todos nós. O acesso a esse potencial ocorre quando a fé é despertada.”
O livro como ferramenta de soma e expansão de saberes para todos
“A produção do livro está acontecendo conforme o projeto caminha. A ideia, com ele, é falar sobre a cultura do povo tradicional da região, contextualizar historicamente os processos de cura (citando, inclusive, personagens como dona Ester – já falecida, antiga curandeira local, que ensinou os processos de cura a diversas aprendizes) e problematizar questões existentes em relação ao parque, entre outros assuntos”, explica Bianca. “Por último, dedicaremos um capítulo a cada uma das sete senhoras que selecionamos: Alzira Coelho Pereira (de 83 anos), Maria Squenine Castanho (81), Leontina da Silva (77), Cleonice Fagundes (75), Nilse Squenine Maia (64),Cesarina Maria Malaquias Lopes (63) e Joventina da Silva Warangdy (58).”
Bianca afirma que a oportunidade de fazer esse trabalho de busca, pesquisa, resgate e documentação com essas senhoras – o qual busca ainda contribuir, de certa forma, para o fortalecimento dessas comunidades que estão passando por uma desvalorização (mas que não são frágeis; ao contrário, têm resiliência) – é uma grande honra. E que ela e os demais integrantes da equipe se sentem lisonjeados e gratos com a oportunidade.
“Eu Mais Velha traz à lembrança a impermanência que é a vida e que um dia seremos também mais velhos, simbolizando a necessidade da soma de saberes que ocorre quando há um intercâmbio de gerações”, fala a proponente. “Em meio a uma vida contemporânea urbana, na qual a busca pela jovialidade é constante, perdeu-se a noção de sentir o tempo passar, fazendo com que esse lugar do ‘ser’ idoso seja marginalizado e esquecido. Em resumo, como diz a poetisa Cora Coralina, 'o saber a gente aprende com os mestres e com os livros. A sabedoria se aprende é com a vida e com os humildes'.”