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Memórias sangradas: vida e morte nos tempos do cangaço

Livro com fotos e textos de Ricardo Beliel retrata a memória social do cangaço no Nordeste brasileiro por meio de seus personagens e descendentes

Publicado em 14/11/2021

Atualizado às 14:04 de 17/02/2022

por Cristiane Batista

Uma história talhada em sangue, vingança e conflitos de poder. Cenário de lutas, emboscadas, saques, massacres, sequestros, estupros. E também de mistérios, lendas, amizades, amores e fé. O cangaço, movimento social ocorrido no Nordeste brasileiro entre as décadas de 1920 e 1940, ganha novo foco pelas lentes e pelos relatos de seus personagens e descendentes em Memórias sangradas: vida e morte nos tempos do cangaço, primeiro livro autoral do fotógrafo e jornalista carioca Ricardo Beliel, num projeto contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural 2019-2020.

Ulysses de Souza Ferraz com uma fotografia de sua família, combatentes da Volante de Nazareth, contra Lampião.
Ulysses de Souza Ferraz com uma fotografia de sua família, combatentes da Volante de Nazareth, contra Lampião (imagem: Ricardo Beliel)

O livro está em pré-venda e contará com três lives de pré-lançamento, no Youtube da editora Olhares, sempre às terças, às 19h: "Imaginário poético do cangaço", com Luciana Nabuco, em 16/11; "Antropologia visual do cangaço", com Milton Guran, em 23/11; e "Cangaço, história popular", com o Luiz Antônio Simas, em 30/11.

A história de Virgulino Ferreira da Silva, conhecido como Lampião, o Rei do Cangaço, e Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, ou Maria de Dea, para os íntimos, e de seu bando, formado por Corisco, Dadá, Pancada, Labareda, Volta Seca, Jararaca e outros nomes, divide opiniões há mais de 80 anos. Muitos os tomam apenas como torturadores e assassinos cruéis. Outros preferem aliviar as barbáries cometidas sob a justificativa de que eram vítimas de um sistema opressor, chegando a dar a Lampião o título de “Robin Hood do sertão”. Beliel prefere não julgar: “O trabalho não tem a pretensão de ser acadêmico, e não quero ser o juiz dessa história. Trata-se de um caminho para redesenhar a memória e a mística da gente sertaneja, suas histórias entrelaçadas à época do cangaço, seus espaços sociais, religiosos, políticos e de costumes”, explica o autor.

O grupo foi dizimado em 1938 pelo governo Getúlio Vargas na batalha de Angico, em Sergipe, quando o líder, sua parceira e nove companheiros foram metralhados e tiveram a cabeça degolada e exposta em praça pública – imagem ainda hoje muito presente na memória dos brasileiros e que agora ganha mais um registro histórico.

Com previsão de lançamento pela Editora Olhares em dezembro, Memórias sangradas contém 125 fotografias, entre imagens produzidas por Ricardo Beliel e de época, além de testemunhos de 43 personagens contemporâneos do cangaço e 19 descendentes diretos de pessoas importantes dessa saga sertaneja. 

De 2007 a 2019, Beliel e a esposa, a poeta Luciana Nabuco (que assina o prefácio e o posfácio do livro), realizaram nove viagens para percorrer 11 mil quilômetros de estradas em 49 localidades, nos estados de Alagoas, Pernambuco, Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte, Ceará, São Paulo e Minas Gerais, atrás de histórias e imagens. “Nos abraços das macambiras e juremas”, como escreve Luciana referindo-se a plantas típicas do sertão, encontraram gente como Ozeias Gomes de Oliveira. Irmão de Maria Bonita, ele escondia o parentesco com a cangaceira até pouco tempo antes da entrevista concedida ao projeto, em Malhada da Caiçara (BA), com medo de vinganças. Dulce Menezes, sequestrada aos 14 anos pelo cangaceiro Criança para ser sua mulher no cangaço, é uma das poucas sobreviventes do combate de Angico e foi encontrada pelo casal em Jordânia, no Vale do Jequitinhonha (MG).

Dulce Menezes, ao centro, com seus companheiros cangaceiros dos bandos de Zé Sereno, Balão e Criança, ao se entregarem em Jeremoabo
Dulce Menezes, ao centro, com seus companheiros cangaceiros dos bandos de Zé Sereno, Balão e Criança, ao se entregarem em Jeremoabo (imagem: Ricardo Beliel)

Outro entrevistado é Espedito Seleiro, artesão de couro que produz roupas, bolsas e calçados com a estética do cangaço em Nova Olinda (CE), reproduzindo o trabalho do pai, que fazia alpercatas para o grupo de Lampião. Campesinos, policiais, pequenos comerciantes e coiteiros – nome dado aos que davam proteção e/ou comida aos cangaceiros, por amizade ou por medo mesmo – completam o quadro de entrevistados para o livro. 

Esses personagens, em sua maioria pessoas quase centenárias, relatam suas vivências e as de antepassados, amigos e familiares em potentes narrativas, “respeitando-se suas linguagens originais e a importância da tradição da cultura oral”, frisa o autor. O título do livro é, inclusive, uma referência a eles “e à profundidade e confiança com que compartilharam suas recordações, de maneira tão visceral e íntima. Teve gente que me contou coisas às quais nem sua família próxima tinha acesso. O conteúdo é tão rico que poderia se transformar em uma minissérie”, aposta ele.

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