Metodologia prevê documentação audiovisual e oficinas com a comunidade escolar
Publicado em 02/09/2019
Atualizado às 11:21 de 02/06/2021
por Marcella Affonso
Localizado no município de Oiapoque (AP), no extremo Norte do país, o vilarejo de Vila Velha do Cassiporé carrega em suas terras ribeirinhas memórias de um tempo anterior ao ano de 1500 e também construídas no decorrer da colonização. Situado às margens do Rio Cassiporé, o povoado guarda monumentos arqueológicos como vasilhas cerâmicas utilizadas em sepultamentos, machados de rocha polida e guizos de cobre. Esses objetos, além de atestar a presença indígena na região antes do contato com os europeus e revelar modos de vida passados, indicam que, no período, essas pessoas mantiveram relações de proximidade no que é hoje o estado do Amapá – patrimônio que deveria ser protegido pelo poder público, mas sobre o qual recaem denúncias de escavações ilegais e destruição.
Quem conta é a historiadora, arqueóloga e educadora Jelly Juliane Souza de Lima, que, após tomar conhecimento da preocupação da própria comunidade com a (falta de) preservação dos bens arqueológicos da área, decidiu criar um projeto de documentação audiovisual e educação patrimonial a fim de fortalecer o interesse da população local em contribuir para a proteção desses objetos. Pesquisadora colaboradora no Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas do Amapá (Cepap) da Unifap, a universidade federal do estado, ela relata que os primeiros contatos com as lideranças locais e com seus temores relativos a esses vestígios se deram em 2017, no momento da elaboração de um outro plano de trabalho, este construído pelo Cepap com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
“Confesso que inicialmente achei bem difícil conseguir o fomento financeiro para a pesquisa, pois nós que estamos na região amazônica sabemos que as coisas só acontecem nos grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo”, recorda Jelly, cuja proposta Memórias da Terra: Patrimônio Arqueológico da Comunidade de Vila Velha do Cassiporé no Amapá foi selecionada para contar com o apoio do Rumos Itaú Cultural 2017-2018. Duas equipes foram mobilizadas para realizar o trabalho: uma de pesquisa, que além de Jelly é formada pela historiadora Cecília Bastos e pelas assistentes Leticia Barros, Kathelin Carneiro e Mayara Toledo; e outra de produção, com Aron Miranda e Tami Martins (Jubarte Produções), Cassandra Oliveira (Castanha Produções), Samara Alencar, Lucas Monte, Mario Garavello e Nildo Costa.
Registrar para preservar
O projeto apoiado pelo Rumos prevê duas etapas. A primeira delas, já finalizada, ocorreu entre os dias 11 e 14 de agosto deste ano: entendendo a necessidade de saber como a população local se relaciona com os bens arqueológicos do território, a equipe do projeto visitou a pequena vila para mapear as percepções que os moradores têm de sua própria história. Nesse sentido, Jelly chama a atenção para os conflitos identitários que existem no vilarejo: em dezembro de 2015, Vila Velha do Cassiporé foi certificada pela Fundação Cultural Palmares como uma comunidade remanescente de quilombo, ocasião em que, segundo ela relata, foi levantada a hipótese desses vestígios estarem relacionados à presença de africanos. Nem todos, contudo, se sentiram representados com a decisão. “Afinal, como essa comunidade se reconhece?”, questiona.
Foram levantadas ainda as relações que os moradores têm com a herança material e cultural das terras em que habitam. De acordo com a arqueóloga, o trato com os vestígios de outrora, especialmente com as vasilhas cerâmicas mencionadas – ou “urnas”, como também são chamadas –, vem mudando: quando são encontradas em pedaços, há quem as junte e quem as guarde como souvenirs em suas casas; e há ainda aqueles que as quebram. “Esperamos que as pessoas que não têm uma relação afetiva com o patrimônio arqueológico entendam que ele é um bem da nação brasileira”, declara Jelly.
A segunda das etapas, em fase de pré-produção, envolve a criação de um documentário em curta-metragem cujos objetivos são registrar a memória local por meio de entrevistas com os moradores e compartilhar o conhecimento científico das informações geradas com a comunidade. Com gravações que devem ocorrer ao longo do mês de outubro, a previsão é que o filme seja finalizado em meados de dezembro. Nesse segundo momento, serão realizadas ainda oficinas educativas com os professores atuantes na comunidade a fim de alertar para a importância da preservação dos bens arqueológicos locais, que guardam em si a história do estado do Amapá.
“A expectativa é grande para o volume de informações que podem ser geradas”, revela Jelly. A ideia é continuar o trabalho após o fim do projeto, expondo os registros gerados em mostras que abarcam questões que vão além do patrimônio arqueológico, como conflitos territoriais e questões étnico-raciais.